Lepra: a origem do estigma

O estigma associado à hanseníase ou lepra chama a atenção devido à sua prevalência e intensidade nas mais diferentes sociedades e através de diversos períodos históricos. (...) A origem do estigma da hanseníase estaria, então, apoiada em sua natureza crônica, progressiva e deformante, até recentemente incurável”. Lenita B.L. Claro

“A doença lepra e seus vários desdobramentos, sobretudo os que se referem ao seu marcante apelo social e estigmatizante, tem sido um tema eleito em alguns trabalhos acadêmicos produzidos recentemente. Segundo esta bibliografia, pode-se dizer que parte da construção que vê no leproso objeto de exclusão e, ao mesmo tempo, de piedade está ligada à tradução da Bíblia da língua hebraica para o grego e, conseqüentemente, à herança judaico-cristã recebida pelo Ocidente.

Segundo Rubem David Azulay, a partir desta tradução, se tem a referência à ‘tsaraat’, uma doença com multiplicidade de manifestações cutâneas que acabam identificados a uma doença contagiosa que, pela sua natureza estigmatizante, obrigava seus portadores serem afastados do meio social e da coletividade. Esta doença contagiosa manifestava-se na pele e acreditava-se, desta maneira, que toda e qualquer dermatose, como pênfigo (fogo selvagem), escabiose (sarna) ou vitiligo, por exemplo, fosse tsaraat, que ganhou o seu correspondente no idioma grego como lepra. Tsaraat, portanto, na tradução ocidental equivaleu a um único significado, e este foi lepra: “(...) quem lê a Bíblia, vê que tsaraat foi traduzido para lepra... na realidade tinha lepra, mas tinha também vitiligo e psoríase. Eram doenças cutâneas, que descamavam a pele, que davam alterações na pele”.

No entanto, Stanley Browne dentre outros autores apontam como muito simplória esta correspondência e afirmam que a palavra tsaraat é, de certo modo, intraduzível. Segundo ele “(...) as palavras [da Antiguidade] abrangem conceitos incompreensíveis para as línguas atuais”, mas admite, entretanto, que na Bíblia nenhuma outra doença recebeu destaque semelhante. Ainda atualmente, o peso da palavra tsaraat é tão grande e carrega tanto medo e repugnância, que em Israel, por exemplo, não se usa este termo ao se referir à lepra para não constranger o paciente. De modo geral, a tsaraat bíblica está normalmente associada à impureza e profanação; aquele que sofria da doença, segundo a Bíblia, era alguém que foi objeto da ira divina, desagradou a Deus e obteve, assim, o castigo através da doença que “mutila e desfigura”.

Segundo Sournia e Ruffie, em texto indiano escrito por volta do ano 600 AC, a descrição clínica ali apresentada corresponderia com segurança à lepra, como hoje a concebemos. Os constantes movimentos migratórios e as guerras de conquista são apontados como os fatores principais que contribuíram para a disseminação das doenças infecto-contagiosas na Antiguidade. Ainda segundo os dois autores, também as atividades de comércio realizadas pelos fenícios foram as responsáveis pela entrada da doença no Mediterrâneo. O que explicaria sua disseminação pela Europa, segundo eles, seriam as legiões romanas que, no seu movimento de conquistas, contribuíram para tornar a doença “solidamente implantada” em toda a Europa Ocidental. Desde a Alta Idade Média até os séculos XII e XIII, a doença era considerada “vulgar” em países como França, por exemplo.

De acordo com Mirko Grmek, várias escavações arqueológicas confirmaram a existência de crânios com sinais da doença no século VI da nossa Era, mas não se pode afirmar ainda, tratar-se da lepra de maneira endêmica. Este autor concorda com outros que afirmam que muito do horror que se formou acerca da doença, foi construído com a cultura judaico-cristã; horror este que foi ampliado pelas Cruzadas que, muito provavelmente, contribuíram para espalhar a doença. Mirko afirma que de acordo com a documentação escrita, tudo o que se sabe sobre a lepra na Idade Média provém deste período, por volta do século VI. E é nesse momento também que se criam as primeiras casas de leprosos na França, com Gregório de Tours: “La fondation des premières léproseries en Europe date du VIº siècle, sinon même du Vº. Grégoire de Tours (538-594) mentionne des ladreries, maisons de lépreux, em France”.

Alguns autores afirmam ter existido cerca de 19 mil leprosários na Europa em toda a época medieval até o início da era moderna. Michel Foucault, por exemplo, compartilha desta idéia. No primeiro capítulo de História da Loucura na Idade Clássica, apresenta alguns dados, baseados em pesquisa de fonte primária do século XIX, que o levaram a esta conclusão. No entanto, é preciso chamar a atenção para algo importante: a partir do século XIII ou XIV, os leprosos podiam ser denunciados e deveriam comparecer perante um júri que os sentenciaria para a condição de ‘culpado’. Assim, este doente se vê ‘morto’ civilmente e seus bens materiais interditados, passando a ser controlados e gerenciados pela Igreja Católica ou pelo poder real. Por volta de 1430, em regiões da França e Inglaterra, estas cerimônias eram acompanhadas por toda a população da vila que celebravam a separação do leproso com a comunidade:

Esquematicamente ela consiste em levar o doente à igreja em procissão, ao canto do Libera me como para um morto, na celebração de uma missa que o infeliz escuta dissimulado sob um cadafalso, sendo depois acompanhado à sua nova morada. (...) o padre deve pegar terra do cemitério e pô-la na testa do leproso, dizendo o seguinte: ‘Meu amigo, é sinal de que estás morto para o mundo (...), a leitura das proibições (entrar nos moinhos, tocar nos ali mentos etc.) acompanha a entrega e benção das luvas, da matraca e da caixa de esmolas. (...) A Reforma Católica e a desaparição da lepra, depois de 1580, acabaram com esta liturgia”.

A partir da Idade Moderna, é comum encontrar alusões ao fim da lepra do cenário europeu. As explicações sobre este fato são diversas e conflitantes. Alguns apontam certas melhorias nas condições de vida das populações e a presença de outras doenças neste cenário, sobretudo as epidêmicas. A peste, por exemplo, com seu alto poder de letalidade, teria sido responsável pela eliminação de grande parte dos leprosos, fazendo com que a doença fosse aparentemente desapareceu do cenário europeu. Assim, as instituições utilizadas para o enclausuramento e internação dos leprosos, aos poucos perdem sua utilidade diante desse contexto. Foucault afirma, inclusive, que a maior parte dos leprosários abandonados seria transformada em hospícios, uma vez que, naquele momento, século XVII, a loucura adquiriria um estatuto de doença, constituindo-se como uma patologia, cujo tratamento deveria ser realizado numa instituição apropriada.”


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Fonte:
LAURINDA ROSA MACIEL: “Em proveito dos sãos, perde o lázaro a liberdade”: uma história das políticas públicas de combate à lepra no Brasil - 1941-1962”. ( Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em História. Área de Concentração: História Social. Orientador: Prof. Dr. André Luiz Vieira de Campos). Niterói, 2007.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada

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