Breve histórico do ABORTO

Não Nascer: Breve Histórico do Aborto


"O aborto é a expulsão, espontânea ou provocada, do embrião ou feto do útero antes do momento em que ele se torna viável. O feto é considerado inviável antes de 20 semanas completas de gestação, sendo o aborto considerado espontâneo quando interrompido natural ou acidentalmente; e provocado, quando causado por uma ação humana deliberada. A palavra aborto tem sua origem no latim abortus, derivado de aboriri (perecer), ab significa distanciamento e oriri nascer (Koogan & Houaiss, 1999). O aborto, através da história, era utilizado como forma de contracepção e mantido como prática privada até o século XIX, estando sempre perpassado por questões morais, éticas, legais e religiosas, as quais perduram até hoje (Marques & Bastos, 1998).

Segundo Marques e Bastos (1998) e Schor e Alvarenga (1994), a prática do aborto é antiga e conhecida em todas as épocas e culturas, tendo um sentido e significado específico em cada uma delas. Sobre isto, Pattis (2000) acrescenta que o aborto foi exercido por todos os grupos humanos até hoje conhecidos, embora possuam concepções, motivações e técnicas completamente diferentes ao longo do tempo.

Tem-se registro de que o aborto acontecia desde a antiguidade, sendo mencionado no Código de Hamurabi, criado pela civilização babilônica no século V a.C.. Neste Código, o aborto era referido como crime praticado por terceiro, e caso a prática abortiva resultasse na morte da gestante, o alvo da pena era o filho do agressor. O Código Hitita, criado no século XIV a.C., também considerava crime o aborto praticado por terceiros, sendo este punido com uma pena pecuniária, na qual o valor dependia da idade do feto (Teodoro, 2007).

Existem também menções ao aborto nos escritos Egípcios sobre contracepção que datam de 1850 a 1550 a.C., nos quais se falava de receitas com ervas, cujas propriedades químicas, descobertas com a ciência moderna, poderiam ser contraceptivas ou causar à mulher aborto e infertilidade (Riddle, 1992; Teodoro, 2007). De uma forma geral, os povos antigos como os Assírios, Sumérios e Babilônicos possuíam leis que proibiam o aborto por razões de interesse social, político e econômico. Na Grécia, o aborto era realizado como forma de limitar o crescimento populacional e mantê-lo estável. Era uma prática bastante utilizada pelas prostitutas e defendida pelos principais pensadores da época, como Platão e Aristóteles. Apesar das civilizações Gregas e Romanas permitirem o aborto, este poderia ser considerado crime quando ferisse o direito de propriedade do pai sobre um potencial herdeiro. Isso acontecia porque tais civilizações eram patriarcais e o homem detinha o poder absoluto, havendo uma necessidade de um herdeiro para a sucessão do poder. Nesse sentido, o aborto era considerado crime devido a um interesse político, não havendo referência ao direito do feto à vida.

Em alguns povos indígenas, o aborto tem um sentido diferente de contracepção ou de interesses políticos e econômicos. Em tribos da América do Sul, o aborto acontece em função da maternidade, isto é, todas as mulheres grávidas de seu primeiro filho abortam para facilitar o parto do segundo filho. Em outros povos, aborta-se por se considerar o feto endemoniado, por jovens terem engravidado antes de serem iniciadas e também por fatores ligados à condição do pai (quando o bebê tem muitos pais, quando o pai for parente ou estrangeiro ou quando o pai morre). Pode acontecer também devido à impossibilidade de se seguir o grupo nômade ou pela escassez de alimentos. Em alguns casos, como em uma tribo da Austrália Central, o aborto é realizado na segunda gravidez e o feto é comido devido à crença de que fortalecerá o primeiro filho (Pattis, 2000).

Com o advento do cristianismo, o aborto passa a ser definitivamente condenado. No entanto, no século XIV, com as idéias de São Tomás de Aquino de que o feto não teria alma, ocorre uma maior tolerância da Igreja ao aborto. Na própria Bíblia, não existe uma referência direta ao aborto, a não ser em caso de adultério ou aborto acidental. Na verdade, a Bíblia faz referência aos costumes judaicos sobre o direito de defender a honra e a dignidade. Desse modo, se o homem suspeita que sua mulher seja infiel deve levá-la a um sacerdote, e este é instruído a dar-lhe a água amarga da maldição, como citado em Números 5:27-28:

Se ela se contaminou e foi infiel ao seu marido, logo que a água amarga da maldição entrar nela, seu ventre ficará inchado, seu sexo murchará, e a mulher ficará maldita entre os seus. Se a mulher não se contaminou, se estiver pura, não sofrerá dano e poderá conceber
(p.148).

