A morte em Edgar Morin

“Apontado como um dos principais pensadores da atualidade Edgar Morin é autor, dentre outras obras, de O homem e a morte (1970), estudo no qual ele se dedica a investigar a complexa relação apontada pelo título. O homem é adaptado ou inadaptado à morte? Segundo Morin, esta é a pergunta capital que orienta implicitamente o seu estudo. Ele afirma que “o luto exprime socialmente a inadaptação à morte, mas, ao mesmo tempo, ele é este processo social de adaptação que tende a fechar a ferida dos indivíduos sobreviventes”.(MORIN, 1997: 80)

O seu trabalho tem como eixo a relação antropobiológica, o duplo e a morte-renascimento. Morin defende que todas as crenças e ideologias da morte tiveram seu desenvolvimento a partir desses três elementos. Estabelece-se, portanto, uma diferença fundamental do estudo de Morin com os trabalhos de Ariès e Bayard. Estes fazem um estudo histórico de longa duração buscando compreender a atitude do homem diante da morte (especificamente do rito mortuário em Bayard) em diversas sociedades e épocas, enquanto Morin, ao contrário, tem como objetivo propor uma ampla discussão acerca da relação homem-morte.

Sendo assim, a introdução geral tem como subtítulo
Antropologia da morte, sendo o termo compreendido por ele como a ciência do fenômeno humano. Sua antropologia da morte mobiliza a pré-história, a etnologia, a história, a sociologia, a psicologia e a psicologia da infância. Assim como Bayard, Morin afirma que o homem é a única espécie que acredita na sobrevivência após a morte, e por isso, acompanha a morte com um ritual funerário. Ainda nas fronteiras do no man’s land já havia a preocupação com a morte. Para Morin, as sepulturas são dados fundamentais da morte humana.

Morin lembra que: “não existe nenhum grupo arcaico, por mais primitivo que seja, que abandone seus mortos ou os abandone sem ritos”. (Morin, 1997: 25). E isso implica na sobrevivência daqueles. Além da ferramenta, a sepultura passa a fazer parte da humanização do homem primitivo, pois ela indica a preocupação com a morte. Se por um lado é possível saber a idade e as determinações da humanidade através da ferramenta, é somente através da sepultura que se pode encontrar a revelação sobre a morte. Uma investigação sobre os dados funerários leva a crer que se havia uma preocupação com as práticas funerárias é porque os primitivos acreditavam na sobrevivência do morto. Do contrário, deixariam os cadáveres insepultos e prosseguiriam. As práticas relativas aos cadáveres ajudam, portanto, a conhecer os fenômenos humanos.

Percebe-se que desde os primeiros tempos o ser humano tem consciência da morte, a reconhece como um fato. Juntamente com esse reconhecimento vem também o horror a ela que percorrerá toda a história da humanidade. O homem teme a morte porque com ela ele perde a sua individualidade, por isso, quanto mais próximo for o morto, mais violenta será a dor. Essa perda da individualidade resulta do que Morin chama de “traumatismo da morte”, que juntamente com a consciência da morte e a crença na imortalidade formam o triplo dado antropológico.

Mas desde já é notável constatar que nenhuma sociedade, inclusive a nossa, conheceu ainda a vitória absoluta, seja da imortalidade, seja da consciência desmitificada da morte, seja do horror da morte, seja da vitória contra o horror da morte
(MORIN, 1997: 38).

Interessante notar que, no entanto, em tempos de guerra este medo se dissipa. “A morte horrível retorna mais tarde, quando a guerra já se acabou”. (MORIN,1997: 42) Esta atitude da sociedade diante da guerra é denominada de “regressão geral da consciência”, estado no qual o indivíduo se endurece, se encoraja, numa atitude de civismo. A sociedade, ao se afirmar em relação ao indivíduo, anula quase completamente a morte.

De volta à pergunta: O homem é adaptado ou inadaptado à morte? Morin afirma que “esta natureza é a espécie humana, que , como todas as outras espécies evoluídas, vive da morte de seus indivíduos: o que nos deixa entrever uma inadaptação interior, geral, do homem à natureza, mas uma inadaptação íntima do indivíduo humano a sua própria espécie”. (MORIN, 1997: 55).

