O “Problema” da miscigenação no Brasil

Podemos conceber que as imagens negativas acerca da figura do negro que ultrapassam o período escravocrata e se estendem até os dias atuais, projetando muitas vezes estereótipos, desqualificações aos atributos físicos e morais do mesmo e que também inferiram de modo latente nas condições de trabalho e o acesso aos bens sociais básicos estão profundamente enraizadas nos modelos raciais de análise.

Sem pretender cair em generalizações, poderíamos pensá-las não somente como concepções transplantadas ao Brasil como projeto de um corpo intelectual em contraponto à imagem negativa de uma nação miscigenada, nem somente como justificativas teóricas para desprover de quaisquer responsabilidades por parte das autoridades governamentais para com a grande massa de ex-escravos no pósabolição. Mas como uma articulação entre as duas concepções, num momento em que o Brasil tencionava-se nação civilizada aos moldes europeus, ao passo que o fim da escravidão não significava de imediato perceber o negro como cidadão, portanto, à margem dos direitos de um cidadão.

Assim, “os intelectuais e políticos desenvolveram um conjunto de programas de governo que pretendiam transformar o Brasil em uma sociedade européia nos trópicos” (Andrews, 1998), levando-se em consideração que “os negros até então,
antes do abolicionismo estavam fora da sociedade civil, mas acabaram conseguindo entrar nela (...) representava o horror a possibilidade de o negro transformar o branco, alterá-lo” (Corrêa, 1998:68).

De acordo com Schwarcz (1993), não deveríamos conceber as teorias raciais no Brasil como cópias prévias ou modelos importados dos países europeus, já com descrédito pelos mesmos no período em que se estabelecem no país. Na realidade, teria havido um grande esforço por parte dos cientistas, médicos e antropólogos brasileiros em atribuir novos significados a essas teorias, num movimento peculiar, singular e criador, tão somente brasileiro.

Na medida em que se procurava por uma identidade brasileira mediante a existência de um país de raças miscigenadas ou “misturadas”, os modelos raciais encontrariam um bom terreno para se desenvolverem, ao mesmo tempo em que grande parte dessa busca pela identidade aproximava-se cada vez mais dos modelos europeus de civilização. Contudo, devemos ter em mente a “originalidade do pensamento racial brasileiro, no seu esforço de adaptação”. (Schwarcz, 1993:19).

Os primeiros anos após a Proclamação da República no Brasil (1889), compreenderiam uma busca pela identidade nacional num país miscigenado, mistura de índios, negros, portugueses, espanhóis, entre outros, em que a questão
central corresponderia à emergência da nacionalidade. O Brasil, nesse momento, apresentava-se como nação fraturada, esparsa, dividida, ao passo que a república ainda teria a árdua tarefa de apagar para sempre a recente lembrança da experiência escravocrata. O maior dilema desse período estaria em encontrar a unidade através da diversidade que compunha o país.

O ingresso das concepções raciais no país também corresponderia a um momento em que as mesmas se adequavam à justificativa para uma série de interesses políticos e econômicos da elite nacional. Podemos pensar que, ao mesmo tempo em que o peso legado pela escravidão no Brasil deixava-o mal visto aos olhos estrangeiros, o país pretendia consolidar-se como nação desenvolvida, desse modo, o que fazer com a massa de homens negros livres após o cumprimento da Lei Áurea? É fato que os fazendeiros necessitavam de braços para as lavouras de café, contudo, como se dariam as negociações com estes homens agora livres? Esta preocupação, de fato, já aturdia os proprietários de terra na segunda metade do século XIX, quando a escravidão dava seus primeiros sinais de esgotamento.

A análise de George Andrews (1889) nos traz algumas importantes considerações sobre o modo como se deram as negociações entre proprietários e fazendeiros no pós-abolição: de acordo com o autor, o problema maior estava voltado à reticência nas negociações por parte dos proprietários de terra para com os ex-escravos. Negociar consistia em árdua tarefa, tanto era tempo em que o sistema escravista vigorara que se tornava extremamente difícil negociar com o negro e não sobre o negro.

Como alternativa a esta reticência por parte destes senhores em reconhecer no negro o trabalhador livre e como resposta para a possibilidade de recusa por parte dos escravos em continuar nas fazendas depois de libertos acabam por surgir as primeiras políticas favorecedoras da imigração. Não seria demasiado afirmar que este comportamento tinha fortes raízes fincadas numa herança característica do passado escravista (Freyre, 1933), expressa muitas vezes no “mandonismo” por parte dos senhores, como fruto de uma sociedade monocultora, em que suas iniciativas iniciais em relação aos custos, defesa e manutenção do sistema escravista, tenham ocasionado privilégios de jurisdição e mando de sua parte. Basta pensarmos em seu considerável prestígio nas regiões cafeeiras. Assim, em grande parte do período escravista brasileiro temos as “Casas Grandes”3 como detentoras de muitos poderes políticos, às vezes ultrapassando os da justiça imperial nas questões de roubo, escravos fugidos, entre outras, na medida em que esses processos de queixas cabiam à instância dos juizes de paz, que em sua maioria eram indicados pelos próprios fazendeiros.4 Um trecho da comédia O Juiz de Paz na Roça (1933), obra de Martins Pena, nos permite um panorama, de modo evidentemente satirizado, das “contendas” da população rural resolvidas através da figura do juiz de paz. O juiz, após resolver sobre o destino de um “suíno” que escapara do cercado que seu dono fizera e fora parar nas propriedades do vizinho, tornando-se os dois requerentes do respectivo animal, acaba por confiscar o mesmo para dar fim à questão:

