Cinema, sociedade e ideologia

“A relação entre cinema e sociedade, nos remete a outra, bem mais problemática: a relação entre cinema, sociedade e ideologia. O fenômeno do cinematógrafo, aparelho que simboliza, de uma só vez, a captura de imagens do real (sejam elas ficcionais ou não) e a sua projeção, vem ganhando uma abordagem cada vez mais completa. A verdade é que a série de aparelhos que foram inventados no final do século XIX e mais intensamente nas primeiras décadas do século XX, proporcionou um avanço das técnicas de reprodução audiovisual (cinema, rádio, disco) e da indústria da diversão. Tais aparelhos modificaram, por conseguinte, os costumes e a relação dos homens com a arte e a cultura, tornando-as mais próximas e cotidianas das grandes massas da população. A tecnologia de captura de imagens, de suas reproduções nas telas do mundo deu ao cinematógrafo uma dupla função que termina produzindo o extraordinário fenômeno de massas que foi a venda de projeções de imagens e suas recepções por um público cada vez maior, pelo menos até o início dos anos 1960 do século passado. A ambigüidade de um valor de uso multiplicou exponencialmente o valor de troca dessa mercadoria específica, mudando, assim, a face do planeta e as relações entre os indivíduos de suas sociedades e das classes sociais às quais pertenciam. Um dos fenômenos fundamentais ao qual se viu confrontada a população do planeta sem se dar conta disto, foi o fato de que o capital estandardizou o tempo do “descanso”, dele também se apropriando.

Sim, é certo que os filmes manipulam e constroem a realidade social, muitas vezes deturpando-a, levando aos espectadores apenas uma visão de determinada classe social, geralmente integrantes das camadas dominantes das sociedades, para legitimar certos fatos, seus pontos de vistas e interesses. Porém, não haveria outra saída? Aos filmes caberia apenas essa função de veículo e legitimador das ideologias das classes dominantes? Partindo dessa questão, a proposta é refletir como se configura a relação entre cinema e ideologia. Aqui utilizaremos dois textos referenciais para o estudo do tema: o já mencionado A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica ([1935/1936]1994) de Walter Benjamin e A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas ([1947]1985) de Theodor Adorno e Max Horkheimer. Porém, iniciaremos a discussão delineando o conceito de ideologia, a partir das reflexões de Karl Marx.

Marx, em parceria com Friedrich Engels, entre 1845 e 1846, escreveu uma de suas principais obras, que foi jogada, segundo o próprio autor, à “crítica roedora dos ratos”, sendo publicada somente em 1936. A ideologia alemã é sem dúvida, obra de fundamental importância para compreender as críticas de Marx aos filósofos alemães, como Bruno Bauer, Max Stirner e Ludwig Feuerbach, devido ao posicionamento idealista desses autores, distante da realidade e do meio material. Em contraposição a esses filósofos, o ponto de partida de Marx são os indivíduos reais, suas ações e suas condições reais de vida.

Além da significativa contribuição às discussões entre materialismo e idealismo, outro ponto fundamental da obra é a explicação do conceito de ideologia, que será retomado por Marx no Dezoito Brumário (1851-1852) e em 1859 no prefácio à Para a crítica da economia política. Em A ideologia alemã, o termo ideologia aparece como objeto historicamente determinado: dos pensadores alemães posteriores a Hegel. Procedendo dessa forma, Marx não separa a produção das idéias das condições materiais de existência social dos indivíduos, ponto fundamental em sua teoria sobre o capital. Para Marx, e é fundamental em seu pensamento, as idéias não possuem existência autônoma, não estão desvinculadas da realidade material:

A produção de idéias, de representações e da consciência está, no princípio, diretamente vinculada à atividade material e o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio espiritual entre os homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material.
(MARX, 2004, p. 51)