Outras espécies, além da humana, conhecem a morte e por isso, têm o instinto de defesa, de sobrevivência. Na verdade, não é possível definir até que ponto os animais têm “conhecimento” da morte. No entanto, está claro que não é o indivíduo que conhece a morte e sim a espécie. Eles não conhecem a morte como perda da individualidade, mas há exceções, como no caso dos cães que sentem a perda do dono. Já para o homem, seu conhecimento da morte é exterior a ele. Ela é para o homem algo irreal, “incrível”. Morin a define como uma cegueira em relação à morte. Morin afirma também que: “A consciência da morte não é algo inato, e sim produto de uma consciência que capta o real. É só ‘por experiência’, como diz Voltaire, que o homem sabe que há de morrer. A morte humana é um conhecimento do indivíduo”.(MORIN, 1997: 61).

Mas se a espécie humana conhece a morte e por isso a recusa, o que dizer de comportamentos como o assassinato e o canibalismo? O ato de comer a carne do seu semelhante é praticado desde a pré-história com diversas finalidades e essa prática só desaparece quando o homem é visto como indivíduo. Já no assassinato, vemos que o homem é a única espécie a matar seu semelhante sem necessidade vital. Inclusive, desenvolveu armas somente com este objetivo. Para o autor: “Hoje com a arma atômica, o homem é capaz de destruir a espécie humana, e nenhum freio da espécie pode nos garantir que não o fará”.(MORIN, 1997: 70).

O risco de morte é também um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que tem horror da morte, o indivíduo se expõe a ela. Na guerra, por exemplo, corre-se o risco de morte por martírio, por prestígio, por orgulho, por valores.

Além da antropologia, Morin analisa a morte também no âmbito da biologia. “É aí que poderemos apreender, através da identidade do movimento de regressão da espécie e progressão do indivíduo, a realidade humana fundamental”. (MORIN, 1997: 83). Segundo ele, o ser humano se assemelha mais ao feto e esse fato gera uma simplificação no organismo, fazendo dele um ser indeterminado que se traduz em uma não-especialização fisiológica:

A criança-homem, mais nua que um verme, é o ser mais deserdado da natureza. Chega num mundo onde nenhuma especialização fisiológica, nenhum hábito hereditário lhe servirá de apoio natural, de sistema de autodefesa. Tem de aprender, não apenas o que é propriamente humano (a linguagem, os comportamentos sociais), mas o saber inato no animal (andar, nadar, se acasalar, parir etc)
(MORIN, 1997: 85)

Nessa indeterminação o homem está aberto a todas as participações, é ilimitado. É um ser instável, uma espécie de espelho do mundo biológico, e sua indeterminação faz com que ele imite a natureza, os animais, as plantas. No entanto, o homem tem a seu favor a mão e o cérebro. Com eles, a espécie irá determinar o seu meio. Morin profetiza que o corpo do homem não evoluirá para uma especialização, mas sim se desespecializará cada vez mais, se adaptando e adaptando o mundo em que vive.

Através da evolução da técnica o homem se apropria do mundo e dos outros homens, abrindo-se ilimitadamente para o mundo. Além disso, o homem adquiriu a linguagem, sistema que permite criar, organizar e acumular o saber. As palavras nomeiam as coisas e permitem também exprimir a afetividade. “Portanto, com a palavra e o símbolo, o homem antropomorfiza a natureza: ele lhe atribui determinações humanas, e as recorta em coisas”. (MORIN, 1997: 94) [...]

O renascimento do morto é uma crença universal nos povos arcaicos e está presente na humanidade contemporânea. Esse fato denota uma forma de acreditar na própria imortalidade. Morin afirma que “Toda uma gama de práticas, no decurso das cerimônias funerárias, visa iniciar o morto para sua vida póstuma, e garantir-lhe a passagem, seja para o novo nascimento, seja para a vida particular do duplo”. (MORIN, 1997: 119). Um exemplo contemporâneo desse comportamento arcaico é transferência de nomes de antepassados mortos aos recém-nascidos.