Em outras palavras, se a mulher abortar ao beber a água amarga, ela será culpada por adultério. Isto se mostra contraditório, na medida em que a Igreja condena o aborto, mas utiliza-se de um “método” abortivo para julgar uma possível mulher infiel. A outra citação da Bíblia que faz referência ao aborto é em Êxodo 21:22-25, quando esta fala de ferimentos não mortais:

Numa briga entre homens, se um deles ferir uma mulher grávida e for causa de aborto sem maior dano, o culpado será obrigado a indenizar aquilo que o marido dela exigir, e pagará o que os juízes decidirem. Contudo, se houver dano grave, então pagará vida por vida, olho por olho, dente por dente, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe
(p.89).

É somente em 1869 que a Igreja Católica declara que a alma faz parte do feto, condenando o aborto e os métodos contraceptivos. Pode-se perceber que o aborto, ao longo da história, era permitido ou proibido dependendo dos interesses econômicos e políticos de cada época.

De acordo com Galeotti (2004), existe um marco divisório na história do aborto, que seria o século XVIII, principalmente após a Revolução Francesa. Nesse período, passou-se a privilegiar o feto, pelo fato deste tornar-se um futuro trabalhador e soldado. Antes disso, este era considerado somente um apêndice do corpo da mãe, e o aborto era uma questão unicamente da mulher, já que só ela poderia testemunhar sua gravidez. No início do século XIX, Schor e Alvarenga (1994), dizem que houve um aumento no número de abortos devido ao êxodo rural, quando as pessoas tinham péssimas condições de vida na cidade. Nesse contexto o aborto representava uma ameaça à classe dominante, pois implicava uma redução da mão-de-obra para as indústrias. Além disso, houve um avanço na ciência médica com as descobertas da embriologia, passando a prática do aborto a ser vista como perigosa para a saúde da mulher. Tais acontecimentos são os precursores das legislações punitivas de alguns países no fim do século XIX e início do século XX.

No século XX, na União Soviética, devido à nova economia emergente, as políticas sociais são revistas no sentido de dar garantias à saúde da mulher trabalhadora, sendo o aborto legalizado em 1920. Na França ocorre o contrário; com a queda populacional provocada pela primeira guerra mundial, o país passa a adotar uma política natalista, proibindo radicalmente o aborto. Na Segunda Guerra Mundial, com a ascensão do Nazifacismo, o aborto era considerado um crime contra a nação e sua proibição se manteve até a década de 60, com exceção dos países socialistas, como citado anteriormente, escandinavos e do Japão. Nos países escandinavos (Dinamarca, Islândia e Suécia), o aborto foi legalizado devido a uma forte tradição protestante luterana, tornando-os mais abertos a uma reforma sexual. No Japão, o aborto foi liberado no pós-guerra como forma de controle de natalidade, sendo o objetivo impedir o aumento da miséria, tendo em vista a grave crise econômica do país nesse período. Essa lei se mantém até os dias atuais e tem provocado uma drástica redução da taxa de natalidade no país. Nas décadas de 60 e 70, com a nova posição da mulher na sociedade, a ascensão do Movimento Feminista e a maior liberdade sexual, o tema do aborto passa a ser mais recorrente e alguns países começam a liberá-lo (Marques & Bastos, 1998; Schor & Alvarenga, 1994).

Entre os poucos países que liberam o aborto, destacam-se os Estados Unidos, que legalizaram o aborto na maioria dos seus estados na década de 70, após o caso Roe versus Wade ter parado na suprema corte americana. Jane Roe (nome fictício de Norma McCorvey), uma jovem de 20 anos, lutou pelo direito de abortar no Texas, onde o aborto era considerado crime, podendo a pena chegar a cinco anos de prisão. Após esse caso, a Suprema Corte americana chegou à conclusão de que leis contra o aborto violam um direito constitucional à privacidade; afirmaram que a interrupção da gravidez até o 1° trimestre não afeta a saúde da mulher; e que “pessoa” no contexto constitucional não se refere a “não nascido” (Vinhas, 2005).