Contudo qual o papel da ideologia nessa realidade? Para Marx, a consciência se desenvolve a partir da própria condição de existência humana, fruto das relações estabelecidas com a natureza e com outros homens, sendo, portanto, um produto social. O seu desenvolvimento proporcionou um aumento das necessidades e da produtividade, originando a divisão social do trabalho. Decorrente da divisão social do trabalho ocorreu uma outra, a divisão dos produtos. No entanto, essa divisão ocorreu de forma desigual, gerando a propriedade privada. As expressões divisão de trabalho e propriedade privada seriam, assim, idênticas uma vez que a primeira expressa a atividade e a segunda o produto da atividade. Dessa forma, a divisão social do trabalho originou uma classe de proprietários e outra de não proprietários, explorados economicamente e dominados politicamente, surgindo as desigualdades sociais. Para Marx, essa é a realidade e os homens a conservariam porque não percebem a existência de uma classe que vive da exploração e dominação das demais. Os proprietários só conseguem manter seus “privilégios” e camuflar os antagonismos sociais por possuírem o controle sobre os instrumentos de dominação e dentre eles o aparelho do estado. Mas, um desses instrumentos é a ideologia, formulada pelos ideólogos da classe dominante e com ela comprometidos:

A divisão do trabalho, de que já tratamos acima como uma das principais forças históricas até aqui, expressa-se também no seio da classe dominante como divisão do trabalho espiritual e material, de tal modo que, no interior dessa classe, uma parte aparece como os pensadores dessa classe (seus ideólogos ativos, que teorizam e fazem da formação de ilusões que essa classe tem a respeito de si mesma sua principal substância), enquanto os demais se relacionam com essas idéias e ilusões de forma mais passiva e receptiva, já que são, na realidade, os membros ativos dessa classe e possuem menos tempo para produzir idéias e ilusões acerca de si.
(MARX, 2004, p. 79)

Teóricos e intelectuais são muitas vezes produtores de ideologia. Entretanto eles não estão diretamente vinculados à produção material das condições de existência; desenvolvem um trabalho espiritual. Devido a esse distanciamento, as idéias que produzem podem parecer distantes da realidade, porém sem revelar que, são os seus produtores que estão desvinculados dela. As idéias aparecem como autônomas e descobertas por esses teóricos. Através dessa inversão, a ideologia torna as idéias independentes da realidade social e histórica. Mas, se as idéias pretendem explicar a realidade e muitas vezes fundar uma outra realidade, na verdade é a realidade que torna compreensível as idéias elaboradas como ideologia. As idéias são tomadas pelos receptores diversos e pelo homem comum, como superiores, exteriores e anteriores à prática, como se possuíssem um poder espiritual autônomo comandando a ação material dos homens. Dessa forma, a ideologia é um sistema ordenado de idéias, de representações e de normas e regras que, mesmo se aparentemente separadas e independentes das condições materiais, explicam a realidade, age de modo a dissimulá-la, invertendo suas relações de causalidade, como se fosse uma câmera escura.

O papel fundamental da ideologia é, por conseguinte, o ocultamento das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. Utilizando-se da ideologia os homens legitimam as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas. Fazem, assim, a real exploração do trabalho, aparecer nas consciências humanas e sociais como uma prestação de serviços dos capitalistas e de seus funcionários no aparelho político. Para Marx, a classe dominante (por meio da educação, da religião e dos meios de comunicação) faz com que apenas a sua ideologia seja considerada verdadeira e legítima. Parcelas da outra classe, a proletária, pode se apropriar de um conhecimento para combater a ideologia e a exploração, mas não produzir a sua própria ideologia. Isto porque a função fundamental da ideologia é contribuir para que a lógica da dominação permaneça oculta e invertida. Assim, as idéias apenas da classe dominante é que se tornam as idéias dominantes de uma sociedade, de um sistema de sociedades e de uma época. A classe dominante no plano material também o será no das idéias, transformando as suas idéias em idéias universais:

