Higiene e segurança públicas

“Michel Foucault, em Microfísica do poder, alerta que o controle da sociedade sobre os indivíduos “não se opera simplesmente pela consciência ou ideologia, mas começa no corpo e com o corpo”. A hipótese do autor é a de que, no final do século XVIII e início do XIX, o capitalismo socializou o corpo como o primeiro objeto“, enquanto força de produção, força de trabalho”. Ao discutir o processo, Foucault localiza o surgimento da medicina de Estado na Alemanha no começo do século XVIII e observa que, no final daquele século, a medicina social surge na França, a partir do fenômeno da urbanização. Segundo ele, naquele momento, o poder urbano buscava estabelecer uma unidade capaz “de organizar o corpo urbano de modo coerente, homogêneo, dependendo de um poder único e bem regulamentado”. Do ponto de vista político, explica que o aparecimento de uma população pobre aumentou as tensões políticas nas cidades.

Foucault
informa que a medicina urbana consistia basicamente em três grandes atividades: a primeira seria “analisar os lugares de acúmulo e amontoado de tudo que, no espaço urbano, pode provocar doença, lugares de formação e difusão de fenômenos epidêmicos ou endêmicos”, apontando essencialmente os cemitérios. A segunda atividade era “o controle de circulação. Não da circulação dos indivíduos, mas das coisas ou de elementos, essencialmente a água e o ar”, destacando, neste ponto, “uma velha crença do século XVIII, que o ar tinha uma influência direta sobre o organismo, por veicular miasmas”. O terceiro objeto da medicina urbana, citado por Foucault, é o que ele chama de organização das “distribuições e seqüências”, que abrange diferentes elementos da vida comum da cidade: a localização das águas para consumo e das águas consumidas.

Entre outras conclusões sobre a medicalização das cidades, no século XVIII, Foucault afirma que ela foi importante, por várias razões, e explica que a medicina urbana “não é verdadeiramente uma medicina dos homens, corpos e organismos, mas uma medicina das coisas: ar, água, decomposição, fermentos; uma medicina das condições de vida e do meio de existência”. Nota que, muito cedo, a noção de salubridade ganha considerável importância para a medicina social, sendo uma das decisões tomadas pela Assembléia Constituinte, em 1790 ou 1791.

Ao discutir a formação das cidades do século XIX, Maria Stella Brescianin observa uma “nítida vinculação entre a representação da cidade envolta pelos muros e a formulação da idéia de um meio ambiente urbano degenerador das forças físicas e morais dos homens”. Nota também que “é nítida a solidariedade entre essa idéia e a figuração de multidões de pobres afluindo para os centros urbanos e se amontoando em casas, pardieiros, becos e ruas”. A autora afirma que, desde o século XVI, as classes governantes tentavam controlar seu crescimento, “movidas pelo receio de distúrbios provocados por homens arrancados da terra pelo cercamento das propriedades, a presença de milhares de pobres”. Dessa forma, promovia-se “um crescimento doentio”, que fazia da cidade uma coisa assustadora.

À medida que se acentuava a precariedade das condições ambientais nas grandes cidades, crescia o interesse pela pesquisa das leis que produziam esses fatores, envolvendo pensadores das mais diversas áreas. As questões de saneamento e higiene públicos passavam a assumir maior importância, sendo reivindicadas pela parcela mais esclarecida da sociedade, ganhando espaço e relevância cada vez maiores nos discursos de políticos e administradores públicos, sendo essas propostas tidas como necessidades urgentes.

Segundo Chiavari, nesse período, os médicos são solicitados a sair de seus tradicionais ambientes de trabalho para atender aos pedidos do “grande doente”, que é a cidade. Para a autora, esses profissionais, através dos novos conhecimentos, extrapolam as mais variadas teorias. Em termos médicos, a cidade é tratada como “um organismo canceroso”, oferecendo como alternativas a fuga do corpo contaminado ou a realização de uma “vivissecção, cortando e extirpando os tumores”, de forma que preservasse as outras partes.

Para Chiavari, em qualquer remédio que fosse proposto, “os ingredientes comuns são: aeração, ventilação, iluminação e limpeza, que nas mãos do Poder, vão se transformando em decretos,
slogans, pressupostos, paradigmas e justificações para qualquer operação demolidora”. Segundo ela, o poder criava uma “aura soberana de neutralidade técnica” em torno de suas decisões, tornando-se indiscutível e, dessa forma, explica:

A ação violenta de destruir, desabrigar, cortar, deslocar transforma-se em conceito positivo de destruição do mal e do veículo, a doença que encarna as noções de “obscuro”, “velho”, “feio”, “fechado”, “estreito”, “tortuoso”, “mal-cheiroso”, “impenetrável”, “sujo”, “sórdido”, “pobre”, “imoral”.