No Brasil, o aborto seguiu esse panorama mundial e tem-se registro dessa prática desde a colonização. A prática do aborto já era realizada no Brasil pelas mulheres indígenas, como também em Portugal, embora por razões diferentes. No início da colonização, Freyre (1933/1981) coloca que os índios costumavam fugir das missões jesuítas devido à segregação em que viviam, pela violência que sofriam dos missionários e pela miséria. Diante dessa falta de base e apoio econômico, muitas famílias se dissolveram, o que fez aumentar a mortalidade infantil e diminuir a taxa de natalidade, sendo esta também ocasionada pelos abortos praticados pelas mulheres indígenas na falta de maridos e pais que lhes dessem apoio.

Segundo Del Priore (1994), no período colonial existia uma política de ocupação no qual se proibiam as relações mestiças ou relações que o Estado e a Igreja Católica não pudessem controlar. O papel da mulher era somente o de reproduzir, sendo proibidas outras formas de realização, que não a conjugal e familiar; e a imposição do matrimônio, para garantir o aumento da população. Nesse sentido, nessa época o aborto ia contra o que estabelecia o Estado e a Igreja, na medida em que realizava um controle demográfico. A perseguição ao aborto também tinha outra causa, este poderia ser fruto de uma ligação fora do matrimônio, sendo entendido como um mau fim de uma situação irregular e a prole bastarda feria os interesses mercantilistas da metrópole, como também da Igreja.

Nesse período existia um enorme preconceito com as mulheres que realizavam um aborto, devido ao pouco conhecimento anatômico do útero, havendo assim, por parte dos médicos e da igreja, um diagnóstico moral do aborto, como comenta Del Priore (1994):

a Igreja perseguia o aborto (...), também porque era denotativo de ligações extraconjugais, enquanto que a medicina passava a responsabilizar a mulher diretamente pelo aborto, e em última instância, pela existência de suas femininas “paix es”, o metabolismo venal e perigoso que as afastava da vida familiar. Apenas no casamento a mulher estaria a salvo de tantos preconceitos (...). Ao resistir ao aborto as mulheres estariam reforçando uma demografia pródiga em filhos, colocando seus corpos a serviço das demandas do Estado e da Igreja, numa função reprodutiva que ainda perdura.
(s/p).

Acreditava-se, como afirma Del Priore (1993), que o feto só tinha vida depois de 40 dias, então o aborto era aceito se acontecesse antes desse período ou em caso da mulher grávida estar doente e precisasse tomar remédio que indiretamente o provocasse. Na verdade, a perseguição ao aborto se devia muito mais a uma questão de normatização da sexualidade e de interesses políticos e econômicos do que em prol da vida de uma criança, pelo fato de nessa época ainda não haver uma preocupação e proteção para com ela como nos dias atuais.

O aborto no Brasil Colonial feria a condição feminina, na verdade sua natureza, qual seja, a maternidade. Residia na maternidade, como coloca Del Priore (1993), o poder da mulher de redimir seus pecados, principalmente o pecado original, cabendo a esta, portanto, a grande responsabilidade de, enquanto boa mãe, salvar o mundo inteiro. De acordo com Engel (2004), uma mulher que não quisesse ou não pudesse ser mãe era considerada anormal e para esta não haveria salvação, visto que os médicos da época consideravam que a única solução para a insanidade feminina era a maternidade.

Embora houvesse uma forte repressão ao aborto, as mulheres ainda o realizavam diante das péssimas condições em que viviam no período colonial, devido à pobreza e ao abandono, além da tentativa de esconder a ilegitimidade dos filhos. As mulheres, em sua maioria, não tinham família, eram mães solteiras e seus filhos eram fruto de relações extraconjugais com os colonizadores portugueses. Dessa forma, a alternativa encontrada pelas mulheres diante dessa situação era recorrer ao infanticídio e ao aborto (Venâncio, 2004).

