Mídia e cultura de consumo

IMAGEM: REVISTA REALIDADE, 1967

“A cultura de consumo define-se como o conjunto de práticas e representações que estabelecem uma relação estetizada e estilizada com os produtos. Bourdieu define o estilo de vida (estilização) como sendo “um conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos, mobília, vestimentas, linguagem corporal, a mesma intenção expressiva”. Trata-se de um consumo no qual os atributos simbólicos dos produtos são manipulados em função de uma intenção expressiva. Sob este aspecto, o consumo moderno caracteriza-se pela ênfase dos atributos simbólicos dos produtos, em detrimento de suas qualidades estritamente funcionais e pela sua manipulação na composição de estilos de vida. O consumo foi convertido no espaço de articulação das distinções sociais, hierarquizadas em termos de uma distribuição diferencial de prestígio.

O segundo princípio do modo de consumo inerente à cultura de consumo é a dilatação da dimensão “imagética” do consumo, tratado como estetização do consumo. Neste caso, argumenta Maria Eduarda da Mota Rocha, “destaca-se a construção de universos imagéticos em torno dos produtos, através da conversão dos “ambientes” voltados para o consumo em lugares mágicos, onde a experiência é envolvida por fantasias tecnologicamente produzidas”.

É a inserção da mercadoria em um mundo de sonho onde tudo é possível. O produto ao alcance das mãos e a forma como ele é apresentado nas prateleiras ou mesmo nas telas do televisor ou capas das revistas causam nos indivíduos a sensação de estar muito próximo do objeto oferecido. É como se bastasse estender a mão e satisfazer seus mais íntimos anseios. Não há distância entre objeto de consumo e consumidor, mas uma estreita relação de dependência de um para com o outro. Essa ilusão é criada pela linguagem argumentativa dos textos publicitários, entre outros, que bombardeiam o indivíduo ininterruptamente, através das revistas,
outdoors, televisão, rádio, Internet, etc. Não há como fugir. A informação permeia os indivíduos de todos os lados. O sujeito é chamado à interpretação, interpelado, “recrutado” pela ideologia. Ao informar-nos sobre os mais variados assuntos, sejam relacionados à saúde, à moda, às finanças, à educação, a mídia mantém os indivíduos informados de todos os assuntos que circulam no meio social, em diversos contextos. Todas essas informações levam as pessoas a pensarem, a serem tomadas de preocupação, cautela, necessidade e urgência diante da informação, fazendo com que se tornem relevantes, ou não, em sua vida. Quanto mais são informados, mais se encarregam de sua própria existência e mais o seu “eu” é objeto de cuidados, de auto-solicitudes, de prevenções. Informando permanente e abundantemente sobre os mais variados assuntos, a mídia torna-se um formidável instrumento para formar e integrar os indivíduos. Ao serem postos em contato com outras formações discursivas, outras idéias, outras práticas, os sujeitos são conduzidos inevitavelmente a “identificarem-se”, ou não, em relação ao que vêem e ouvem.

Partimos da idéia de que “diante de qualquer fato, de qualquer objeto simbólico somos instados a interpretar, havendo uma injunção a interpretar”. É através do assujeitamento como sujeito ideológico que ele é conduzido, sem se dar conta, e “tendo
a impressão de estar exercendo sua livre vontade, a ocupar o seu lugar em uma ou outra das duas classes sociais antagonistas do modo de produção”, escreve Pêcheux. Bombardeados por um discurso midiático sobre o corpo, organizado de forma incisiva e dramática, os indivíduos são, inevitavelmente, afetados por ele, o que gera inquietação, interpretação e identificação, ou não, com esses dizeres, de acordo com o imaginário. A língua, na medida em que é suscetível ao equívoco ou ao deslize, permite lugar para a interpretação, assinala Orlandi. A AD procura, então, compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história. Partindo da idéia de que a materialidade da ideologia é o discurso e a materialidade do discurso é a língua, Pêcheux observa que “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido.