A analogia morte-fecundidade está presente em quase todas as civilizações, pois nas mais diversas mentalidades a morte sempre provoca um nascimento e vice-versa. Isso fica bem evidente nos ritos de iniciação: o neófito parte para uma nova vida, ou seja, para o renascimento. A morte-renascimento apela também para a purificação, o qual começa com o ritual do banho. Além da água, a terra é também um elemento ligado ao renascimento. Isso porque ela está relacionada à maternidade, é a terra-mãe. Por conseqüência, ela simbolizará também a pátria. São diversos os exemplos de pessoas, que estando fora de seu país, desejam voltar para ser enterrado na terra onde nasceram. Os povos arcaicos enterravam na posição fetal, ou seja, lembrando o nascimento.

A crença no renascimento abre uma brecha para outra crença que se manifesta nas concepções arcaicas. É a manifestação do duplo através do qual o indivíduo pensa assegurar sua vida após a morte. Desde que o homem passou a enterrar o morto com seus pertences percebe-se a crença de que o morto tem vida própria.

Mas este duplo não é tanto a reprodução, a cópia exata
post mortem do indivíduo morto: ele acompanha o vivo durante sua existência inteira, ele o duplica, e este último o sente, o conhece, o ouve o vê, conforme sua experiência quotidiana e quotinoturna, em seus sonhos, sua sombra, seu reflexo, seu eco, sua respiração, seu pênis e até seusgases intestinais.(MORIN, 1997: 234).

Assim, o luto e os tratamentos funerários tem como objetivo garantir a sobrevivência do duplo. Por esse motivo as sociedades modernas mantêm as mesmas concepções arcaicas com relação a tais práticas. Nas sociedades arcaicas, o duplo vela enquanto a pessoa dorme e se manifesta também através da sombra e do reflexo. Daí as inúmeras superstições envolvendo-os. O duplo é uma espécie de alter ego que a pessoa sente ao longo da sua vida, ou seja, não é uma cópia, mas uma realidade. Para os primitivos, os duplos coabitam o espaço dos vivos e a forma como estes tratam os cadáveres demonstram a preocupação com aqueles. Existe atualmente uma enorme diversidade de práticas relacionadas ao cadáver, das quais as mais conhecidas são a incineração e a inumação, utilizadas desde a pré-história. Além deles, há também o embalsamamento, o endocanibalismo. Em todos esses métodos percebe-se uma preocupação do vivo com a decomposição e todos tendem a garantir a “melhor sobrevivência do duplo”.

E onde vivem os duplos? Segundo as mais variadas crenças o morto não está sob a terra, mas perto dos túmulos, nas casas onde viveram. Estão presentes, por exemplo, no dia de finados. Para alguns, há a idéia de que os duplos podem viajar para o inferno ou para o reino dos céus. Alguns mortos podem até se transformar em deuses.

Não se pode esquecer do medo que eles causam e que tal sentimento fará com que se rendam culto a eles. Esse culto, Morin denomina de “fixação institucionalizada do infantilismo humano diante da morte”.

Essas crenças primitivas relativas ao duplo e à morte-renascimento vão evoluir até chegar à salvação, ao Deus supremo e à filosofia da morte. Contudo, pode-se perceber em nossa sociedade atual as concepções arcaicas da morte. Segundo Morin, o folclore e o ocultismo são um exemplo disso. O folclore é uma das manifestações mais expressivas da mentalidade arcaica: aparições, casas mal-assombradas, videntes, curandeiros. Para o autor, tanto o folclore quanto o ocultismo são resultado de uma mentalidade arcaica e infantil.

Segundo Morin, o surgimento do espiritismo como doutrina é um exemplo de crença no duplo. “Não é mais que a teoria e a prática experimental das relações com o duplo, com ou sem a interposição dos médiuns (necromantes aptos à comunicação hipnótica com o além)”. (MORIN, 1997: 162).

