Mulher, política e determinismo biológico

A cidadania obtida pelas mulheres esbarra nas questões que remetem à diferenciação referente à especificidade feminina. Todavia, tais diferenças não deveriam implicar em desigualdades. Igualdade não quer dizer uniformidade, e o contrário de igualdade não é diferença, mas sim a desigualdade, que é socialmente construída, ainda mais em uma sociedade tão marcada pela exploração sexista.

A possibilidade de participação na vida pública, durante séculos esteve vedada à presença das mulheres, tanto que a educação formal durante muito tempo se restringia às prendas domésticas. O exercício de atividade remunerada fora do lar esteve sempre pautado pelo crivo do marido. Poder votar e ser votada, embora reivindicado desde 1850, só foi alcançado em 1932, portanto, há todo um contexto que isola a mulher da vida pública.

Os direitos obtidos são mais uma referência formal do que de fato implementados. Na verdade, tais direitos ainda não estão inteiramente à disposição das parcelas mais necessitadas. As mulheres dos extratos sociais mais pobres são as que mais vivenciam as dificuldades de uma não implementação de fato, de tais direitos. É muito significativo que, das famílias cuja renda mensal não ultrapassa a casa de um salário mínimo, a maioria delas sejam chefiadas por mulheres, o que demonstra a proporção da feminização da pobreza (CALAS; SMIRCICH, 1999).

Embora tenham conquistado uma série de direitos, não se pode negar a permanência de condições que as mantêm subalternas, na esfera social, sem falar dos inúmeros constrangimentos que obstaculizam uma participação maior, mais abrangente e eficaz na esfera política.

É comum também o discurso acerca da necessidade de uma presença maior da mulher nas esferas políticas formais, embora tal prática tende a esvaziar as lutas pela superação das desigualdades das relações sociais de gênero. “A inserção política não tem trazido questionamentos acerca dos mecanismos, estruturas e hierarquias que organizam o
status da mulher no âmbito da sociedade” (OSÓRIO, 2002, p. 421).

Para que se possa melhor visualizar as implicações que mantêm as mulheres distantes da esfera política, ao menos da política formal, deve-se buscar entender primeiro as razões que conferem à mulher um
status social inferior ao homem (AVELAR, 2002). Ou seja, deve-se indagar onde se alicerça as condições de desigualdade entre homens e mulheres? Deve-se buscar a igualdade ou a diferenciação buscando a igualdade ou a equiparação?

Por longo período, o que esteve em causa nas teorias feministas era a busca da igualdade, mas sem considerar, de maneira mais aprofundada, como se trabalhar com esta igualdade, pois a igualdade, sob a luz do sistema democrático, significa justamente a igualdade de direitos, o que leva as mulheres a equipararem- se aos homens mas sem favorecimento com relação a isso.

[...] Para as mulheres, o preço do reconhecimento de sua cidadania foi a eliminação da diferença de gênero, ou seja, da sua identidade coletiva na esfera pública. Isso coloca as mulheres na curiosa posição de esquizofrênicas pela qual, na vida cotidiana e nas relações sociais, elas são identificadas principalmente com base no seu sexo, segundo os estereótipos e os preconceitos próprios do sistema gênero atualmente em vigor, e com base em tal identificação, imposta, são objetos de inúmeras práticas de opressão e exclusão [...] (GALEOTTI, 1995, p. 240).

Portanto, um dilema que esteve na base do feminismo foi justamente a busca da igualdade que na prática tende a eliminar as especificidades da mulher. Pergunta-se então: deve-se negar a política formal como meio de ação que possibilitaria uma alteração do
status da mulher? Ou deve-se buscar uma alternativa que seja possível o reconhecimento das diferenças que são inerentes à própria condição de mulher?

Para se entender, então, estas especificidades inerentes à condição da mulher, bem como para encontrar as diferenças entre homens e mulheres, surgiu, em finais da década de setenta na Universidade de Sussex, Inglaterra, o conceito de gênero, que passa a ser utilizado no sentido de uma nova categoria de análise das relações sociais entre homens e mulheres, descartava-se os critérios com base na biologia para determinar os papéis de machos e fêmeas.

