História da submissão e resistência feminina

“A prática da submissão feminina data de um longo período, revelando que a mulher deveria receber funções de menor importância com relação às atribuições dedicadas aos homens. Com o passar dos tempos, cuidar do próprio filho se tornou menos atraente, ficando este sobre a dependência da mãe enquanto o pai saía para caçar, considerando que, nas comunidades primitivas, a maternidade era uma função reconhecida e importante, idéia ainda presente em algumas comunidades, mas esquecidas pelas sociedades industrializadas. Há muito, recai sobre a mulher, o discurso de que esta merece se dedicar às tarefas domésticas, formando com isso uma consciência de submissão das funções femininas.

A relação de subordinação foi fomentada pela cultura, juntamente com as práticas sociais em que as mulheres se responsabilizariam pelo nascimento e criação dos filhos, enquanto os homens pelos proventos do lar. Essa relação de submissão também se repercutiu nas funções religiosas, políticas e sociais. Ao longo da história diferentes comunidades construíram diversos modos de conceber o espaço, o tempo e a organização social dos indivíduos nesse meio. (LOURO, 1999, p.60), menciona que aos poucos as pessoas foram aprendendo as diferentes formas de valorização do tempo do trabalho e tempo do ócio; o espaço da casa ou o da rua; delimitando os lugares permitidos e os proibidos (e determinaram os sujeitos que podiam ou não transitar por eles); apontaram formas adequadas de cada um ocupar o tempo. Através de muitas instituições como Igreja, Estado e Família, juntamente com as práticas socais, essas concepções são apreendidas e interiorizadas, tornando-se “naturais”. E a escola ao logo do tempo fez bem esse papel de ensinar e delimitar espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o que cada um pode ou não pode fazer, ela separa e institui. Informa o lugar dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas. Dessa forma cada um foi aprendendo uma maneira de se comportar dentro dos modelos a serem seguidos. Aos dominantes o direito da inteligência e da dominação dos despossuídos; às mulheres o direito de aprender a fazer bordado, costurar, cozinhar, cuidar dos filhos e depois o direito de serem
professoras primárias.

Para (SAFFIOTI, 1987, p.12), criou-se a idéia de que as diferenças biológicas faziam da mulher uma pessoa com menos força física em um tempo em que essa força era essencial para movimentar os trabalhos no campo onde as máquinas e a tecnologia não se faziam presentes. Ainda que as mulheres tenham se dedicado à agricultura, suas funções ganharam desprezo por quase todas as sociedades. Aos poucos foram aceitando o lugar a elas reservado no contexto familiar, social e religioso. Se houve resistência contra essa forma de submissão, o discurso imbuído das práticas sociais fez questão de acalmar e a isso tem se dedicado ao longo de toda a história. Porém alguns focos de resistências, manifestado através das lutas coletivas ou individuais, apesar das dificuldades, permaneceram vivos e ressurgem na atualidade através dos movimentos sociais feministas que não aceitam a dominação biológica ou cultural da mulher.

Essa consciência foi adquirida devido ao discurso de reação gerado contra a definição de funções específicas dirigidas à mulher na família e na sociedade. É o mesmo discurso elaborado para dar vazão à submissão e limitação do papel da mulher que oferece margem para o surgimento do discurso contrário, servindo como ponto de resistência, - ‘o reverso da medalha’, assim como o discurso racista gerou os debates anti-racistas. Exemplificado aqui pela a análise de Foucault (1996, p.9), dizendo que o discurso pode ser perigoso, pois serve para cercear, coibir, padronizar ou liberar vias de libertação. O discurso pode ser instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. Ele veicula e produz poder; reforça-o mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. E nas brechas deixadas pelos discursos surgem diferentes formas de reações manifestadas através dos pequenos gestos e mudanças de atitudes com relação homem-mulher que aos poucos vão se encaminhando para mudanças substanciais na cultura de uma determinada sociedade.

Para Simone Beauvoir (1980), ninguém nasce mulher, torna-se mulher, por essa forma, os papéis femininos e masculinos foram criados pela cultura e de maneira alguma são modos de comportamentos natos da mulher ou do homem. (LOURO, 1999, p.22), reforça essa idéia, confirmando que a distinção biológica ou sexual serve para justificar a desigualdade social. Para ela, não se pode negar a diferença biológica, mas é preciso enfatizar que essas diferenças na maioria das vezes são construções sociais e históricas. E são construídas no âmbito das relações sociais entre homens e mulheres, nessas relações são também arquitetada, as desigualdades de classe de raça e de gênero.