A morte-renascimento está presente também na poesia, que não é “senão a linguagem nativa, encantatória, mágica, sagrada, universalmente determinada pela metáfora, pela aliteração, pelo ritmo, isto é, pela analogia, que brota dos lençóis inconscientes da ‘inspiração’” (MORIN, 1970: 168) Livre e espontânea, a poesia exprime as possibilidades infinitas da indeterminação humana. Nos romances há a presença de elementos sacrificiais da morte, nos quais os escritores matam os personagens para tentar liberar sua angústia de morte. A literatura apresenta também inúmeros exemplos do duplo e todas as suas associações: a sombra, o espelho, o reflexo.

Ao analisar as “cristalizações históricas da morte”, Morin atesta que chega um ponto em que os mortos começaram a se afastar dos vivos e essa fato resultou no enfraquecimento do duplo, ocorrendo uma ascensão dos deuses. A decadência do duplo tem como explicação a urbanização, que vai caracterizar o progresso da consciência de si. A partir daí surge a idéia de alma, que é o duplo interiorizado, uma identidade subjetiva e não mais exterior, como era a idéia do duplo arcaico. “E ao passo que o deus é um duplo exteriorizado, objetivado, que finalmente se desliga do homem, a alma é o duplo interiorizado, subjetivizado, que a ele se reintegra”. (MORIN, 1997: 183)

O aparecimento da alma vai colocar um novo problema à imortalidade, que vai ser reivindicada progressivamente. Nas sociedades urbanizadas se abrem três vias para a morte: a salvação pessoal, a salvação cósmica e o ceticismo. No entanto, nenhuma delas responde à necessidade do indivíduo.

A salvação, adquirida através da imortalidade é analisada por Morin em várias culturas. De todas as religiões de salvação descritas, a mais importante para os ocidentais e para o presente trabalho é a cristã. Para ele três são suas características fundamentais dessa que é considerada por ele como uma das mais expressivas da humanidade:

1.
Não é um culto qualquer que vai se transformar em mistério, mas uma aspiração muito tempo reprimida pela religião oficial, e cuja força exaltada se revela capaz de romper-lhe os diques;
2. é uma religião de salvação em estado nascente
, que exprime em si, com uma pureza e uma profundeza sem mescla, o desejo de ressurreição;
3. é uma religião vivida, atualizada
.

Isso, somado à atualização fará do cristianismo uma das maiores religiões do planeta. É a última religião de salvação e será a que mais fortemente se manifestará contra a morte. “Ela será unicamente determinada
pela morte; Cristo resplandece em torno da morte, só existe para e através da morte, carrega a morte, vive da morte” (MORIN, 1997: 208-209) Assim, a morte está no cerne do cristianismo. A partir do século XVIII começa a haver uma renovação do problema da morte. Com os progressos tecnológicos ocorre uma diferenciação entre o mundo humano e o mundo natural, resultando disso uma maior consciência do indivíduo de si mesmo. Pela primeira vez ele irá perceber que a humanidade está em marcha e que tudo caminha inexoravelmente para a destruição. Na segunda metade do século XIX, instala-se uma crise de morte, que vai destruir o seu próprio conceito, corroer a própria vida. A crise geral do mundo contemporâneo causa uma crise de individualidade. A literatura passa então, a ser marcada pela obsessão da morte. Nesse contexto, ressurge a idéia de salvação, mas reformulada.

Para Morin, está em marcha uma verdadeira luta contra a velhice e a morte. “Poderá o gênio humano ultrapassar o estágio atual da luta contra a morte?”, pergunta ele. Como um ser indeterminado, aberto a infinitas possibilidades, não é possível prever onde tudo isso vai dar. Mas o homem amortal seria ainda o mesmo homem? Ou estaríamos a caminho de uma mutação? “Nós nos aproximamos de uma fronteira, ou para nos despedaçar contra ela, ou para dar meia volta, ou para transpô-la. Assim caminha o homem, entre o indefinido e o infinito. “Nada está realmente aberto, nada está realmente fechado. Uma nova aventura é possível”.(MORIN, 1997: 353).”


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Fonte:
NECILDA DE SOUZA: “O RITO FUNERÁRIO EM AUTRAN DOURADO” (Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Alamir Aquino Corrêa). Londrina, 2003.

Nota:
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As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada.

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