“A palavra wica, grafada com um único “c”, aparece pela primeira vez em relação à bruxaria moderna em A bruxaria hoje, de Gardner. No capítulo X do livro ele diz que as bruxas de quem ele vem falando
São pessoas que chamam a si mesmas Wica, as ‘pessoas sábias’, que praticam ritos antigos e que, junto com muita superstição e conhecimento herbal, preservaram um ensinamento oculto e processos de trabalho que elas próprias pensam ser magia ou bruxaria.
A grafia com um único “c” pode se dever, inicialmente, apenas ao fato de Gardner ter reconhecidos problemas de ortografia. Talvez ele quisesse se utilizar de uma palavra em inglês arcaico (como era comum em seus escritos) e, de fato, a palavra Wicca, em inglês arcaico, é simplesmente o masculino de wicce, significando, respectivamente, “bruxo” e “bruxa”. Destes vocábulos, inclusive, é que se originou a palavra inglesa atual witch.
Em determinado ponto do seu próximo livro, O significado da bruxaria, Gardner alude (embora em outro contexto) a essas duas palavras com sua grafia correta e dentro de sua correta acepção, mas continua a usar wica para designar suas bruxas. Apenas no último capítulo desse livro é que ele passa a utilizar os termos Wicca e Arte da Wicca para designar o culto em si. Porém, o uso do “c” único na maior parte das duas obras acabou por disseminar a pronúncia dura – “k” – e, assim, Gardner acabou transformando a pronúncia equivocada de um termo arcaico no nome da religião da bruxaria.
Da mesma forma, a partir do parágrafo que citamos, criou-se na bruxaria moderna a idéia equivocada de que a palavra Wicca estaria relacionada com wise (sábio) e, por extensão, que a Wicca seria a religião que preservava a “antiga sabedoria” – the craft of the wise. Segundo a bruxa e escritora americana Gerina Dunwich, a Wicca
[...] é uma religião de natureza xamanística, positiva, com duas deidades reverenciadas e adoradas em seus ritos: a Deusa (o aspecto feminino e deidade ligada à antiga Deusa Mãe em seu aspecto triplo de Virgem, Mãe e Anciã) e seu consorte, o Deus Chifrudo (o aspecto masculino). Seus nomes variam de uma tradição Wiccaniana para outra, e algumas delas usam nomes de deidades diferentes, tanto em seus graus mais elevados como nos inferiores.
Outra bruxa, Miriam Simos, ativista do movimento feminista mais conhecida como Starhawk, afirma, em seu livro A dança cósmica das feiticeiras, cuja primeira edição data de 1979, que a feitiçaria [...] é uma religião, talvez a mais antiga religião existente no Ocidente. Suas origens são anteriores ao cristianismo, judaísmo e ao Islã; até mesmo ao budismo e ao hinduísmo e é muito diferente de todas as supostas grandes religiões. A Antiga religião, como a denominamos, está em essência mais próxima às tradições nativas americanas ou ao xamanismo do Ártico. Ela não se baseia em dogmas ou em um conjunto de crenças, nem tampouco em escrituras ou num livro sagrado revelado por um grande homem. A Feitiçaria retira os seus ensinamentos da natureza e inspira-se no movimento do sol, da lua e das estrelas, no vôo dos pássaros, no lento crescimento das árvores e nos ciclos das estações.
Um pouco adiante, acrescenta que A Deusa possui infinitos aspectos e milhares de nomes. Ela é a realidade por trás de várias metáforas. Ela é a realidade, a deidade manifesta, onipresente em toda a vida, em cada um de nós. A Deusa não é distinta do mundo. Ela é o mundo e todas as coisas nele: lua, sol, estrela, pedra, semente, rio, vento, onda, folha e ramo, broto e flor, dentes e garras, mulher e homem. Em Feitiçaria, carne e espírito são uma só coisa.
Como se vê por estes exemplos, a Wicca assenta-se sobre os conceitos de ancestralidade e de imanência. As bruxas atuais afirmam ser praticantes de uma religião cujas origens datam do paleolítico, embora algumas admitam que esta religião passou por uma renovação (através de Gardner) em meados do séc.XX. A divindade central – a Deusa – está intimamente relacionada à existência, ao mundo natural, não se situando alhures, mas sim permeando todas as criaturas, ou mesmo todas as coisas, manifestando-se através dos fenômenos e dos ciclos naturais. O Deus de chifres, a um tempo filho e consorte, possui um caráter nitidamente secundário, sendo até mesmo ignorado por algumas vertentes, manifestando-se como princípio fecundador ou, ainda, como representação do aspecto masculino da Deusa.