Homens e mulheres possuem diferenças biológicas, ligadas ao sexo. Estas diferenças biológicas, por meio de um processo social, passam a ser “naturalizadas” e hierarquizadas. O termo gênero refere-se à construção social de homens e mulheres que são educados e socializados de maneira distinta, gerando hierarquias, relações de poder, diferenças de posições que constituem desigualdades
(RIBEIRO, 1998, p. 190).

O conceito de gênero realça o caráter social das diferenças entre os sexos. As noções de masculino e feminino são historicamente construídas de maneira diferenciada de acordo com a sociedade e até mesmo o período que é tratado, o que significa afastar do princípio biológico, ou seja, da naturalização dos papéis sexuais ou de qualquer explicação para o predomínio de um sexo sobre outro.

A introdução do conceito de gênero na investigação acadêmica suplanta os estudos anteriores sobre mulheres, porque a categoria “gênero” amplia o escopo de análise da experiência social das mulheres, não mais isoladas, mas em relação com seu parceiro, o homem
(QUINTEIRO, 1996, p.123). grifos da autora.

Se, durante um certo período, como se verá adiante, tudo o que existia era a distinções entre homens e mulheres, a partir da chamada “terceira geração de mulheres” (QUINTEIRO, 1996, p.124), homens e mulheres se interrelacionam, embora de maneira diferenciada, chamado de gênero relacional, o que significa também que ambos não são mais vistos como dicotomicamente separados.

As(os) estudiosas(os) do conceito de gênero partem sobretudo da crítica aos conceitos totalizantes que estancam a condição de mulher ou a de homem, A partir da noção de gênero não se pode ignorar os contextos sociais e políticos nos quais se constroem os papéis que ambos, homens e mulheres, desempenham de acordo com cada sociedade e em cada momento histórico.

Estudiosos da questão da dominação humana, de um grupo sobre outro e de um sexo sobre outro, sempre tentaram encontrar razões para este fato, utilizando-se para tal de inúmeras teorias, fossem estas científicas ou não. A dominação da mulher pelo homem, segundo Rosaldo (1995), sempre esteve presente nas mais diversas sociedades.

Quando Scott (1995) situa o gênero como uma categoria primária de significante de poder, ela quer dizer que o poder ou o empoderamento inicia-se no espaço doméstico mediante a relação que se trava entre homem e mulher.

Deixam de ser categorias universais óbvias o homem e a mulher, ou seja, elementos femininos e masculinos têm certamente um papel social, determinado independentemente de seus desejos. Isto implica que mulheres e homens desempenham papéis diferenciados de acordo com a sociedade e o contexto onde estão inseridos, influenciados por diferentes elementos como crença religiosa, raça/etnia, condições econômicas, etc.

Os estudos sobre as mulheres que enfatizavam as dicotomias existentes entre os dois sexos começam a perder espaço com a adoção do conceito de gênero, os quais passam a analisar homens e mulheres em sua condição de inter-relação. Embora ocupem, por natureza, espaços diferenciados, homem e mulher relacionam-se e interagem socialmente nas mais diversas esferas da vida, embora, para realizar uma análise mais profunda das questões inerentes a esta problemática, não há como proceder a uma análise em separado (SOIHET, 2003).

Foi disseminado e incorporado no comportamento masculino e feminino que os homens não deviam manifestar qualquer forma de expressão de sentimentos ou de emoções. O mundo dos sentimentos e das emoções era cabível somente à mulher, fragilizada e dependente. Aliás, a fragilidade e a dependência eram condições inerentes ao construto social, algo potencializado no sentido da manutenção de um modelo de sociedade patriarcal, onde o domínio estava calcado no fato do homem ser o provedor do lar.