As práticas abortivas no Brasil colonial variavam desde chás e poções até golpes na barriga, saltos, levantamento de peso, indução de vômitos e diarréias, além da introdução de objetos cortantes, sendo estas orientadas, na maioria das vezes, por parteiras e benzedeiras. Era comum tais práticas causarem a morte da mãe. Como fala Del Priore (1993), “ao tentar livrar-se do fruto indesejado, as mães acabavam por matar-se. O consumo de chás e poções abortivas acabava por envenená-las” (p. 301).

No que se refere ao aborto nesse período, no Nordeste brasileiro não há referência direta a essa prática, no sentido de ser diferente dos outros estados brasileiros, mas podemos fazer algumas inferências, tendo em vista as peculiaridades da economia nessa região. A economia, segundo D’Incao (2004) e Falci (2004), se baseava principalmente na cana-de-açúcar no litoral e do gado e algodão no sertão, utilizando-se mão-de-obra livre e escrava. Devido à queda da economia e do aumento populacional, tornava-se caro comprar escravos e a mão-de-obra passou a ser a dos próprios nascidos na região. No Nordeste, principalmente no sertão, não havia a necessidade de que a força de trabalho fosse especializada. Sendo assim, as mulheres pobres e escravas, assim como os seus filhos, eram agregados às famílias dos fazendeiros e utilizadas como mão-de-obra. Diante desse panorama, podemos dizer que provavelmente a incidência de abortos nessa região era menor, na medida em que, apesar da evidente exploração da mulher e de seus filhos, ela ainda possuía algum tipo de apoio e proteção dos fazendeiros, ao invés dos frequentes abandonos e da miséria que sofriam as mulheres nas grandes capitais do país.

Durante muito tempo o aborto no Brasil foi considerado pelas elites dominantes juntamente com a Igreja Católica um desregramento moral e, devido à sua crescente incidência, surgiu a necessidade da criação de uma legislação que proibisse tal prática. O primeiro código criminal que falava especificamente da proibição do aborto data de 1830, no qual era punida qualquer pessoa que tentasse realizá-lo ou fosse cúmplice na tentativa. No Código Penal de 1890 passou-se a punir a mulher que realizasse o próprio aborto, mas ocorreram alguns atenuantes, caso o aborto fosse para ocultar a própria desonra. Podemos observar que o código criminal brasileiro teve forte influência dos ideais católicos, no sentido de que as leis sempre prezavam pela conduta moral e pelos bons costumes da família e dos cidadãos, principalmente no que se refere à conduta feminina, considerada na época a responsável pela base da família cristã (Predebon, 2007).

Predebon (2007) afirma que, desse período em diante, poucas mudanças ocorreram na legislação penal no que se refere ao aborto e à mulher. Somente com a criação do novo código penal brasileiro, em 1940, ocorrem alguns avanços quanto aos Direitos da Mulher. Nesse código, o aborto passa a ser previsto em algumas situações, como o risco de vida para a mulher e em caso de estupro. Embora tenha ocorrido um avanço no código ao se considerar a mulher como cidadã e possuidora de direitos, ainda há uma condenação moral ao aborto implícita neste, tendo em vista a influência histórica da Igreja Católica na constituição de todos esses códigos penais. Somente na década de 70, com a realização de estudos na área acadêmica sobre Saúde Pública, é que o aborto passa a ser problematizado como um fato social e não mais como um desvio da moral. Foi por meio desses estudos que se mostrou a alta incidência do aborto, sua relação com a pobreza e a falta de serviços de planejamento familiar. Na década de 90, ocorre um avanço na área de Planejamento Familiar, mas com pouca disseminação no país (Marques e Bastos, 1998). A partir desse momento, com a criação do SUS e o avanço do movimento feminista, o aborto considerado um problema de saúde pública torna-se pauta nos principais fóruns sobre Saúde da Mulher, iniciando um movimento para a sua descriminalização.”

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Fonte:
Melina Séfora Souza Rebouças: “O ABORTO PROVOCADO COMO UMA POSSIBILIDADE NA EXISTÊNCIA DA MULHER: REFLEXÕES FENOMENOLÓGIGO-EXISTENCIAIS”. (Dissertação elaborada sob a orientação da Profª. Drª. Elza Dutra e apresentada ao Departamento de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2010.

Nota
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