Lewis Mumford observa que o culto da limpeza se originou antes da era paleotécnica, devendo-se muito o fato “às cidades holandesas do século XII”, com seus abundantes suprimentos de água, suas janelas amplas, mostrando os impecáveis pisos ladrilhados esfregados pela dona-de-casa holandesa. Mas essa prática ganhou “reforço científico” depois de 1870, a partir da “nova concepção científica do organismo”, que se definiu com Johannes Mül er e Claude Bernard, no século XIX, reunindo “os processos fisiológicos e psicológicos, e assim o cuidado corporal tornou a se transformar em disciplina moral e estética”.

Desde o início do século XIX, já eram freqüentes as denúncias quanto à precariedade das condições de vida das classes populares, na Inglaterra, sobretudo nas cidades industriais, como Londres e Manchester; entretanto até os meados daquele século a situação parecia assustadora. Em seu artigo,
A urbanização da humanidade, Kingsley Davis discute o elevado índice de mortalidade, nas grandes cidades, como um dos problemas do meado do século XIX, informando que, naquela época, “a água de Londres provinha de poços e rios poluídos”. Em conseqüência dessa situação, a cidade era “regularmente assolada pelo cólera”, citando as estatísticas de 1841, que “mostram uma expectativa de vida de cerca de 36 anos para Londres e 26 para Manchester e Liverpool”.

René Rémond diz que a saúde pública não podia continuar como uma questão particular e que era responsabilidade dos poderes públicos assumi-la. Aos poucos, o Estado foi regulamentando o exercício da medicina, da farmácia e o da fabricação de medicamentos, assim como a pureza e a qualidade dos alimentos e das conservas, embora o autor deduza que, na maioria dos casos, o poder público não ultrapassasse a função de controle e só interviesse em circunstâncias excepcionais.

Para Leonardo Benevolo, “o grande animador de todas as iniciativas do governo, para melhorar o ambiente industrial”, foi Edwin Chadwick, o autor do famoso relatório sobre as classes trabalhadoras de Londres em 1842. Para Benevolo, o grande mérito desse profissional foi “haver aprendido com clareza as relações entre os problemas sociais e as condições físicas do ambiente”. Para Lilian Fritsch e Sérgio Pechmann, Chadwick entendia que as más condições higiênicas decorriam da “existência de habitações insalubres” e da precariedade dos sistemas de esgoto, apontando tais condições como responsáveis pelo alto índice de mortalidade das populações, além de produzir males como o alcoolismo, a prostituição e a delinqüência. Para evitar a manutenção desse estado de coisas, ele propôs “a adoção de medidas preventivas, que somente se tornariam possíveis mediante o estabelecimento de uma administração pública uniforme e centralizadora”.

Maria Stella Bresciani informa que, na França, o grande idealizador das intervenções de caráter sanitário foi o médico Parent Duchátelet. Ele “dedicou sua vida profissional à busca de focos de contágio de moléstias epidêmicas em Paris”, tendo a compreensão de que os esgotos e as prostitutas eram os “receptores dos dejetos humanos”. Suas intensas pesquisas resultaram no mapeamento dos desaguadouros subterrâneos da cidade e a regulamentação da prostituição, controlada pela polícia. Duchátelet compreendia que o problema da saúde era, antes de tudo, “uma questão técnica a ser equacionada e resolvida pela engenharia; e ainda um problema a ser superado pela instalação de equipamentos coletivos”.

A partir das observações explicitadas por Haussmann, em suas memórias, Renato Ortiz aponta evidências das “implicações ideológicas, políticas e econômicas” da reforma de Paris. Interpreta as ações do prefeito como uma clarapreocupação em “expulsar do centro da cidade as classes perigosas”, associando essa “população pobre a um conjunto de sinais fortemente negativos”, tais como: “bairros imundos”, “casas sórdidas”, construções ignóbeis”, encontrando respaldo tanto entre os representantes da classe dirigente, quanto nos discursos médicos. Ortiz afirma que:

O
higienismo associava estreitamente a presença dessas aglomerações inóspitas à proliferação das doenças. Em nome da saúde pública, para que o ar circulasse livremente, purificando a insalubridade existente, as demolições são recomendadas.