A divisão de tarefas e, conseqüentemente, a separação das esferas pública e privada - na qual se assenta à idéia do conceito de gênero – são responsáveis pela manutenção da mulher em condição de subalternidade frente ao homem. Se a dicotomia das esferas pública e privada acontecia sob a justificativa de que ao homem era inerente o espaço público em virtude de caber-lhe a provisão do lar, tal idéia, já há um bom tempo, vai perdendo a sustentação, pois a mulher insere-se maciçamente no mercado de trabalho.

A base de sustentação do isolamento da mulher da política formal, sobretudo no caso brasileiro, estava calcada na idéia comum durante longo período, de que a participação política da mulher traria a desestruturação da família, uma vez que a chefia do lar e sua atribuição natural não permitia a ocupação com outras atividades. Esta idéia foi alvo do feminismo.

O conceito de gênero realça o caráter social das diferenças entre os sexos. As noções de masculino e feminino são historicamente construídas. Tais noções são correspondentes à sociedade e até mesmo a períodos específicos. Isto significa a necessidade de afastar do princípio biológico, ou seja, da naturalização dos papéis sexuais ou de qualquer explicação que leve ao predomínio de um sexo sobre outro.

A perspectiva de gênero veio possibilitar um novo olhar sobre as questões referentes à relação homem/mulher. Taís estudos visam entender melhor esta relação, no que se refere à construção da submissão da mulher, uma vez que, mesmo nos estudos de gênero, há diferentes interpretações do problema, como também uma diversidade muito grande de possibilidades para se chegar a um ponto de convergência, pois, uma série de estudos apontam a subordinação da mulher como inerente à constituição da sociedade moderna, enquanto que outras correntes apontam para uma abordagem no sentido relacional, ou seja, de que ocorre interação entre as relações homem/mulher.

Esquemas explicativos totalizantes geralmente não dão conta da complexidade dos fenômenos, ou sequer, na maioria das vezes, conseguem enxergar especificidades, como ocorrera com as tentativas de análise da questão da mulher sob esta perspectiva. Gênero, portanto, é resultante diverso de várias formas de organização social, que implica sua explicação em termos sociais e políticos.

Segundo Rosaldo (1995), as inúmeras pesquisas com base sexista sobre mulheres pouco ou nada têm explicado a respeito da problemática que as envolve, e ao ser humano em geral. As relações de gênero é que dão significados às ações de atores, masculinos e femininos, distintamente de sociedade para sociedade. O conceito de gênero suplanta os estudos sobre mulheres, à medida que busca analisar a mulher não de modo isolado, mas na medida em que se relaciona com o homem.

A ênfase no caráter fundamentalmente social, cultural das distinções baseadas no sexo, afastando o fantasma da naturalização; a precisão emprestada à idéia de assimetria e de hierarquia nas relações entre homens e mulheres, incorporando a dimensão das relações de poder; o relevo ao aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, de que nenhuma compreensão de qualquer um dos dois poderia existir através de um estudo que os considerasse totalmente em separado, constituem-se em algumas dessas contribuições
(SOIHET, 2003, p. 3).

Esta nova perspectiva de análise busca entender a mulher no contexto onde ela está inserida. Elabora-se assim, segundo (QUINTEIRO, 1996), conceitos provisórios não mais em termos de visões fechadas e imutáveis. Busca-se também resgatar a história em que as mulheres têm vida, participação ou são verdadeiramente as protagonistas. A intenção é justamente mostrar que, embora esteja ainda subordinada ao homem, a mulher tem participação importante, sendo também sujeito de sua própria história.

Como sujeito histórico, embora esteja submetida hierarquicamente ao homem, como constatam várias pesquisadoras do assunto nas mais diversas sociedades, a mulher consegue interagir com o homem e buscar seu espaço e exercer seu poder em algumas situações.