Na prática, esse “quase monoteísmo” não fica explícito, embora haja gradações. Gardner não nomeou deusas e deuses nos seus livros, mas afirmou que a Deusa das bruxas possuía um nome, que ele estava proibido de revelar. Uma vez que as principais fontes usadas pelas bruxas a respeito de sua própria religião são Murray, Frazer, Graves, Leland e outros autores aos quais já nos referimos anteriormente, algumas centram seu culto nas figuras de Diana, Dianus e outras divindades citadas por esses autores. Ainda graças a Murray e Gardner, uma boa parte das bruxas utiliza-se do panteão celta ou pseudo-celta em seus ritos, especialmente aquelas divindades mencionadas nos ciclos da mitologia irlandesa. Graças à maior divulgação na cultura ocidental, o panteão greco-romano também é amplamente utilizado. Em menor escala, mas com constância, recorrem a divindades egípcias ou a divindades sumérias ou babilônicas.
Em resumo, pode-se dizer que a Wicca possui uma única divindade abrangente e multifacetada, confundida com a própria natureza, comumente dividida em um aspecto principal, feminino, e um aspecto secundário, masculino. No entanto, de acordo com a ocasião, toma de empréstimo as figuras de divindades de diversas religiões e mitologias, que pelas suas características se prestem ao objetivo dos rituais.
Ainda em termos de crenças, é possível afirmar que a crença em reencarnação é parte integrante da bruxaria moderna. Em O significado da bruxaria, Gardner relata brevemente como veio a conhecer as bruxas que, posteriormente, o iniciaram na sua religião, nos seguintes termos:
[...] em 1939, aqui na Bretanha, conheci algumas pessoas [...]. Elas insistiam em dizer que já me conheciam. Nós conversamos a respeito de todos os lugares onde já havíamos estado e eu jamais poderia tê-las conhecido antes nesta vida; mas elas afirmavam ter me conhecido em vidas passadas. Embora eu acredite em reencarnação, assim como muitas pessoas que já tenham vivido no Oriente, não me recordo claramente de minhas vidas passadas; o que gostaria muito. No entanto, essas pessoas contaram-me o suficiente para fazer-me pensar a respeito. Então, algum destes novos (ou velhos) amigos disseram: ‘você pertenceu a nós no passado. Você é do nosso sangue. Volte para onde você pertence’.
Em A bruxaria hoje, ele já afirmara que O deus do culto é o deus do próximo mundo, da morte e da ressurreição, ou da reencarnação, o consolador, o confortador. Após a vida, você vai alegremente ao seu reino para o descanso e o alívio, tornando-se jovem e forte, esperando a época de renascer na terra de novo [...]. A questão da reencarnação, no entanto, não possui uma doutrina uniforme entre as bruxas. Um dos livros mais significativos sobre as crenças e práticas da Wicca, The Witches’ Way, escrito em 1984 como complementação de uma obra anterior, Eight Sabbats for Witches (1981), pelo casal Janet e Stewart Farrar, dedica todo um capítulo à questão da reencarnação. Sua visão sobre o assunto não difere daquela preconizada por algumas religiões orientais ou pelo kardecismo:
[...] cada alma ou essência humana individual renasce continuamente, em uma série de encarnações corpóreas nesta terra, aprendendo suas lições e encarando as conseqüências de suas ações, até que esteja suficientemente avançada para progredir para o próximo estágio (seja ele qual for).
Scott Cunningham, um dos maiores responsáveis pela popularização da Wicca ao longo dos anos 80, compartilha da mesma opinião. Raven Grimassi e Silver RavenWolf, não diferem muito em suas posições, mas acrescentam aos conceitos citados a figura de Summerland, ou País-do-Verão, lugar de repouso das almas entre as sucessivas encarnações (ou após a última encarnação). Essa espécie de “paraíso neopagão” parece remontar a Emanuel Swedenborg, através do escritor e espiritualista americano do séc.XIX Andrew Jackson Davis. Por outro lado, o autor de Wicca for Men, A. J. Drew, apresenta nesta obra uma visão completamente diferente, pela qual nem ao menos a individualidade da alma humana seria preservada ao longo das sucessivas reencarnações, sendo todo o processo comparável a um fenômeno natural, onde a idéia de mérito ou aperfeiçoamento não está presente. Outros autores ao menos mencionam a reencarnação em suas obras.
