Os rituais de morte no século XVIII

“A morte sempre causou grande temor aos homens do ocidente. Entretanto, a vivência deste medo só pode ser entendida dentro de seu contexto histórico. No final da Idade Média, por exemplo, o cenário da cristandade européia estava cercado de representações que alimentavam a visão tétrica da morte. Abundavam temas como o das danças macabras, dos sermões apocalípticos, imagens do Juízo Final, dentre outros. A concepção de morte, presente nos últimos séculos da Idade Média, que enfatizavam o horrível e o funesto, estava de acordo com a noção de macabro enquanto uma “ idéia bastante popular nas mentalidades coletivas a partir do século XIII”.

Nas Minas setecentistas, o macabro pode ser compreendido como o transtorno frente à precariedade da vida, estampada na morte, e o destino no além, onde o que importava era a salvação da alma.

Como em outras regiões da colônia, na área mineradora, a morte, era algo perturbador. No que dizia respeito à vida além túmulo, tanto portugueses quanto africanos acreditavam numa espécie de julgamento, isto é, tinham a concepção de que bons e maus mortos teriam destinos diferentes.

O homem deste período procurava ter uma “boa morte”, esta compreendia na morte preparada, diferenciada da “má morte”, pelo planejamento, de modo que morrer repentinamente, por afogamento, assassinato, acidente ou mau súbito, era desgraça muito maior do que própria morte. Entretanto, no período inaugural das Minas até meados do século XVIII, a “má morte” não parece infreqüente, eram comuns assassinatos e mortes violentas (facadas, tiros, pancadas, afogamento, soterramento,etc.) e, não raro encontravam-se corpos de adultos e crianças escravos e pobres no espaço urbano e em portas de igrejas sem identificação alguma.

Para contornar o perigo da morte inesperada, era imperioso estar em dia com os sacramentos da confissão, comunhão, eucaristia e, por certo, a extrema-unção além de, no caso dos mais afortunados, terem providencia o testamento.

A morte devia ser uma cerimônia pública e organizada. Organizada pelo próprio moribundo e por seus familiares auxiliados pela Igreja através das irmandades; estas procuravam fornecer as condições para que os irmãos tivessem uma “boa morte”.

Os sacramentos eram parte essencial da preparação para a morte, o moribundo deveria receber a extrema-unção, a penitência e a eucaristia, sendo o primeiro o mais importante. A extrema-unção, tanto para a população livre como para a população cativa, era um sacramento, por excelência, purificador, que, paradoxalmente, preparava a entrada do cristão no além e, ao mesmo tempo, podia exercer um efeito de restaurar a saúde debilitada dos doentes:

“Os efeitos próprios deste sacramento são muitos, e principalmente três. O primeiro é, perdoar-nos as relíquias dos pecados, pelos quais faltava satisfazer da nossa parte, ficando por isso aliviada a alma do enfermo. O segundo é, dar muitas vezes, o em todo, ou em parte a saúde corporal ao enfermo, quando assim convêm para bem de sua alma. O terceiro é, consolar o enfermo, dando-lhe confiança, e esforço, para que na agonia da morte possa resistir aos assaltos do inimigo, e levar com paciência as dores da enfermidade.”

A penitência, também chamada pela Igreja de contrição, para o que fosse perfeita, deve seguir o seguinte processo :

“Consiste este sacramento em muitas cousas, que para ele são necessárias; umas da parte do penitente, que o recebe, e outras da parte do Sacerdote, que o administra. O penitente que o recebe, há de concorrer com a contrição, confissão, satisfação. O sacerdote que o administra há de concorrer absolvendo, e há de ter para isso legítima faculdade, ou ordinária, ou delgada, de quem lha pode dar.

A administração da Eucaristia aos enfermos é ordenada aos sacerdotes para que aplicassem a todos os seus fregueses, tendo estes ainda a obrigação de investigarem, na sua paróquia, se há alguém que precise, o procurasse e administrasse o sacramento. Caso alguma pessoa viesse a morrer sem a Eucaristia por culpa ou negligência do padre, este seria preso e suspenso do seu ofício e dos benefícios por um ano e demais penas que lhe imputassem os visitadores.

Podemos notar, através da leitura de alguns assentos de óbito, a importância de se receber os ditos sacramentos, sendo que a ausência de algum destes ritos vinha sempre acompanhada de justificativa.

Foi o que ocorreu com Mariana de Souza Oliveira, preta, forra, que recebeu apenas o sacramento da penitência, pois faleceu de “morte apressada”.

Além dos sacramentos era preciso tratar também do cortejo, da mortalha, da sepultura, além das missas. A pompa podia faltar durante a vida, mas era essencial no último momento da existência. A cerimônia do morto contava com certas convenções que deviam ser expressas solenemente. Eram as irmandades as detentoras dos aparatos e do saber necessário a uma cerimônia devidamente pomposa. Elas zelavam para que, na morte de um associado, os irmãos saíssem “ em pompa”, ou “em corpo de comunidade” e, ainda com muita compostura.

Assim como os cortejos fúnebres, era importante também o local do sepultamento e as igrejas eram o lugar privilegiado. As sepulturas estavam associadas ao local onde Cristo era o senhor, eram a casa de Deus, sob cujo teto, entre imagens de santos e de anjos, deviam também abrigar os mortos, até a ressurreição prometida para o fim dos tempos. A proximidade física entre cadáver e imagens divinas, aqui em baixo, representava um modelo da contiguidade espiritual que se desejava obter, lá em cima, entre a alma e as divindades. A igreja era uma das portas de entrada do Paraíso.

Contudo, numa sociedade escravista e hierarquizada, como a das Minas Gerais do século XVIII, a morte e seus rituais também reproduziam esta hierarquia. Nem todos tinham condições de desfrutar da “pompa da morte”, escravos e forros se esforçavam para garantir um funeral digno se associando às confrarias.”

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Fonte:
JULIANA LEMOS LACET: “OS RITUAIS DE MORTE NAS IRMANDADES DE ESCRAVOS E LIBERTOS:Vila Rica, século XVIII”. (Dissertação apresentada ao curso de História da Universidade Federal de Ouro Preto como requisito para obtenção do Grau de Bacharel. Área de Concentração: História Social. Orientador: Profª Drª Andréa Lisly Gonçalves). Universidade Federal de Ouro Preto. Mariana/MG, 2003.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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