O que é gnosticismo

O conhecimento gnóstico

"Mas, afinal, o que foi, ou o que é o gnosticismo? Em que consiste essa teologia negativa, conforme Bloom, com seu curioso universalismo capaz de suscitar o obscuro encanto observados por Borges? É possível circunscrevê-lo, especificar seu âmbito? Em caso positivo, trata-se de atitude, doutrina filosófica ou religião autônoma? Enfim, havendo um corpus gnóstico, uma doutrina estruturada, consegue-se descrevê-la? O crescimento da bibliografia sobre gnosticismo tem relação direta com a dificuldade em responder a essas perguntas e as controvérsias suscitadas por elas. Mas há consenso quanto a algumas de suas características. Para seus estudiosos e comentaristas, gnósticos procuraram enfrentar questões fundamentais. Seu ponto de partida, para Doresse, foi:

[...]
a consideração, por parte do indivíduo, de sua situação frente aos dados imediatos do mundo inferior: o que sou em realidade? onde estou? por que e como cheguei a este mundo, onde me sinto estranho, exilado? onde estava eu e quem era eu originalmente, em minha verdadeira identidade? como voltarei àquela situação inicial e renascerei para minha perfeição perdida? Ou, conforme uma das “escrituras” gnósticas, Zostrianos:

Como poderiam existentes derivados do eon (que consiste) de derivados de um espírito invisível, o qual é um auto-originado indiviso mesmo sendo três imagens não-geradas, ter uma fonte superior à realidade e existir anteriormente [a] todos [estes (seres espirituais)], mesmo embora estando [no mundo]? [...] De que maneira realidade, que não existe, foi manifestada com poder como existente
?

Um caminho para avançar na compreensão do gnosticismo, adotado por vários de seus estudiosos, começa pelo exame do sentido dos vocábulos “gnose”, “gnósticos” e “gnosticismo”. Layton, em sua coletânea de escritos gnósticos, refere-se a um grupo antigo que se autodenominava “Gnósticos” – pessoas aptas a ter conhecimento (gnõsis) de Deus. Esclarece que, sendo gnõsis uma palavra da linguagem comum em grego, o mesmo não ocorria com seu estranho derivado, gnõstikos. Mostra haver uma distinção entre conhecimento proposicional (o eidenai grego) e a familiaridade com um objeto ou pessoa, cujo substantivo grego é gnõsis, associando-o ao inglês acquaintance. Em outras palavras, distingue o saber do conhecer; e confere a este uma conotação de proximidade ou familiaridade. Adiante, identifica gnõsis a um entendimento não-discursivo.

Também Puech observa que gnosis é palavra transitiva, que supõe um genitivo. É sempre conhecimento de algo: daí seu uso pelo gnosticismo ser estranho. Sugere identidade com o divino, a esfera superior, os mistérios, e também consigo mesmo, com a própria alma, com a centelha de luz que permanece no ser humano:

O que é, com efeito, a gnose senão – como significa seu nome grego, gnosis – “conhecimento”, ou seja, conhecimento no sentido absoluto do termo, ou, mais precisamente, um conhecimento que é, em primeiro lugar, conhecimento simultâneo e recíproco de si mesmo em Deus e de Deus em si mesmo, que permite àquele que possui esse conhecimento, o “gnóstico”, salvar-se, assegurando-lhe que pode ser salvo, que o será e que inclusive já o é
?

Trata-se de um conhecimento que não apenas eleva, mas salva, permitindo que o adepto venha a livrar-se deste mundo; ou, em algumas variantes, que também venha a transformar o mundo. Para o Zostrianos, a pessoa que se salva é a que procura compreender e, assim, descobrir a si mesma e ao intelecto. Daí a abertura de O Evangelho Segundo Tomé, freqüentemente citada, e que equivale a uma regra ou princípio geral de todo esoterismo:
Estes são os ditos obscuros que Jesus vivente pronunciou e que Dídimo Judas Tomé escreveu. E ele disse: “Quem encontrar o sentido destes ditos não provará a morte”.

É possível observar, através dessas sinopses, uma diferença fundamental com relação à doutrina cristã: a salvação não é mais conseqüência das ações e da fé, mas do conhecimento. Como esclarece Jonas: o conceito gnóstico de salvação nada tem a ver com a remissão do pecado (o próprio “pecado” não tendo lugar na doutrina gnóstica, que coloca “ignorância” em seu lugar). Pagels sintetiza: para os gnósticos a ignorância e não o pecado é que acarreta o sofrimento humano.