As idéias (Gedanken) da classe dominante são, em todas as épocas, as idéias dominantes; ou seja, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo sua força espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe também dos meios de produção espiritual, o que faz com que sejam a ela submetidas, ao mesmo tempo, as idéias daqueles que não possuem os meios de produção espiritual. As idéias dominantes são, pois nada mais que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são essas as relações materiais dominantes compreendidas sob a forma de idéias; são, portanto, a manifestação das relações que transformam uma classe em classe dominante; são dessa forma, as idéias de sua dominação. Os indivíduos que formam a classe dominante possuem, entre outras coisas, também uma consciência e, por conseguinte, pensam; uma vez que dominam como classe e determinam todo o âmbito de um tempo histórico, é evidente que o façam em toda a sua amplitude e, como conseqüência, também dominem como pensadores, como produtores de idéias, que controlem a produção e a distribuição das idéias de sua época, e que suas idéias seja, por conseguinte, as idéias dominantes de um tempo.(...) Por isso, cada nova classe que ocupa o lugar da que dominava anteriormente vê-se obrigada, para atingir seus fins, a apresentar seus interesses como sendo o interesse comum de todos os membros da sociedade; ou seja, para expressar isso em termos ideais; é obrigada a dar às suas idéias a forma de universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais e universalmente legítimas.
(MARX, 2004, p. 78-80)

A ideologia proporciona à classe dominante justificar suas ações fazendo-as parecer como “razões da história”:

Até agora, toda concepção histórica tem omitido completamente a base real da história, pois a tem considerado como algo secundário, sem qualquer vinculação com o curso da história. (...) Desse modo, tal concepção vê na história apenas as ações políticas dos príncipes e do Estado, as lutas religiosas e as lutas teóricas em geral, e vê-se obrigada, em especial, a compartilhar, em cada época histórica, a ilusão dessa época
. (MARX, 2004, p. 66-7)

A ideologia torna-se possível devido à existência das classes dominante e dominada. Ela é um instrumento de dominação de classe, usada pelos dominantes para exercer a dominação, fazendo com que não seja percebida como tal pelos dominados. É, assim, resultado da luta de classes, no entanto, escondendo essa luta. Ela não é um processo, para a maioria dos homens, subjetivo consciente. É um fenômeno subjetivo e objetivo involuntário, fazendo com que os homens comuns acreditem que são desiguais em relação aos “ricos e poderosos” por natureza, talento ou desejo próprio. Porém, a ideologia não existe apenas na consciência dos indivíduos; é uma prática social. Para exemplificar esse aspecto, Marx menciona o papel da religião nas sociedades: pelas idéias que ela veicula, os “menos favorecidos” aceitam as injustiças sociais, pelo fato de não as reconhecerem como tal e sim como se fossem fruto da “vontade divina”. Comportam-se dessa forma, por acreditarem e terem a esperança de serem recompensados pela salvação eterna.

Já no Prefácio de Para a crítica da economia política, Marx explica que, contraditoriamente, a ideologia que mascara a realidade, também pode levar à consciência de classe. Para ele, as relações de produção, contraídas no processo de produção social da própria vida, são necessárias e contraídas pelos homens independente de sua vontade, e correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das forças produtivas materiais. A totalidade das relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, base real da qual se levanta uma superestrutura jurídica e política e condiciona o processo geral de vida social, política e espiritual. Numa certa etapa de desenvolvimento, as relações de produção entram em contradição com as forças produtivas materiais, desembocando numa revolução social Essa revolução acarreta uma transformação na base econômica e, de forma mais lenta ou mais rápida, se altera também a superestrutura. Nesse processo, os homens, a partir das formas ideológicas presentes na superestrutura, tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim.

É dessa forma que concebemos o conceito de a ideologia; não como uma mentira, mas como uma representação racionalizada da realidade que a classe dominante tem e faz do mundo para exercer e manter seu poder. Nessa racionalização, articulam elementos verdadeiros e falsos para se legitimar, pois se não se referencia o real perde o sentido de realidade e a legitimação junto ao senso comum da maioria da população. Também consideramos que é exatamente nas manifestações ideológicas, que os homens podem construir sua consciência, como falsa consciência social.

