Mulher: sedução, maldição e beleza

SEDUÇÃO: MALDIÇÃO E BELEZA

“O sexo feminino sempre foi cercado por uma aura de magia e mistério. Não é de se estranhar que foram criados muitos mitos que explicavam o sangramento menstrual, a gestação e as diferenças entre os corpos dos homens e das mulheres. Por exemplo, o sangue, sempre ligado à vida e à morte, quando fluía da mulher, era visto pelo homem primitivo como mágico, pois, se ela perdia essa energia vital todo mês e, mesmo assim, não morria, havia algo de muito poderoso e perigoso, ou seja, não entendido, atuando nela. Para explicar a menstruação, vários mitos foram criados em culturas diferentes, mas o que há de comum entre eles é sempre o fato de a mulher ter de ser isolada durante certo período do mês. Assim, a mulher poderia se purificar e, mais do que isso, o resto da comunidade não seria contaminado pelas impurezas de um sangue que se acreditava amaldiçoado (LEAL, 2004). É de se notar que o sangue amaldiçoado poderia ser maléfico para a comunidade, mas não o era para a mulher. Logo, ela deveria ser detentora de poderes mágicos potencialmente perigosos para poder mesmo assim sobreviver. Algo semelhante se nota em relação à gestação. Como não se via uma ligação direta entre as relações sexuais e a gravidez, a idéia que o homem primitivo tinha era de que alguma espécie de espírito teria invadido o ventre da mulher, que passava a ser, então, a portadora de um ser misterioso dentro de si. Mesmo sendo perigosa, não era possível excluir a mulher da comunidade e, por isso, deveria haver meios de se controlar, dominar a mulher. Assim, surgem muitos mitos que foram internalizados pela própria mulher para que ela pudesse se autocontrolar. Alguns desses mitos são, por exemplo, que a mulher tende à falsidade, à infidelidade, que é fisicamente frágil, emotiva ao extremo, que ela depende do homem, vê na família sua única razão de existir e que sua maior realização é a maternidade (LEAL, 2004). Até hoje podemos ver como muitos deles estão naturalizados e fossilizados em nossa sociedade.

As culturas matriarcais, como a celta e a germânica, deixaram alguns traços na cultura clássica, de onde trouxemos muitos de nossos mitos. O culto às deusas da fertilidade justificou em alguns casos a existência das prostitutas sagradas e até das comuns. Mesmo assim, foram criados mecanismos de repressão para a sexualidade feminina que faziam essas prostitutas pagarem um preço alto pela liberdade sexual. Eram desvalorizadas socialmente perante a mulher casada, por exemplo. E aqui vemos a dicotomia entre a mulher sagrada e a mulher maldita – a mulher casada e a prostituta, a santa e a feiticeira, a mulher de casa (domesticada) e a da rua e assim por diante.

Além disso, e, talvez por isso, a mulher também foi por muito tempo vista como a que devia ficar em casa cuidando da família e do lar. Enquanto o homem assumia uma identidade voltada para fora, ou seja, para a comunidade, o que sobrou para a mulher foi o âmbito do lar, da família e do amor. A mulher e o homem foram, portanto, posicionados em pólos numa oposição. Enquanto ser homem ficou mais ligado ao trabalho pesado, à vida social e à razão, ser mulher significava estar mais próxima de paixões, dos sentimentos e dos mistérios naturais como os do sexo e da maternidade. Como não tinha uma posição mais ativa frente à sociedade, a mulher passou a ser uma mera continuidade do homem, vista sempre em função dele.

Podemos lembrar aqui que a Bíblia, como é normalmente interpretada, reforçaria essa idéia ao contar a história de Adão e Eva. Enquanto Deus criou o homem a partir do barro, Eva, que não estava nos planos de Deus, foi criada a partir do homem e para suprir uma necessidade dele de ter companhia. Além disso, quem nomeia Eva não é Deus, é Adão e o “ato de nomear, desde a mais remota antiguidade, é um ato de poder” (LEAL, 2004, p. 39). Além disso, surge aqui a idéia da mulher sedutora na cultura cristã. Tanto Adão como Eva sabiam que não deveriam comer do fruto proibido, pois Deus havia dito que eles morreriam se o fizessem. No entanto, Eva ouve o que a serpente disse, que comer do fruto os faria iguais a Deus. Assim, Eva convence Adão a participar da violação do tabu. O curioso seria que Adão não ouviu Deus, mas, sim, Eva. Ou seja, Eva tinha poder de sedução bastante para convencer Adão. Tanto é que, ao explicar para Deus por que comera do fruto proibido, Adão afirma que tinha sido enganado pela mulher – explicação aceita por Deus. O poder de sedução da mulher causou então o fim do paraíso e a introdução do mal na Terra (LEAL, 2004). É, por assim dizer, um poder irresistível, o que exime o seduzido de qualquer culpa. Afinal, o “poder do feminino é o da sedução” (BAUDRILLARD, 1991, p. 11). Deve-se frisar, porém, que essa é uma interpretação da Bíblia e que há certamente outras que indicam que a desobediência de Eva se deveu à curiosidade e à busca do conhecimento. Inclusive a cobra pode ser símbolo desse conhecimento. No entanto, a idéia da mulher pecadora e da Eva como a sedutora de Adão permanece forte.