O distanciamento da política formal a partir destes dados possibilita entender que não se trata da exclusão graças ao distanciamento, mas sobretudo, do fato de que a política formal é que se mostra pouco permeável à presença feminina. Assim como se mostra até mesmo hostil à presença feminina nas agremiações partidárias, indicando uma maior propensão das mulheres a buscarem formas alternativas de participação política, como as associações de mulheres, as ONG’s, os Movimentos Sociais (SILVEIRA, 1999), cujo foco das reivindicações está ligado mais diretamente às questões relevantes aos problemas das mulheres.

No âmbito dessas organizações, possivelmente o peso da cidadania da mulher é considerado mais eqüitativo ou, melhor dizendo, não se trata de um espaço onde a cidadania leva a abrir mão da especificidade de ser mulher, mas é provável que, por ser constituído de movimentos especificamente de mulheres, eles conseguem ser mais democráticos que os canais formais da representação democrática.

A igualdade, segundo Quinteiro (1996), não pressupõe homogeneização no agir e no pensar entre homens e mulheres, assim como não é possível haver homogeneização entre as demandas das mulheres como um todo, conforme preconizava as feministas das décadas de sessenta e setenta. Além do corte de gênero há de se atentar também ao fato de que há distinções de classes de raça/etnia e de religião (ALVES, 1999; SILVEIRA, 1999). Há ainda expectativas distintas dentro de um grupo mais ou menos homogêneo.

Tudo isso deve ser levado em conta à medida que se busca estabelecer um padrão de comportamento específico de acordo com o gênero humano. De acordo com as explicações dos estudos de gênero mais recentes, este padrão não pode ser universal, ou seja, não pode ser visto como uma essência natural de cada grupo, essência, aliás, que é negada sobretudo pelos estudos orientados pelo paradigma pós modernista (MOUFFE, 1996).

A idéia de dois mundos separados (as esferas públicas e privadas como locais distintos) para homens e mulheres começa a perder o sentido a partir desta nova concepção de relações de gênero, uma vez que homens e mulheres se relacionam, interagem e constroem juntos à sua história. A mulher conquista cada vez mais espaço no mercado de trabalho, conquista direitos sociais e políticos, enfim, tem sua cidadania, se não plenamente, cada vez mais reconhecida.

Ao elaborar o conceito de gênero, pretende-se publicizar o espaço privado. Tal objetivo esteve em pauta nos movimentos feministas por longo período (SAFIOTTI, 1992; QUINTEIRO, 1996; SOIHET, 2003; ALVES, 1999; SILVA, 2004)
.

Isso significa o reconhecimento de que a esfera privada é um locus de conflito, um espaço de imposição-aceitação e de negociação de necessidades e interesses, enfim, um campo de intervenção e de mudança
(RODRIGUES, 2003b, p.4).

Restam desigualdades e diferenças que devem ser superadas a partir da publicização do privado. Isso implica trazer à esfera pública os problemas contidos no espaço privado, como a violência doméstica, a discriminação de sexo, questões relacionadas à saúde, ao trabalho e à ampliação da participação política. Tal processo de publicização justifica-se porque é neste espaço o local da socialização da criança, é onde, primeiramente, se insere os valores sociais que dão significados ao mundo de homens e mulheres, ou seja, é o locus onde se compreende os significados dos papéis diferenciados que a sociedade transmite aos indivíduos. O espaço doméstico é também um local de exercício de poder.

Por isso, o espaço doméstico contém a virtude de desfazer e refazer concepções acerca da relação entre os gêneros, como também quaisquer outras concepções vigentes (QUINTEIRO, 1996)."


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Fonte:
EDSON BELLOZO: “MULHER E POLÍTICA: UM ESTUDO SOBRE OS PROJETOS DE LEI REFERENTES À MULHER E GÊNERO APRESENTADOS PELAS DEPUTADAS E SENADORAS NAS DÉCADAS DE 1990 E 2000”. (Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação, Mestrado em Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial a obtenção do título de mestre. Orientadora: Profª Dra. Maria José de Rezende). Universidade Estadual de Londrina – UEL. Londrina, 2006.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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