Além da segurança do aspecto sanitário das cidades, a intervenção do Estado sobre os espaços ocupados pelas populações trabalhadoras significava o controle da ordem, tanto através da abertura, quanto da normatização dos espaços públicos. Para Macela Delle Donne, foi após os acontecimentos de que os estudos demográficos passaram a ganhar maior importância, como uma questão do conhecimento descritivo da intervenção programadora, no âmbito de uma política de reforma que se fazia necessária. A autora nota que, naquele momento, os trabalhos realizados nessa área foram bastante explorados pela imprensa e recebidos com grande otimismo; todavia, isso demonstrou que a informação não era suficiente para salvar a situação. Segundo ela, esta conclusão colocava em crise “a política de não-intervenção do estado liberal, que até então se tinha abstido de qualquer forma do controle público sobre a iniciativa e a propriedade privadas, incluindo leis e regulamentos de higiene”.

Conclusões de Henri Lefebvre, Tocqueville, Bogardus e Mumford levam Delle Donne a afirmar que, naquele momento, “tornava-se urgente a necessidade de se conhecer numa perspectiva o mais amplo capilar possível o contexto social urbano”, explicando, em seguida, que foi com esse objetivo que se instaurou a prática do recenseamento. Nota-se, entretanto, que os dados deste instrumento de aferição e controle poderiam ser manipulados e direcionados por diferentes interesses e explicar e justificar teorias.

A partir de uma análise comparativa da população de Londres, Leonardo Benevolo elenca aspectos positivos, introduzidos pela indústria, no cotidiano das cidades. Aponta um crescimento constante da população londrina, explicando que isso não se devia ao coeficiente de natalidade, nem ao excesso das migrações, mas, sobretudo, a “uma decisiva redução do coeficiente de mortalidade”. Quanto à causa dessa redução, o autor afirma ser, principalmente, “de ordem higiênica: melhoria na alimentação, na higiene pessoal, nas instalações públicas, nas moradias, progressos na Medicina e melhor organização dos hospitais", e ainda:

(...)
esses melhoramentos higiênicos dependem da indústria: por exemplo, a melhoria na alimentação é devida aos progressos no cultivo e no transporte, e a limpeza pessoal é favorecida pela maior quantidade de sabão e roupas íntimas de algodão a preço razoável; as moradias tornaram-se mais higiênicas graças à substituição da madeira e da palha por materiais mais duráveis, e ainda mais pela separação entre a casa e a oficina; as redes de esgotos e de águas mais eficientes tornam-se possíveis pelo progresso da técnica hidráulica etc. As causas decisivas, porém, são provavelmente os progressos da Medicina, que produzem efeitos também nos países europeus não industrializados onde de fato, a população aumenta no mesmo mecanismo.

Benevolo relaciona o aumento demográfico ao crescimento industrial, alegando que esses aspectos “influenciam-se mutuamente de modo complicado”. Porém, ao analisar os números da produção industrial, conclui que ocorreu um progressivo desenvolvimento quantitativo e qualitativo no setor. Atribui, portanto, à industrialização “uma das possíveis respostas ao aumento de população” e frisa, ainda, que esta dependeria da “capacidade de intervir ativamente sobre as relações de produção, a fim de adaptá-las às novas exigências”.

Mumford, por sua vez, afirma serem “injustificadas” muitas ufanias sobre os melhoramentos da saúde urbana perante o industrialismo, alegando que os que acreditavam que “o progresso ocorria automaticamente em todos os departamentos da vida durante o século XIX” se recusavam a enfrentar a dura realidade. Segundo ele, não quiseram fazer o estudo comparativo entre a cidade e o campo, entre o mecânico e o não mecânico e assim contribuíram ainda mais para criar confusão, usando tabelas de mortalidade malfeitas, sem corrigi-las de acordo com grupos de sexo e de idade. Nota o autor que não levaram em conta a distribuição intensa de adultos nas cidades e a maior incidência de crianças e velhos, que estariam mais sujeitos a doenças e à morte, no campo.

Em decorrência dos avanços da medicina e da química, as questões voltadas à higiene pública ganhavam relevância científica e, talvez, tenham sido as primeiras propostas acolhidas pelos discursos reformadores e adotadas como política de estado. Criava-se grande expectativa em torno das medidas, como uma solução salvadora do progresso, capaz de conter o caos urbano. Aliado à instalação dos serviços públicos que, naquele momento, eram considerados essenciais, destacava-se a elaboração de projetos urbanísticos e arquitetônicos voltados para a valorização dos aspectos estéticos dos espaços urbanos, implicando intervenções contundentes que reformulavam os espaços tradicionais da cidade e os costumes da população.”

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Fonte:
OTONI MOREIRA DE MESQUITA: “LA BELLE VITRINE: O mito do progresso na refundação da cidade de Manaus - 1890/1900”. (Tese de Doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor. Área de Concentração: História Social. Orientação: Professor Dr. Paulo Knauss). Niterói, 2005.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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