Seria possível aqui citar inúmeros mitos que demonstram que a mulher era vista como um ser demoníaco, sujo e causador do mal para a humanidade. Mesmo quando sua beleza foi exaltada por artistas e poetas, havia resquícios ainda de uma misoginia que entendia essa característica feminina como perigosa armadilha do jogo de sedução. A beleza era amedrontadora e despertava a desconfiança dos homens. O “belo sexo” (LIPOVETSKY, 2000) passou a ser glorificado somente a partir da Renascença. No entanto, a ambivalência entre bem e mal, sagrado e profano continuou marcando a identidade da mulher até tempos recentes.

Os primeiros tempos da secularização da cultura não chegaram a superar o imaginário tradicional da sedução feminina confundida com os malefícios de Eva.
No século passado, as representações da mulher eram ordenadas principalmente em torno da oposição de dois grandes estereótipos clássicos: a pureza e a luxúria, o anjo e o demônio, a beleza virginal e a beleza destruidora. (...)
Essa bipolaridade antinômica dos tipos femininos perdeu seu caráter central apenas a partir do segundo terço do século XX: começa então a época da pós-mulher fatal (LIPOVETSKY, 2000, p. 172).

A mulher que surgiu no século XX, segundo ainda Lipovetsky, permanecia ligada à sedução. No entanto, as pin-ups e as estrelas como Marilyn Monroe, Sophia Loren e Brigitte Bardot não tinham mais almas diabólicas. Exalavam uma sexualidade lúdica, quase infantilizada, sem qualquer ligação próxima com o Pecado Original. No entanto, a mulher dos anos 1940 e 1950 ainda não tinha muita liberdade no que se refere à identidade. Os exageros mostrados nas representações – seios volumosos, cintura extremamente fina, quadris largos – reforçaram uma idéia de que a mulher não era muito mais do que partes de corpos reunidas num objeto feito para o prazer masculino. Assim, por mais que tenha perdido grande parte do peso do pecado, as pin-ups ainda não representaram “a afirmação de uma identidade feminina autônoma” (LIPOVETSKY, 2000, p. 175). Mas isso era previsível, já que o termo pin-up tem sua origem nas imagens que eram afixadas nas paredes por homens que queriam apenas apreciar uma mulher bonita ou até por aqueles que estavam distantes de casa devido ao serviço militar. A relevância que as pin-ups têm no desenvolvimento da identidade feminina, porém, reside no fato de que elas contribuíram para a valorização da beleza feminina de modo que a mulher e a beleza continuaram a andar lado a lado.

O mercado midiático aproveitou-se disso para vender o sonho de beleza para grandes massas de mulheres que queriam, de alguma forma, se parecer com os tipos ideais que lhe eram mostrados. As representações de mulheres na publicidade dos anos 1940 e 50 passou a ter como alvo principal a sedução de outras mulheres e não dos homens. Não era mais uma questão de seduzir os homens para que eles desejassem estar fisicamente com aquela mulher. A sedução passou a ser usada para se conquistar consumidoras que se identificavam com as representações nos anúncios e nos comerciais. A publicidade não criou esse processo, mas, na verdade, fez uso da noção de identificação para aumentar o lucro. Assim sendo, as representações da mulher divulgadas nos meios de comunicação passaram a povoar o cotidiano e a mulher começou a escolher, dentro desse repertório, com quais ela se identificaria.

Em nossas sociedades, a beleza feminina já não é acusada de produzir o mal, é produzida como uma imagem de sonho para o consumo das massas (...). A beleza equívoca e maldita foi substituída pela beleza mercantil, uma beleza funcionalizada a serviço da promoção das marcas e do faturamento das indústrias do imaginário (LIPOVETSKY, 2000, p. 182).

A presença de tipos ideais e de atrizes em muitos anúncios é certeira no que se refere a mostrar exemplos de beleza a ser alcançada pelas mulheres. São celebridades que seduzem o homem, que internaliza padrões da mulher desejável, e também a mulher, que pode querer ser como elas. Se a sedução é fundamental para a publicidade, a beleza pode funcionar como instrumento de todo o processo de seduzir e fazer desejar.”

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Fonte:
Krishna Figueiredo de Almeida Ramos: “Sedução e desejo – representações da mulher nos anúncios de perfumes femininos”. (Programa de Pós-graduação em Comunicação – Mestrado Linha de Pesquisa – Imagem e Som. Orientadora: Profª. Dra. Susana Madeira Dobal Jordan). Universidade de Brasília – UnB. Brasília, 2006.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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