Até onde se pretendia chegar através do conhecimento gnóstico pode ser constatado através deste trecho de O Trovão – Intelecto Perfeito, uma das “escrituras” encontradas em Nag Hammadi:

Sou eu o aceitável em todos os assuntos;
Sou eu o falar que não pode ser restringido.
Sou eu o nome da voz, e a voz do nome.
Sou eu o sentido do texto,
E a manifestação da distinção;
[...]

Uma passagem como essa interessaria ao estudioso de filosofia e de semiologia, pois se apresenta como superação da diferença entre o signo e o significado. É a palavra que não apenas designa, mas é a coisa nomeada; a palavra mágica, plena.

A superação da distinção entre ser e perceber, representação e objeto, em uma síntese do sujeito e das coisas, também é afirmada em O Evangelho Segundo Filipe:

As pessoas não podem ver coisa alguma no mundo real, a não ser que se tornem essa mesma coisa. No reino da verdade, não é como os seres humanos no mundo, que vêem o sol sem ser o sol, e vêem o céu e a terra e assim por diante sem ser eles. Antes, se você viu qualquer coisa lá, você se tornou aquela coisa: se você viu o ungido (Cristo), você se tornou o ungido (Cristo); se você viu o [pai, você] se tornará o pai. Assim [aqui] (no mundo) você vê tudo e não [vê] a si mesmo. Mas lá, você vê a si mesmo; pois você se torna o que você vê
.

Merecem exame as conseqüências da suposição de um conhecimento intransitivo. Conhecer supõe uma relação entre duas instâncias: o sujeito cognoscente e o objeto do conhecimento. O desaparecimento de um desses termos, de um objeto delimitado, coloca o outro, o sujeito, à beira de um abismo, ou de um solipsismo. O conhecimento de tudo, do infinito, equivale ao conhecimento de nada; do próprio Nada (expressamente, em Mallarmé; antes dele, em inumeráveis místicos); à anulação de quem conhece; ou da linguagem, destruída sua referência externa, seu objeto. Uma das saídas para o impasse foi adotada por Novalis e outros representantes do que Béguin chama de tradição do romantismo interior, ao identificar o conhecimento do sujeito ao conhecimento total. É o que já está nesta versão do “conhece-te a ti mesmo” de O Livro de Tomé Lutador Escrevendo para o Perfeito: Pois aqueles que não se conhecem a si mesmos não conheceram coisa alguma. Mas aqueles que somente se conheceram a si mesmos receberam também conhecimento das profundezas da totalidade.

A conquista gnóstica do conhecimento é uma reintegração. Conforme Puech,

Conhecer-se é, com efeito, reconhecer-se, reencontrar e recuperar o verdadeiro “eu”, anteriormente obnubilado pela ignorância e pela inconsciência a que a fusão com o corpo e a matéria submete o homem: a gnosis é em realidade uma epignosis, um “reconhecimento”, uma rememoração de si mesmo
.

A salvação associada ao conhecimento ou, antes, ao reconhecimento, corresponde a abandonar definitivamente este mundo, o reino da necessidade. Por isso, não há mais lugar para a ressurreição da carne, nem para o juízo final e a vida eterna da alma individual. Algumas “escrituras” gnósticas deixam claro que o Apocalipse já aconteceu, assim descartando o segundo advento de Jesus Cristo.

Daí, dessa idéia de reintegração através da fusão com o divino, o gnosticismo postular a consubstancialidade, conforme também observa Puech:

Este é o ponto capital da doutrina, já que supõe o reconhecimento de uma consubstancialidade entre Deus e as almas: estas não são senão fragmentos da substância divina, ou, o que vem a ser o mesmo, partículas de Deus caídas aqui embaixo, unidas ao corpo e à matéria e mescladas ao Mal.

A doutrina da consubstancialidade, ou uma das suas versões, tem relevância especial no gnosticismo. Em algumas variantes, especialmente no maniqueísmo, evolui para a idéia de uma espécie de parceria entre o homem, o mundo e Deus (como será examinado no Capítulo 6º): salvar-se, elevar-se e iluminar-se tem reflexos e conseqüências no restante do universo.”

---
Fonte:
CLAUDIO JORGE WILLER UM OBSCURO ENCANTO: “GNOSE, GNOSTICISMO E A POESIA MODERNA”. (Tese de Doutorado Área: Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. ORIENTADOR: PROF. DR. BENJAMIN ABDALA JUNIOR). Universidade de São Paulo – USP. São Paulo, 2007.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!