(BOURDIEU, 2002, p.46-50) ao falar da dominação masculina revela-nos que as estruturas de dominação são produtos de um trabalho incessante, (histórico) de reprodução para qual contribuem agentes específicos (entre os quais os homens, com suas armas como violência física e a violência simbólica) e Instituições, Famílias, Igrejas, Escola e Estado participam da propagação e permanência dessa forma de dominação, fazendo às relações de dominação serem vistas como naturais. E que a dominação masculina e a submissão feminina só pode ser compreendida dentro dos efeitos duradouros que a ordem social exerce sobre a mulher e homem. Ou seja, a submissão é resultante das estruturas geradas em um determinado tempo e espaço. E sua eficácia se deve aos mecanismos que essas estruturas desencadeiam e contribuem para a sua reprodução.

A reprodução desses mecanismos recorrendo novamente a Foucault (1988, p.91-96), são incorporados nos gestos e desejos que são veiculados através do poder no qual o indivíduo está diretamente ligado. Poder que é ao mesmo tempo efeito e centro de transmissão, e que não se encontra em posição de exterioridade com respeito a outros tipos de reações, mas lhes são imanentes; efeitos imediatos das partilhas, desigualdades e desequilíbrios. E todo poder se exerce com objetivos, não significando com isso que a escolha ou decisão de um sujeito seja realizada individualmente. Mas as relações também tem pontos de resistências que muitas vezes debilitam ou servem de instrumento de poder. Da mesma forma que um debate pode favorecer ao poder constituído, pode também servir para focos de revolta social. Assim, quando vem à tona, debates sobre a condição da mulher, cria-se concomitantemente estratégias de resistência.

Para (FOUCAULT, 1988, p.91), o poder nunca está de um determinado lado, ele está distribuído em forma de rede por todas as partes sem se prender ao um único espaço ou a uma pessoa ou grupo, dessa forma, as mulheres também usufruem do poder, porém não do mesmo poder distribuído aos homens, estes últimos também não têm os mesmos poderes que organizam e norteiam a vida de todos. Se todos tivessem os mesmos poderes não haveria lugar para a subordinação. E havendo subordinação seria por aceitação consciente e não por imposição social. “O exercício do poder se constitui em “manobras”, técnicas, “disposições, as quais são, resistidas e contestadas, respondidas, absorvidas, aceitas ou transformadas e o exercício do poder sempre se dá entre os sujeitos que são capazes de resistir”. (Foucault, in Louro, 1999, p.41), nessa capacidade de resistência foi preciso muitos séculos para se construir o discurso de inferioridade da mulher.

Os primeiros discursos que se têm conhecimento referentes ao papel da mulher na sociedade foram traçados na Antigüidade clássica. A mulher era reconhecida como inferior aos escravos e tal sociedade foi organizada para o mundo masculino. As mulheres estavam reservadas para a função doméstica. Os pais tratavam dos casamentos das filhas, que saíam do domínio dos pais e passavam para o domínio dos maridos. Nesse mundo masculino, ficar em casa era uma das virtudes mais honrosas que uma mulher podia ter. Enquanto as mulheres eram preparadas para a vida doméstica, singela e submissa, os homens recebiam cuidados especiais para que se desenvolvesse nesses cidadãos um conjunto de qualidades a nível mental e corporal. Era dever da mulher, amar e o do pai, decidir sobre a vida das filhas e da esposa.

Mas nem todas as sociedades da Antigüidade faziam o mesmo discurso sobre a mulher, citando as referências de (MOTA e BRAICK, 1997, p.37), em Esparta cidade da Antiga Grécia, por exemplo, as mulheres participavam das reuniões públicas e da administração do patrimônio juntamente com seus maridos. Elas eram também, muitas vezes, requisitadas para participarem de treinamentos físicos rigorosos e se prepararem para as possíveis guerras. Mas esta situação parece ser apenas de influência local, onde faltavam braços para guerrear ou pelo fato dos exercícios diários se constituírem em benefícios para a boa formação e resistência do corpo feminino para assim, procriarem filhos do sexo masculino com pré disposição para o treinamento militar.

Com o renascimento retoma-se a necessidade de explicitar o lugar estabelecido para as mulheres, antes, porém, na idade média, elas fizeram parte de constantes discursos, freqüentemente apresentadas como culpadas das maldades ocorridas na natureza ou contra seres humanos. Georges Duby e Michelle Perrot (1991), relatam sobre a situação das mulheres no período renascentista, mostrando as mudanças no vestuário, agora compridos e volumosos revelam uma cintura tornada ainda mais delgada pelo uso de um espartilho, e, quando os costumes mais liberais o permitem, podiam mesmo exibir um peito leitoso e adequadamente empoado e pintado com rouge. E cada gesto, cada movimento feminino deveria refletir a delicadeza e a ternura que se esperava das mulheres, em contraste com a potente virilidade masculina. A literatura do período insistia na fragilidade do sexo feminino e na necessidade da proteção dos braços firmes e musculosos do homem.