Em relação ao trabalho do analista, que consiste em des-superficializar o texto, em verificar como os sentidos estão postos, propomos um mapeamento mais acurado dos discursos da mídia a fim de verificar como ela tem contribuído na volatilidade do século XXI, para fazer imergir novas concepções de feminilidade e constatar se essa “mudança” está realmente provocando um deslocamento de valores.

Dadas suas características, a mídia, em muitos casos, tem substituído a igreja, a escola e a família como instâncias de socialização e de transmissão de saber. É através dela que cada vez mais somos informados sobre o curso do mundo, as novas tendências, as novas manias e comportamentos. Como devemos nos vestir, o que devemos comer, como permanecer jovem, quais os alimentos que nos mantém saudáveis, quais produtos usar? Para todas essas perguntas, os discursos midiáticos têm, em primeira instância, as respostas. Segundo Mariani, isso ocorre pela forma como o trabalho da mídia é elaborado e,

por acreditar ilusoriamente na neutralidade da informação que veicula, como sendo uma simples transcrição dos fatos, a mídia coloca-se como soberana na sua função, e os indivíduos também são tomados por essa “verdade”. Amparada por um diálogo próprio da objetividade da informação, de certa maneira mina as interpretações globais dos fenômenos, em benefício do registro dos fatos e das sínteses de dominante positivista.

Amparada pela “autoria” de peritos, cientistas e diversos especialistas, explicando ao público de maneira direta, clara e acessível o último estado dos fatos, a mídia acaba por desconstruir sentidos e fixar outros, e o faz sob a lógica da objetividade: menos glosas, mais imagens, menos sínteses especulativas, mais tecnicidade. Se, em tempos anteriores, as “grandes ideologias” tendiam a se libertar da realidade supostamente enganadora, colocando em ação o poder irresistível da lógica, da dedução, com explicações decorrentes de premissas absolutas, hoje, a informação enaltece a mudança, o empírico, o relativo, o “científico”. Por esse viés, pondo em voga as novidades e a positividade do saber, a mídia desqualifica o espírito de sistema, propagando um contágio de massa pelas visões totalizantes do mundo, pelos raciocínios hiper-lógicos, favorecendo a emergência de um espírito hiperrealista
, em sintonia com os fatos, apaixonado pelo “direto”, pela sondagem, pelo vivido e pela novidade.

A orientação dos indivíduos pelos valores não desapareceu, mas juntou-se ao apetite realista da informação e da escuta do outro, tornando-se mais abrandada. Um exemplo são as mensagens veiculadas em novelas. Ao trazer à cena uma mulher ou mesmo um homem imerso em cuidados com o corpo, freqüentando academias, spas ou clínicas de tratamento e embelezamento, academias, tais mensagens criam uma “urgência” nos telespectadores no cuidado do seu corpo, atendendo a uma “chamada social”.

Muitas vezes, é pela sutileza e pela sedução de um discurso desprovido de preconceitos que a mídia alavanca novas tendências. Seduzir o público, distrair e apresentar a atualidade “quente” e visar o efeito mais do que a demonstração acadêmica são estratégias e fins visados pela mídia, seja escrita ou imagética. O sociólogo Lipovetsky afirma que, quanto mais existe uma livre escolha e uma individualização, maior será a capacidade de integração, e maiores as possibilidades dos indivíduos inserirem-se e identificarem-se na sociedade, encontrando na mídia o que corresponde às suas expectativas e seus desejos. Essa afirmação reforça a idéia de que ao mesmo tempo em que a cultura de massa individualiza os indivíduos, o elo social também permanece. O binômio individualização-massificação é um efeito que a mídia sustenta.

