Popper condenado por radicalismo

"Se há antiindutivismo e antipsicologismo extremos em Popper, Susan Haack terá tido sucesso em condenar sua proposta epistemológica, bem como a tentativa de complementaridade que Watkins elaborou para tal proposta; se não há, Haack terá errado o alvo por ela mesma armado no horizonte teórico.

Susan Haack filia sua análise ao que chama “epistemologia dominante”, acusa Popper de ter atitude desdenhosa ao tratar tal epistemologia como crença filosófica e salienta que a divergência teórica “é menor, e muito menos simples, que parece”. Enquanto Popper procura focar o conhecimento científico como alvo e, assim, distinguir ciência e não-ciência, a epistemologia de Haack tem um recorte que inclui o conhecimento empírico em geral e, por isso, abre mão da demarcação popperiana, apesar de considerar o conhecimento científico parte do conhecimento empírico em geral. A demarcação de Popper ocorre em relação à ciência/pseudo-ciência e não à filosofia/ciência. Para ele, estes têm o mesmo método; Haack, contudo, parece, como veremos a seguir, negligenciar o objeto da demarcação popperiana.

Ela reconhece que o falibilismo, na filosofia da ciência de Popper, ao sustentar que teorias científicas não podem ser verificadas, confirmadas ou justificadas, mas somente falsificadas ou refutadas, estabeleceu um sentido distintivo que é objetivista, preocupado somente com o conteúdo objetivo das teorias e suas relações lógicas. Segundo essa visão, “cientistas não crêem, nem devem crer em suas teorias; o que importa não é os cientistas acreditarem – isso é uma matéria subjetiva – mas teorias abstratas, proposições, problemas. Isso é, algo ‘objetivo, conhecimento científico’, como Popper usa a frase, para referir”.

Haack toma Popper por cético sigiloso que, ao não aceitar crenças verdadeiras, nega também o conhecimento. O que ele chama de conhecimento objetivo, científico, não é nunca justificado, não deve ser objeto de crença e pode não ser verdadeiro. Segundo Haack, ele não se interessou pelo conceito por pensar que não há crença justificada, e isso por sustentar que ciência é um empreendimento crítico racional, na qual, sempre as teorias estão sujeitas a contestação racional. A crítica negativa demonstra não que a teoria científica verdadeira é verdadeira, mas que a falsa é falsa; e na primeira parte da epistemologia de Popper, “depende da solução ao ‘problema da base empírica’, isto é, o problema do papel da experiência na falsificação”.

Haack argumenta que o problema da base empírica tem solução na proposta funderentista como um estágio adiante do fundacionalismo e que uma meta-epistemologia implica a proposta de uma epistemologia com um sujeito conhecedor. Também pretende traçar as linhas “de uma contribuição relevante para a epistemologia das ciências cognitivas”. Deste modo, apresenta um “naturalismo modesto” que articula uma “concepção gradualista da relação entre filosofia e ciência”. Esta proposta, contudo, terá sua apresentação subordinada a nossa pretensão de debater o problema da base empírica.

Embora Popper tenha deixado margem para o entendimento de que The logic of scientific discovery
propunha que teorias científicas são testadas contra a experiência, depois ele esclareceu ter sustentado a tese de que teorias científicas são testadas, não contra a experiência, mas contra as “proposições básicas”. No contexto da epistemologia popperiana, estas proposições são singulares e reportam à ocorrência de um evento observável em um lugar e tempo específicos. Até aqui Haack descreve Popper, mas sua divergência está na seqüência do argumento, quando este afirma que:

a decisão para aceitar uma proposição básica (...) é causalmente conectada com nossa experiência (...) Mas nós não tentamos justificar proposições básicas com suas experiências. Experiências podem motivar uma decisão e, por isso, uma aceitação ou rejeição de uma proposição, mas uma proposição básica não pode ser justificada por ela – não mais do que batendo na mesa
.