De qualquer maneira, a idéia de ciclos que se repetem indefinidamente é predominante na religião, sendo a tônica de suas celebrações. Recorrendo novamente aos Farrar, poderíamos sintetizar uma espécie de mito que rege as principais cerimônias celebradas durante o ano, chamado por vezes de mito da Roda-do-Ano.
No início da primavera, tanto a Deusa quanto o Deus se apresentam no seu aspecto jovem, ela como a Virgem e ele como a criança-divina. Conforme o ano avança em direção ao verão, eles amadurecem em poder e vigor e se dá o casamento divino. No auge do verão, a Deusa está grávida e o Deus, até então representado como o “Rei do Carvalho”, torna-se o sábio “Rei do Azevinho”. Em fins do outono, dá-se a morte do “Rei do Azevinho” e a Deusa recolhe-se ao mundo inferior para dar a luz, o que acontece no auge do inverno, quando tem lugar o renascimento do “Rei do Carvalho” e o início de um novo ciclo.
Essa mitologia tem paralelo indiscutível (se não origem) com as idéias de Frazer sobre o rei-divino e é claramente agrária. Ao passo que a Deusa representa a própria natureza, ou a terra, ao longo do ciclo de preparação, plantio, colheita e “pausa” invernal, o Deus representa o sol e a variação da duração dos dias e do calor ao longo do ano.
O calendário litúrgico da Wicca baseia-se livremente no mito acima, como dissemos, e consiste em oito celebrações, regularmente distribuídas ao longo do ano: os sabás maiores e, intercalados a estes, os sabás menores, ou celebrações de solstícios e equinócios.
Em Yule, no solstício de inverno (por volta de 21 de dezembro no hemisfério norte), celebra-se o nascimento da criança-divina. É o dia mais curto do ano e, por isso mesmo, o momento em que, tendo atingido o ponto mais baixo de sua trajetória, o sol começa a passar cada vez mais tempo no céu. Imbolc, celebrado em 2 de fevereiro no hemisfério norte, é um festival associado ao retorno da luz, ao efetivo fim do inverno, e à purificação para a chegada da primavera. Ostara, o equinócio de primavera (cerca de 21 de março no hemisfério norte), seria basicamente um rito de fertilidade, com o intuito de propiciar o plantio que se dará em seguida. A noite de Beltane, de 30 de abril para primeiro de maio, marca o início do verão e a época de plantio. Significativamente, celebra-se nesta data o casamento divino, a união sexual entre a Deusa e o Deus, como representação da fecundação da natureza. No solstício de verão, celebra-se o sabá Litha, também chamado simplesmente Midsummer ou meio do verão. Basicamente, a idéia seria a celebração do trabalho de plantio encerrado e da expectativa de uma colheita próspera, do Deus e da Deusa em sua plenitude. Seguem-se as celebrações de Lughnasad ou Lammas, na noite de 30 de julho para primeiro de agosto no hemisfério norte, e de Mabon, ou equinócio de outono, por volta de 21 de setembro, sendo basicamente festivais de colheita. Por fim, dá-se aquele que é considerado o mais importante dos sabás, o Samhain ou Halloween, popularizado como “dia das bruxas”, momento de preparação para o inverno que se aproxima e de comunhão com os espíritos dos antepassados, marcando o momento da morte do Deus e do recolhimento da Deusa para o mundo inferior.
A descrição acima é bastante simplificada, mas basta para termos uma idéia geral da temática dessas celebrações. Nos livros sobre Wicca, os autores são unânimes em afirmar que os quatro sabás maiores (Imbolc, Beltane, Lughnasad e Samhain) eram cerimônias observadas pelos celtas, ao passo que os demais, as celebrações de equinócios e solstícios, foram incorporados posteriormente ao calendário das bruxas, a partir das invasões teutônicas. Outra afirmação comum nesses livros é que, com o advento da cristandade e a conseqüente demonização da antiga religião, tais ritos foram cristianizados e transformados em festas cristãs.