Na coletânea de textos oferecidos ao público sob o título de Sobre literatura e arte (1974), Marx e Engels refletiram mais especificamente sobre a relação entre a arte e a ideologia. Assim como a filosofia e a religião, se considerarmos a relação entre a base econômica e a superestrutura, a arte (ou as diversas expressões dela) encontra-se nas superestruturas da sociedade, compondo também suas formas ideológicas. Partindo do pressuposto de que “as idéias dominantes numa sociedade são as da classe dominante”, a produção intelectual, o que inclui a artística, é em muita medida controlada pelos detentores dos meios de produção material, justificando e legitimando a ordem existente. Porém, o próprio Marx apontou para a possibilidade de, na reprodução ideológica, particularmente na arte e na ciência, os homens tomarem consciência de sua realidade. A arte, assim, teria um duplo caráter: pode estar subordinada à ideologia dominante ou esquivar-se dela desnudando-a. Para Marx, é no mundo das representações e das idéias, onde se realiza a arte, que tem início o processo de autoconsciência, notadamente a de classe. A grande contribuição de Marx foi ter apontado para a contraditória, complexa e dialética relação entre arte e ideologia. A única forma de conseguirmos analisar essa relação é negando os extremos opostos: a arte não é pura ideologia, como também, não está totalmente isenta dela. A estética materialista, não se propõe a estabelecer um sinal de igualdade entre a obra artística e seu conteúdo ideológico, menos ainda em reduzir a arte a seu condicionamento social. As idéias de um artista se vinculam a uma totalidade ou estrutura que possui legalidade própria. O resultado desse processo, é que a arte revela-se dotada de certa coerência interna e autonomia relativa, impedindo que seja reduzida a um fenômeno exclusivamente ideológico. Mesmo quando uma arte está comprometida com a ideologia de uma classe, ela poderá sobreviver ao tempo em que essa ideologia vigorou, ultrapassando a base histórico-social que a fez nascer.

Aos seus modos herdeiros do pensamento de Marx, Benjamin e Adorno refletiram sobre a relação entre ideologia e arte no contexto de avanço dos bens culturais. No final do século XIX e mais intensamente nas primeiras décadas do século XX houve um avanço das técnicas de reprodução audiovisual (cinema, rádio, disco) e da indústria da diversão, que modificaram os costumes e a relação dos homens com a arte e a cultura, tornado-as mais próximas do cotidiano. Percebendo essa potencialidade dos meios de comunicação, o estado capitalista passou a utilizá-los para veicular suas ideologias. Mediante esse novo contexto, muitos pensadores da cultura convergiram suas preocupações para dois fenômenos de certa forma inter-relacionados: o surgimento de novas mídias e a ascensão de grupos sociais inspirados no fascismo. Em suas análises, muito longe do consenso, esses pensadores assumiram posicionamentos diversos. Enquanto alguns teceram severas críticas aos meios de comunicação, considerando-os como veículos da ideologia dominante e manipuladores da opinião pública, deixando pouco espaço para a reflexão, outros se entusiasmaram com o avanço dos meios técnicos, acreditando que havia chegado uma nova era em que a cultura e a arte estariam acessíveis a um grande número de pessoas. Eles analisaram com otimismo a nova relação que as transformações técnico-industriais estavam produzindo entre a arte e a sociedade. Muito longe de serem otimistas ingênuos e sabendo dos enormes problemas, das guerras e dos inúmeros mortos que o avanço das técnicas havia produzido, eles também acreditavam na possibilidade de sua utilização de forma positiva. (RÜDIGER, 2002)

Tais pensadores da “Escola de Frankfurt”, não ficaram alheios a essa discussão, mas, também, não chegaram a um consenso: enquanto Walter Benjamin posicionou-se de forma mais progressista e positiva, Theodor Adorno e Max Horkheimer assumiram uma perspectiva mais negativa e crítica. No entanto, Adorno e Horkheimer perceberam e também julgaram interessante a possibilidade de acesso de um grande número de pessoas aos bens culturais. No entanto, o problema não era esse. Para esses pensadores o ponto nevrálgico era o potencial estético e cognitivo das diversas mídias ter sido acorrentado às formas da economia política capitalista e, ainda, a transformação da arte e da cultura em mercadoria.

Walter Benjamin, apesar de não ser exatamente um representante do Instituto, dialogou intensamente com alguns de seus integrantes, notadamente com Adorno. Devido a esse diálogo constante, as idéias de Benjamin acabaram por inspirar e serem precursoras de algumas análises empreendidas pelos frankfurtianos. Esse é o caso de suas reflexões sobre a incorporação dos meios tecnológicos-industriais aos bens culturais.