Haack estranha e contesta a afirmação de que proposições básicas não podem ser justificadas ou sustentadas com a experiência, uma vez que Popper afirmou que elas possuem conteúdo observacional e que a decisão científica de aceitá-las pode ser causada pela experiência. É possível, segundo Haack, identificar dois argumentos no texto de Popper, que pretendem sustentar a tese de que “a experiência não pode justificar a aceitação de proposições básicas”. O primeiro afirma que proposições básicas são impregnadas de teorias e que, portanto, o conteúdo da proposição não se esgota na observação, pois sempre há termos universais em relações circunstanciais e hipotéticas. Ex: “aqui está um copo de água”. A justificação de tal proposição implicaria inferências ampliativas com caráter observável para seu futuro; portanto, incorrer-se-ia em indução, condenada por Popper. Tal formulação Haack chama de argumento anti-indutivista por entender que Popper reconhece a existência de evidências não dedutivamente conclusivas. O segundo argumento é identificado, por Haack, como “uma versão da familiar irrelevância do argumento causacional”. A relação causal ocorre entre uma experiência e a aceitação ou rejeição de uma proposição básica, mas não entre a experiência e a proposição básica. Assim, ao vermos um cisne negro, rejeitamos a proposição, mas não faz sentido afirmar que há uma relação de incompatibilidade lógica entre a experiência de ver um cisne negro e a proposição “todos os cisnes são brancos”. Se “a justificação não é uma noção causal ou psicológica, mas lógica”, então, “proposições básicas não podem ser justificadas pela experiência”. Haack nomeará esta defesa como “argumento antipsicologista”.

Apesar de reconhecer que os argumentos são válidos, Haack afirma que “sua conclusão, contudo, é simplesmente inacreditável”. Ela defende que uma proposição do tipo “o homem está com o cachimbo na boca” é aceita no universo científico como sustentada por todos aqueles que vêem o cachimbo na boca do homem. Entretanto, em uma análise epistemologicamente relevante, ela afirma que as experiências perceptuais científicas são consideradas completamente irrelevantes. E isso é um problema. Se uma teoria científica é considerada refutada ou falsificada ao se demonstrar ser incompatível com uma proposição básica aceita, seria o caso de considerar que a aceitação de uma proposição básica no universo científico apoiada em experiências científicas, refuta a epistemologia incompatível. A relevância dessa defesa de Haack é reforçada pela proposição “não existe razão para supor que proposições básicas aceitas são verdadeiras, nem, conseqüentemente, que uma teoria ‘refutada’... é falsa. A ciência não é, afinal de contas, nivelada negativamente sob o controle da experiência”.

Mas Popper sustenta que a aceitação ou rejeição de sentenças básicas não ocorre por elas estarem sustentadas em experiências, mas sim por “decisão” ou “convenção”, da qual participam os membros da comunidade científica. Isso, contudo, não é plausível com a posição popperiana de que o convencionalismo é observacional e não-arbitrário, mesmo tratando a aceitação ou rejeição de sentença básica como conjectural e reversível, de tal forma que, em havendo desacordo, a proposição em questão pode ser testada contra outra proposição básica. Haack acha que, quando Popper apela ao ‘testável’ como relevante para decisão de que são tanto injustificadas quanto injustificáveis, ele é tendencioso, tanto que “Ayer protesta [dizendo] que a tese de Popper é difícil de acreditar, e insiste (...) que a aceitação de proposições básicas pode ser justificada, talvez não por inteiro ou incorrigivelmente, pela experiência.

Segundo Haack, a resposta de Popper a Ayer, asseverando sua negação de que a decisão para aceitar ou rejeitar uma sentença básica é arbitrária ou imotivada permite interpretar que as experiências não oferecem só motivos, mas também a razão inconclusiva para aceitar ou rejeitar proposições de base. Então Haack avança. E, se conforme a resposta a Ayer, Popper entende que a confiança caracteriza nossas observações, ela afirma: “Isso não é defender, mas abandonar a posição radical adotada em A lógica da pesquisa científica; Popper admite que experiências possam constituir razão para, não só causas, da aceitação ou rejeição de proposições básicas, e que podem ser razões inferidas de dedução conclusiva”. A incongruência agora está, segundo Haack, no fato de Popper ter respondido à objeção de Ayer fazendo o uso do termo “motivação” que se menciona “causalidade pontual” e contrasta com “justificação”, não responde às objeções de Ayer; se menciona “justificação” ou “sustentado com razões”, “constitui a capitulação à objeção” de Ayer.