Ambas as afirmações são parcialmente verdadeiras. Os quatro sabás maiores eram realmente comemorados pelos celtas, com significado bastante semelhante ao admitido pela Wicca. Já a idéia da celebração dos solstícios como resultado das invasões teutônicas vem de Murray e a descrição geral dos sabás como “festivais do fogo” deve-se, sem dúvida, à influência de Frazer. A incorporação de elementos de diversos desses festivais às festas cristãs é inegável: o maypole, o costume de pular fogueiras, de encenarem-se casamentos e outros persistiram nas chamadas “festas juninas”, por exemplo. A própria simbologia do Samhain persistiu com ligeiras alterações no Halloween e no Dia de Todos os Santos. Isso, no entanto, se deu através de um longo processo de assimilação cultural durante a Idade Média, no qual elementos de festividades populares foram incorporados ao cristianismo, enquanto elementos deste fundiram-se a festividades populares, e não através de um processo intencional e abrangente de obliteração levado a cabo pela Igreja. Note-se que diversos folguedos populares, especialmente os relacionados ao início e final do inverno, continuam acontecendo em vários lugares da Europa atual, como a “Festa dos Rapazes” do norte de Portugal.
Além dessas comemorações principais, os praticantes da Wicca reúnem-se nos esbás. Segundo Gardner, [...] o esbá é a reunião do coven local para discutir assuntos locais, ou simplesmente para diversão e é, ou deveria ser, realizado na lua cheia. Dessa maneira, pode-se dizer que os ritos da bruxaria moderna são praticados em duas situações distintas: os sabás são comemorações abertas, ou festividades, marcando pontos do ano relacionados com a crença, ao passo que os esbás são reuniões fechadas, reservadas aos membros de um determinado coven, ou grupo de bruxas, quando estas tratam de assuntos pertinentes apenas ao grupo.
Além disso, existem ritos específicos para o casamento (handfasting), para invocar a proteção divina para um recém-nascido (Wiccaning) e, evidentemente, para a iniciação de um novo membro no grupo.
Outra característica marcante da bruxaria moderna é a crença na efetividade de algum tipo de magia. Para o senso comum, essa observação parece desnecessária, uma vez que a figura da bruxa como praticante de magia está estabelecida. No entanto, a associação da bruxaria moderna com a magia não é, de forma alguma, automática. Embora a maior parte das bruxas e bruxos modernos pratique alguma forma de ritual mágico e a prática de alguma forma de magia seja um dos elementos constituintes, pelo menos, de um esbá, existem gradações nessa associação e, de uma forma geral, o aspecto religioso da Wicca sempre suplantou o aspecto meramente prático.
O trecho de Gardner que citei à página 68, bem como o seguinte trecho de Doreen Valiente, podem nos aproximar melhor desse assunto:
Uma das primeiras coisas que aprendi com Gerald Gardner, que foi o bruxo que me iniciou, foi que os poderes mágicos estão latentes em todos nós. São os poderes naturais, embora misteriosos, da mente interior. O que a feitiçaria faz, ele me revelou, é providenciar uma atmosfera na qual esses poderes possam se manifestar.
Portanto, a idéia de magia dentro da bruxaria moderna é (ou pelo menos foi) a de que a prática da magia é uma capacidade de qualquer ser humano e não um “dom” da bruxa, mas que esta capacidade pode ser desenvolvida, ou despertada, pela relação com o mundo natural – e em conseqüência com a própria natureza interior – que a prática da religião proporciona. Ou seja: o desenvolvimento de tais “poderes psíquicos” seria, a um só tempo, conseqüência e parte integrante da prática religiosa.
Vale lembrar que busco me reportar, aqui, aos anos de consolidação e formação da bruxaria moderna e não ao momento atual, no qual aquelas influências às quais me referi no início deste tópico, e o apelo comercial do esoterismo, motivaram a publicação de inúmeras obras cujo mote principal é a divulgação de “receitas de feitiços”, bem como associaram a bruxaria moderna à prática de qualquer arte divinatória, esotérica ou alegadamente terapêutica. Baralhos de tarô, cristais terapêuticos, pêndulos de radiestesia, astrologia, telepatia, projeção astral e outras práticas podem fazer parte do “arsenal” das bruxas dos dias atuais, mas não obrigatoriamente daquelas às quais Gardner e seus primeiros seguidores se referiam.