Com a industrialização as mulheres foram requisitadas para os trabalhos nas fábricas desempenhando, na maioria das vezes, as mesmas tarefas que os homens realizavam, mas os afazeres domésticos continuaram a recair somente sobre a mulher. Ela surge como uma parceira nos trabalhos fabris, é capaz de fazer a mesma jornada de trabalho de um operário, mas a mentalidade da sua fragilidade não permitiu colocar na balança o resultado de sua produção. Com base nas práticas e nos discursos referentes à mulher tomou-se a decisão de pagar-lhe um salário inferior em relação salário pago aos trabalhadores masculinos. Estes também sofreram com o aviltamento salarial e com a exploração de classe mas a situação industrial lhe ofereceu um grau mais elevado nos salários e nos cargos de chefia. Essa relação também se deu com os trabalhadores negros, mesmo que seja em efeitos meramente psicológicos, onde um trabalhador branco está acima de um trabalhador negro.

Contudo, as mulheres constroem da mesma forma, movimentos de resistência ao modelo de subordinação, especialmente através do movimento feminista do século XX, que lança luz sobre uma forma diferente de recomposição da sociedade, surge uma maneira diferente de pensar a cultura do próprio conhecimento. Essa reflexão é feita por Alain Touraine (1999 p.226). Ele acredita que a vida pode ficar menos desgastante se cada pessoa for respeitada como sujeito e isto, se dá de maneira mais imbricada na relação entre homens e mulheres, principalmente nas relações de igualdade, respeito e valorização às diferenças. Essa ação, para este autor, porá fim à identificação de uma categoria particular de seres humanos como universal, especialmente do poder do homem sobre a mulher. Nesse caso, não será mais possível dar uma imagem central, única, do sujeito humano. Os homens e mulheres são ao mesmo tempo semelhantes como seres ao pensar, trabalhar e agir racionalmente, e são diferentes biológica e culturalmente, na formação de sua personalidade, na imagem de si mesmos e nas relações com o outro.

Para Touraine (p.225), não é o ator dominante, mas o dominado que desempenha o papel principal na recomposição do mundo, isso está demonstrado pelo fato de que são as mulheres, mais do que os homens, que elaboram um modelo de vida recomposto. Este autor nos diz que a masculinidade foi construída sobre a dominação da feminilidade, dessa forma, os homens têm grandes dificuldades de inventar uma forma particular de recomposição de sua personalidade. E o movimento das mulheres, assim como o dos gays e das lésbicas, fez aparecer o sujeito como um esforço de combinação antagônica entre o prazer e a realidade. A liberdade das mulheres é elemento central na construção de sociedade multicultural. É o movimento das mulheres que desempenhou e desempenha ainda um papel motor na mudança cultural que vivemos, conclui Touraine. Esse movimento, seguindo a idéia deste autor, pode ser individual, porque cada sujeito traz em si, elementos do movimento social e cultural.

Concordando com este pensamento e considerando a ordem mundial, destaca-se que o discurso atual está ligado aos grandes grupos econômicos internacionais que procuram impor o consumo e a cultura de massa, subtraindo a subjetividade individual e tentando construir uma identidade universal. Do outro lado, estão os poderes comunitários que lutam para impor uma identidade radical de suas pertenças, (negro, mulher, homossexuais, etc.). Dessa forma, a identidade parece ser forjada para moldar, nivelar, padronizar ou mutilar o sujeito. Mas essa identidade não pode ser tratada como sendo uma identificação estática do sujeito. Ela está em movimento dinâmico e constante de mudança progressiva ligada ao contexto histórico-social ou de reação moral. A identidade não está posta no singular porque ela é formada por diversos fatores implícitos e explícitos, inerentes ou culturalmente constituídos em cada pessoa. A identidade se transforma de acordo com as necessidades internas e com a abertura das vias de comunicação entre outros grupos que se assemelham com aspectos internos e externos de cada identidade. Ela pode ser imposta pela cultura de massa ou pelo poder comunitário, porém havendo espaço para resistência, ela se liberta dos jugos de dominação e se impõe com maior liberdade e fluidez. Esse processo de libertação identitária não é simples e rápido, demanda tempo e compreensão da capacidade de poder individual.”


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Fonte:
DINA MARIA DA SILVA: “Ascensão Social e os Conflitos de Gênero e Raça: MULHERES NEGRAS EM MATO GROSSO DO SUL”. (Dissertação apresentada como exigência final para obtenção do grau de Mestre em Educação à Comissão Julgadora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul sob a orientação da Profª. Dr.ª Ana Maria Gomes). Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Campo Grande – MS, 2003.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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