Poder-se-ia dizer, contudo, como alguém que não entende o debate teórico como cabo-de-guerra, que Popper se deu conta, no debate com Ayer, de certas implicações de sua epistemologia que até então ele não havia percebido, precisamente, que as motivações fornecidas pela experiência são razões para a decisão convencionalista. Mas Haack extrai daí um ponto de acordo entre a posição de Ayer, que não ofereceu resposta aos argumentos contra a justificação, e a de Popper: as conclusões dos dois argumentos popperianos de que a experiência não pode justificar a aceitação de proposições básicas são falsas. Para serem válidos, como foi asseverado por ela, eles devem ter, cada um, pelo menos uma premissa falsa. Segundo Haack,

as premissas do argumento antipsicologista são: [1] que pode ser somente causal, não-lógica, a relação entre uma experiência subjetiva e a aceitação ou rejeição de uma sentença básica e [2] que somente a relação lógica é relevante para a racionalidade da aceitação/rejeição de proposições. A primeira é verdadeira; a segunda é falsa; [enquanto] as premissas do argumento anti-indutivista são: [1] que proposições básicas são carregadas de teoria e [2] que não existe relação de sustentação não-dedutiva, ampliativa. A primeira é verdadeira; a segunda é falsa
.

Essa configuração, contudo, somente aparece porque Haack distinguiu o que Popper tinha tratado como indistinto. Ela supõe que a causa para Popper não ter distinguido os argumentos contra o psicologismo e contra o indutivismo estaria no fato de tal procedimento fragilizá-los. No entanto, devemos lembrar que Popper afirmou a irrelevância da observação para a justificação, ele não afirmou que a convenção não observa logicidade no procedimento de aceitação ou rejeição de uma sentença. Haack, entretanto, parece considerar toda justificação como sendo lógica e toda lógica justificacionista, o que perturba a análise. Mesmo assim, os argumentos que apresenta, parece, devem ser avaliados. Ocorre que as segundas premissas, tanto do primeiro como do segundo argumentos não condizem com a proposta popperiana. Corretamente, Haack identifica-as como falsas, mas elas não representam uma síntese adequada da epistemologia de Popper e, assim, ela está distante de impor o pretensioso xeque-mate ao autor.

Popper teria preferido tratar psicologismo e indutivismo como “dois lados da mesma moeda (verificacionista)”, o que redundou no seguinte raciocínio: “a suposição antipsicologista considera que somente relações lógicas são epistemologicamente relevantes, a suposição antiindutivista considera que somente relações dedutivas são lógicas; juntamente, portanto, isso implica que somente relações logicamente dedutivas são epistemologicamente relevantes”.

A formulação do argumento é válida e, também corretamente, Haack lembra que o antipsicologismo e o antiindutivismo são a condição de sustentabilidade de todo o discurso epistemológico do falibilismo de Popper. Segundo ela, a distinção entre descoberta e justificação e a difamação do contexto da descoberta como envolvendo questões que podem interessar à psicologia ou à sociologia, mas não à filosofia da ciência, bem como sua proposta de “Epistemologia sem um sujeito conhecedor”, evolucionária, em um mundo três, habitado unicamente por proposições e suas relações lógicas, confirmam essa posição.

Ao considerarmos válido o argumento de Haack, cujas premissas do antipsicologismo e antiindutivismo permitem inferir legitimamente que “somente relações logicamente dedutivas são epistemologicamente relevantes”, nos colocamos na obrigação de aceitar sua conclusão; pelo menos, se aceitarmos que suas premissas são verdadeiras. Temos um silogismo categórico que afirma: 1a premissa: Toda relevância epistemológica é lógica; 2ª premissa: Toda lógica é dedutiva; Conclusão: Toda relevância epistemológica é dedutiva. Representada em conjuntos, mais claramente se demonstra a impossibilidade de duvidar da conclusão.

Permanece, porém, a possibilidade de questionar a verdade das premissas, eis o que tentaremos agora, sob pena de concordarmos com Haack de que não há solução ao problema da base empírica nos limites popperianos. A proposta epistemológica de Popper, estando suscetível ao ceticismo profundo, para o qual a ciência não está “nivelada negativamente” ao “controle da experiência” conduz, segundo ela, “a que teorias científicas não podem mais ser demonstradas falsas do que demonstradas verdadeiras”, o que significa um “profundo fracasso” dessa filosofia.

Ocorre que a primeira premissa do argumento de Haack é falsa, ela foi extraída da inadequada formulação do primeiro argumento, e agora o erro se aprofunda. Popper não trabalha com absolutos, suas conjecturas não pretendem totalidades e sua consciência da fragilidade de qualquer proposição não pode ser compreendida senão como um apelo à modéstia. Ele não concordaria com a formulação da primeira premissa do argumento anterior.”

---
É isso!


Fonte:
REMI SCHORN: “O PROBLEMA DA VERDADE DO CONHECIMENTO NO RACIONALISMO CRÍTICO”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul como requisito para a obtenção do grau de Doutor em Filosofia. Área: Filosofia do Conhecimento e da Linguagem Orientador: Prof. Dr. Eduardo Luft). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!