A divulgação de imagens do corpo faz dele objeto de interesse e curiosidade, e as imagens que o perscrutam evoluem em função das inovações tecnológicas. O olhar “público” que explora a anatomia humana realiza uma ampliação e uma fragmentação extremas da imagem do corpo, que faz sobressair seus mínimos detalhes, adquirindo-se
assim um conhecimento e um controle nunca antes obtido das constituições físicas e das suas divergências e semelhanças. A partir do momento em que jornais, revistas, televisão e internet passam a divulgar imagens, representações desse corpo, o assunto passa a ser “da ordem do dia”, criando uma “urgência” por parte dos sujeitos de identificá-lo num contexto social.

Os veículos de comunicação, muitas vezes aparentemente “desinteressados”, vendem ilusões bem fundamentadas. Essas ilusões, ao tomarem como referência o discurso científico dos especialistas (médicos, psicólogos, nutricionistas, esteticistas, professores de educação física, entre outros), legitimam os discursos sobre a vaidade feminina, prometendo perfeição estética, desde que sejam cumpridas, rigorosamente, todas as suas orientações, muitas vezes contraditórias.

Conforme Orlandi, é bom lembrar que “na análise do discurso, não menosprezamos a força que a memória tem na constituição do dizer. O imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem. Ele é eficaz. Não brota do nada: assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas, em uma sociedade, como a nossa, por relações de poder”.218 A maneira como vemos um médico, por exemplo, não nos vêm à consciência de forma aleatória. Ela se constitui nesse confronto do simbólico com o político, em processos que ligam discursos e instituições. De acordo com a referida autora, podemos dizer que o lugar do qual fala o sujeito é constitutivo do que diz. Assim, se o sujeito fala a partir do lugar de médico, suas palavras significam de modo diferente do que se falasse do lugar de um leigo. “Como nossa sociedade é constituída por relações hierarquizadas, são relações de força, sustentadas no poder desses diferentes lugares que se fazem valer na comunicação”.

A informação midiática tem exercido, sem dúvida, um papel efetivo não apenas na construção da identidade das mulheres, mas também no cotidiano de milhares de pessoas que, interpeladas pelos discursos especializados, procuram a construção da boa forma e da saúde. Ao mesmo tempo em que veiculam e propagandeiam os padrões estéticos em voga, os meios de informação anunciam a gradativa transformação do corpo nos últimos tempos. A indústria cultural, ao visibilizar modelos de comportamento de certo segmento social, (re) produz representações sociais. Por outro lado, a “imposição” sócio-cultural da forma física de determinado grupo tem levado ao fortalecimento das novas tendências.

Numa sociedade tão mista quanto a nossa em padrões econômicos, assemelhar-se à classe mais abastada, imitando-a em seus modos de vestir, de se produzir, é recurso de que as classes menos privilegiadas economicamente dispõem para não se sentirem tão excluídas do meio sócio-econômico. Tingir os cabelos de loiro, ser magra e vestir-se com roupas da moda representa uma ascensão ao mundo das “celebridades”, tal como veicula a novela da Rede Globo.

Ao citar personalidades como exemplos, a mídia seduz a grande massa a seguir seus comportamentos, suscitando a idéia de inclusão do restante da população, que se “espelha” nestes, para perseguir o tipo de corpo e de comportamento “sugerido” pelos meios de comunicação. A propagação de imagens de mulheres bem-sucedidas nos negócios, preocupadas com a forma do corpo, vende a ilusão, ainda que inconsciente, de que o sucesso financeiro, social e amoroso depende do “estar em forma”. Essas mulheres exercem “o poder de dominação na economia de trocas imagéticas, já que ostentam um padrão estético tido como exemplar pela cultura dominante e veiculado por toda a indústria cultural”, conclui César Sabino.


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Fonte:
Aureci de Fátima da Costa Souza: “O Percurso dos Sentidos Sobre a Beleza Através dos Séculos – Uma Análise Discursiva”. (Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Departamento de Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, como requisito para obtenção do título de Mestre em Lingüística, na área de Análise do Discurso (AD). Orientadora: Prof ª Dr. Eni Puccinelli Orlandi). Campinas-SP. 2004.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada.

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