“Juiz – (...) Meus senhores, só vejo um modo de conciliar esta contenda, que é darem os senhores este leitão de presente a alguma pessoa (...)”. E após receber o porco de presente: “... Ó homem está gordo, tem toucinho de quatro dedos!... podem se retirar estão conciliados”. (Pena, 1933:116).

Assim, nessa sociedade marcadamente patriarcal, em que vigoravam interesses e ações de uma elite cafeicultora, a mestiçagem e todos os seus significados gerados no terreno das teorias raciais tornavam-se um “problema” central na compreensão dos destinos do país. Os temas raciais também ganham força num momento em que a ciência no Brasil passa a ser privilegiada através desta busca pela identidade e desenvolvimento. É na segunda metade do século XIX em que são criados museus etnográficos e científicos, como o Museu Nacional (1808) e o Museu Paulista (1890), o Instituto Geográfico Brasileiro, o Instituto Manguinhos, entre outros, concomitante às faculdades de Direito de São Paulo e Recife e uma elite profissional que passa cada vez mais a adotar os modelos evolucionistas de análise.

As ciências naturais passam a consolidar sua importância, desmembrando-se na geologia, botânica, zoologia e biologia, esta última, em especial, ganha destaque a partir da chegada das teorias raciais. Era o momento de continuar um plano já eminente no período imperial: um Brasil moderno, civilizado e caminhando rumo ao
progresso como nação.

Assim, os cientistas brasileiros passam a adotar os modelos raciais para analisar a sociedade, contudo, sua análise não consistia em retomar o contexto ou a natureza dessas teorias, mas realizar várias combinações para adotar o que era válido ou não na formação do pensamento brasileiro. Segundo Schwarcz (1993), estes teóricos do país preocuparam-se mais em consumir textos e manuais explicativos sobre o darwinismo social e evolucionismo e selecionar pontos quecaberiam como respostas ao quadro brasileiro.

Os reflexos das teorias raciais na Antropologia são extremamente fortes, principalmente quando Sílvio Romero passa a pensar o Brasil através da comprovação da inferioridade de largos setores da população (mestiça), no entanto, fadada a desaparecer através de um processo de branqueamento (aqui o
darwinismo social é alterado, pressupondo que a herança da raça branca se sobreporia sobre a raça inferior).

Ao mesmo tempo em que essa concepção buscava modificar o panorama pessimista pelo qual o Brasil era visto, alguns importantes intelectuais como Nina Rodrigues e Oliveira Vianna passam a avaliar, sob o ponto de vista das teorias raciais, os problemas e as contribuições da raça negra na formação da identidade
brasileira.

Inúmeros serão os estudos deste tipo e a questão racial também estará presente na ficção literária, como por exemplo, em A Esfinge (1911), de Afrânio Peixoto ou Canaã (1901), de Graça Aranha, esta última ressaltando a importância da imigração européia na evolução da sociedade brasileira. A mestiçagem torna-se tema central nesta preocupação com a identidade do Brasil. Euclides da Cunha, em Os Sertões (1902), demonstra de forma evidente a preocupação com a complexidade étnica: em um Brasil composto por tipos de atributos físicos e psíquicos bem distintos, não havia a consolidação de uma unidade de raça.

O mestiço (homem do litoral) é visto por ele como um degenerado, um decaído. Ao passo que “o sertanejo é antes de tudo um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral” (Cunha, 1987:81). Entretanto, “é desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto, a fealdade típica dos fracos”. Embora o sertanejo modifique seu aspecto devido a algum incidente que solicite sua energia e empenho, tornando-se um “cavaleiro robusto”, passado o incidente, volta “outra vez desgracioso e inerte, oscilando a feição da andadura lenta, com a aparência triste de um inválido esmorecido”(1987:81).

Podemos conceber que sua obra corresponde a esse panorama pessimista sobre os destinos do país, pois embora Euclides da Cunha diferencie o sertanejo do homem do litoral (mestiço), ambos estão fadados ao desaparecimento pelo rolo compressor da civilização, este último, principalmente, pois visto como decaído, um fraco, não sobreviveria com o advento do progresso.”


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Fonte:
Lidiany Cristina de Oliveira: “As Teorias Raciais e o Negro do Pós-Abolição às Primeiras Décadas do Século XX”. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE DUCAÇÃO. Campinas, 2005.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada.

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