A “magia operacional” das bruxas de Gardner era tão atávica quanto sua “magia ritualística”, o que o levou a definir a bruxaria como sendo, a um só tempo, religião e arte (craft). Envolvia as artes da cura e do envenenamento e, em conseqüência, do conhecimento das ervas. De métodos para amaldiçoar e para atrair a sorte e o amor. Do uso de velas, incensos e outras substâncias e artifícios capazes de produzir um “estado alterado de consciência”, no qual seria possível operar maravilhas. Não diferia grandemente, portanto, dos trobriandeses de Malinowsky ou dos Zande de Evans-Pritchard. A magia, na bruxaria, seria, dessa forma, parte integrante da vida diária e não rito extraordinário; e os primeiros autores a respeito do assunto foram concordes em dizer que, nos dias atuais, em que as comodidades da vida moderna nos elevaram a um patamar onde a satisfação das necessidades básicas não depende dela, sua utilização seria facultativa. Por fim, um último aspecto – e certamente polêmico - do rito e das crenças da bruxaria moderna precisa ser abordado: sua relação com a nudez e com o sexo rituais. Novamente, é necessário ressaltar que nenhum destes dois elementos é ao menos comum na prática hodierna da grande maioria das bruxas neopagãs, mas pelo menos o primeiro teve relevância no período ao qual me reporto e conservou sua importância em grupos mais tradicionalistas. Já no primeiro capítulo de A bruxaria hoje, Gardner fez as seguintes afirmações:
[...] quando as pessoas me perguntam, por exemplo: ‘por que você diz que as bruxas trabalham nuas?’, eu apenas posso dizer: ‘porque elas o fazem’. ‘Por quê?’ é a questão seguinte e a resposta, simples, é que os rituais dizem a elas que é necessário. Outra resposta é que suas práticas são remanescentes de uma religião da Idade da Pedra e elas mantêm os antigos costumes. [...] As bruxas acreditam que o poder reside no interior de seus corpos e elas podem libertá-lo de diversas maneiras, sendo que a mais simples é dançar em roda, cantando ou gritando, para induzir um frenesi; esse poder que elas crêem exsudar de seus corpos seria retido pelas roupas. [...] Em resumo, tal é a verdade sobre a bruxaria. Nos dias vitorianos ela seria chocante, mas, nestes dias de clubes nudistas, seria tão terrível?
Nos próximos tópicos, discutiremos diretamente as diversas influências encontráveis nos escritos de Gardner, mas vale lembrar, agora, que Charles Leland foi uma dessas influências, bem como lembrar sua convicção nas benesses associadas ao naturismo. Leland, em seu Evangelho das bruxas, já colocara as seguintes palavras na boca de sua “deusa das bruxas”, Diana: “como sinal da sua inequívoca liberdade, deveis comparecer desnudos em seus ritos, tanto homens quanto mulheres”.
Este mesmo trecho de Leland é citado, aliás, no capítulo do The Witches’ Way, dos Farrar, dedicado à nudez ritual, onde eles apresentam pelo menos quatro razões para que os ritos sejam praticados com os participantes nus ou, como a literatura a respeito do assunto consagrou, “vestidos de céu” (skyclad).
A primeira seria uma renúncia deliberada ao princípio de separação entre corpo e espírito preconizada pelo cristianismo, o qual teria sido “responsável por identificar o corpo com o mal e o espírito com o bem, e colocá-los em guerra um com o outro”. A segunda seria que “opiniões experientes sustentam que é mais fácil elevar o poder psíquico com o corpo descoberto do que com ele coberto”. A terceira teria fundo psicológico, uma vez que as roupas seriam um fator importante na formação de uma auto-imagem pela qual a pessoa se apresenta ao mundo; mas, no entanto, “para ser uma bruxa competente, você precisa acima de tudo ser você mesma”. Por fim, a nudez apagaria todas as diferenças sociais, nivelando os participantes dos ritos.
Seja como for, a nudez ritual, embora tenha sido parte integrante dos primeiros anos da nova religião das bruxas, parece ter caído em desuso nos últimos 20 anos. Há poucas referências a essa prática nos livros mais modernos e, na verdade, ela conservou-se quase que unicamente nos covens gardnerianos e alexandrinos, ou entre as chamadas “bruxas solitárias”. Evidentemente, hão de ser levadas em conta as diversas mudanças sociais e culturais ocorridas entre o final dos anos 50 e os anos 90.