Benjamin entende o cinema e as manifestações culturais na época do capitalismo pós-liberal, não apenas a partir da perspectiva fatalista de manipulação, mas como um instrumento de revolução, pois tem um potencial para a educação das grandes massas. Em A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica (1994), Benjamin tem por objetivo esboçar um histórico da obra de arte e de sua relação com o produtor e o consumidor, enfim com a sociedade. Logo no início de seu texto observa que os conceitos tradicionais estéticos (como criatividade e gênio, validade eterna e estilo, forma e conteúdo), haviam sido apropriados pelo fascismo. Para que isso não tornasse a acontecer, ele sugere novos conceitos para além da estética, que não poderiam ser apropriados pelo fato de serem conceitos políticos. Em seguida, citando os exemplos da xilogravura e da litografia, observa que a obra de arte sempre foi reprodutível, mas que, somente com o avanço e a incorporação dos meios técnicos, a reprodução se torna arte, não importando seu original.

Benjamin construiu seu texto de forma fragmentada, se bem que percorrendo um mesmo eixo de reflexão e análise, pontuando e explicando diversos fenômenos associados à reprodutibilidade técnica da arte, destacando o papel da fotografia e do cinema. O ponto fundamental é a “desauratização da obra de arte” ou a “perda da aura”. Benjamin explica que, desde o Paleolítico com as pinturas rupestres a arte possuía um “valor de culto”. As obras artísticas eram produzidas e conservadas secretas, e suas importâncias estavam no fato de existirem e não de serem vistas. Secretas, vistas somente pelos “espíritos”, elas possuíam uma função ritual, ligada à magia e ao religioso, mesmo nos casos de obras secularizadas:

A produção artística começa com imagens a serviço da magia. O que importa, nessas imagens, é que elas existem, e não que sejam vistas. O alce, copiado pelo homem paleolítico nas paredes de sua caverna, é um instrumento de magia, só ocasionalmente exposto aos olhos dos outros homens: no máximo ele deve ser visto pelos espíritos. O valor de culto, como tal, quase obriga a manter secretas as obras de arte
. (BENJAMIN, 1994, p.173)

O valor de culto e a função ritual conferiam à arte uma autenticidade e uma aura, esta sendo definida como “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja.” (BENJAMIN, 1994, p.170). Unicidade e distância seriam as características fundamentais da aura.

Com o desenvolvimento das tecnologias de produção em série de cópias esta situação modificou-se radicalmente. A obra de arte não é mais reservada aos olhares, exposta apenas para alguns eleitos. Ela pode ser vista e admirada por um grande número de pessoas, adquirindo um “valor de exposição”. Alterando-se o seu valor, altera-se também sua função: a obra de arte separa-se do ritual e da magia e passa a ter uma outra função social, além da artística, a política. Por fim, e mais importante, os meios técnicos permitiram e determinaram a desauratização da obra de arte. Sendo reproduzida tecnicamente ela perdeu as características de unicidade e distância que conferiam sua aura. As cópias tornam-se cada vez mais comuns aproximando a arte dos consumidores. Para Benjamin esse processo (mesmo com a perda da aura) é positivo porque permite uma democratização da obra de arte, que passaria a ser usufruída por um número bem maior de pessoas, quiçá toda a sociedade e, fundamentalmente, poderia ser utilizada como instrumento de politização das grandes massas da população:

O conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial. E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos resultam num violento abalo da tradição, que constitui o reverso da crise atual e a renovação da humanidade. Eles se relacionam intimamente com os movimentos de massa, em nossos dias
. (BENJAMIN, 1994, p.168-9).”

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Fonte:
SOLENI BISCOUTO FRESSATO: “CAIPIRA SIM, TROUXA NÃO. Representações da cultura popular no cinema de Mazzaropi e a leitura crítica do conceito pelas Ciências Sociais”. (Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais, com área de concentração em Sociologia da Universidade Federal da Bahia. Professor Orientador: Dr. Antônio da Silva Câmara). Salvador, 2009.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada

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