A questão do sexo ritual está igualmente envolvida em polêmica e nos remete, pelo menos de forma superficial, ao entendimento do rito da Wicca, propriamente dito, para ser perfeitamente compreendida.
Um ritual Wiccano, de forma bastante genérica (uma vez que cada um dos sabás ou dos esbás tem uma característica própria), constitui-se de diversas etapas: procede-se a purificação ritual do local e dos participantes, efetua-se a criação do “círculo mágico” onde as atividades terão lugar, invocam-se as divindades celebradas no rito, faz-se a consagração dos alimentos que serão consumidos ao fim do ritual, etc. Aludirei a cada uma destas fases nos tópicos seguintes, ao buscar traçar suas origens.
O ponto alto da cerimônia, no entanto, é a consumação do “Grande Rito”, a união simbólica do Deus e da Deusa, ou dos aspectos feminino e masculino, opostos e complementares, da divindade. Este rito consuma-se, após invocações específicas, mais ou menos elaboradas, pela introdução, pelo sacerdote, do seu athame (punhal ritual) na taça de vinho empunhada pela sacerdotisa, após o que ambos bebem da taça e, em seguida, esta é passada para todos os demais presentes. Este rito, é claro, possui um cunho eminentemente sexual, e diversos autores admitem que a simbologia da introdução do punhal na taça pode ser substituída pelo efetivo intercurso sexual entre sacerdote e sacerdotisa oficiantes.
Na prática, no entanto, o que temos é o seguinte: em suas obras, Gardner não preconiza nenhum tipo de sexo ritual, embora mencione em algumas passagens a idéia de “matrimônio sagrado”. Todavia, diversas das fontes de Gardner aludiam a esse tipo de prática. Em Leland, podemos ler “[...] então, quando a dança atingir seu apogeu, todas as luzes serão apagadas e nos amaremos livremente”. Ela também estava presente nas descrições dos cultos de mistérios da antiguidade, que Gardner considerava correlatos à sua religião das bruxas. Portanto, quando o ritual da bruxaria moderna foi sistematizado por Gardner e seus seguidores imediatos, especialmente por Doreen Valiente, a idéia de completude através da união dos opostos, da ligação sexual entre Deusa e Deus, representados pelo sacerdote e sacerdotisa do coven, deve ter sido incluída de forma simbólica, com a possibilidade de ser realizada de forma real. Ademais, como veremos mais à frente, a idéia de que ritos sexuais estariam diretamente associados à religião das bruxas, se divulgada, seria contrária aos interesses de Gardner ao promover sua religião.
Dessa maneira, eu diria o seguinte: a nudez ritual está efetivamente relacionada à prática das bruxas modernas, embora não seja disseminada e, pelo contrário, seja mais comum hoje em dia o uso de elaboradas vestimentas rituais. Já o sexo ritual surge como um rito simbólico, uma encenação, e não há elementos para afirmar que ele seja ou tenha sido praticado de forma real a não ser entre grupos isolados de bruxas ou, ainda, entre casais de praticantes que já possuíssem algum tipo de relacionamento sexual.
Ao longo deste tópico, descrevi alguns dos principais aspectos da moderna bruxaria neopagã, ou Wicca, no que se refere às crenças e às práticas das bruxas. Deixei de aludir, no entanto, a alguns detalhes - como o uso de determinados instrumentos ou o costume de realizarem-se banquetes rituais após as cerimônias - visto que minha intenção foi apenas fornecer uma visão geral da religião, conforme sintetizada por Gardner e seus seguidores imediatos. Nos tópicos seguintes, voltarei a diversos dos pontos aqui abordados e acrescentarei alguns mais, ao procurar traçar as origens do mito e do rito da Wicca.”
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Fonte:
Janluis Duarte: “Os Bruxos do Século XX: Neopaganismo e Invenção de Tradições na Inglaterra do Pós-Guerras”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, como requisito à obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História Social. Orientador: Prof.Vicente Dobroruka). Universidade de Brasília – UnB. Brasília, 2008.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Wicca, a moderna bruxaria pagã
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