IMAGEM: ALCEU MAYNARD ARAÚJO – “FOLCLORE NACIONAL”
Aproximações analíticas entre o Vodu e o Candomblé
"Nesta parte do trabalho, pretendemos fazer alguns acercamentos entre o Vodu e o Candomblé. Antes disso, cabe frisar que, em virtude das transformações dos dois Estados-nação e as necessidades geopolíticas de ambos, o Vodu permaneceu no Haiti como única prática religiosa de matriz africana, ao contrário do Brasil, no qual existe uma pluralidade de religiões afro que representam um quadro bastante diversificado. “Em seu conjunto, até os anos 30 deste século (XIX), as religiões negras poderiam ser incluídas na categoria das religiões étnicas ou de preservação de patrimônios culturais dos antigos escravos e seus descendentes, enfim, religiões que mantinham vivas tradições de origem africana” (PRANDI, 1995 - 96, p. 65). Depois, conforme as mudanças ocorridas na sociedade brasileira, “formaram-se em diferentes áreas do Brasil, com diferentes ritos e nomes locais derivados de tradições africanas diversas: candomblé na Bahia, xangô em Pernambuco e Alagoas, tambor de mina no Maranhão e Pará, batuque no rio Grande do sul, macumba no Rio de Janeiro” (PRANDI, 1995 - 96, p. 65).
Tal como se encontram atualmente na América Latina o Vodu e o Candomblé, podemos apontar quatro características que lhes são comuns, mas sem dúvida existem muitas outras semelhantes. Haverá uma delas principal, as outras dela decorrentes, mas todas fundamentais.
a) A primeira é a possessão: de modo diferente das demais religiões ou seitas na America Latina, a divindade se apossa do adepto, nesses dois cultos, servindo-se dele como instrumento para a sua comunicação com os que já partiram, ou seja, os mortos. Entendemos, portanto, não ser o fenômeno da possessão, por si mesmo, que caracteriza os cultos de matriz africana, mas a circunstância de ser a divindade o agente da possessão.
b) A segunda é a individualidade da divindade: A possessão se exerce não sobre todos os adeptos, mas sobre alguns escolhidos por ela. Acredita no universo religioso afro que cada pessoa tem uma divindade protetora. Não são todas as pessoas que servem de instrumento (cavalo) para uma divindade poder possuir sua cabeça, alguns precisam iniciar-se (assentar o santo) para recebê-la e para outros, pode ser simplesmente uma questão hereditária.
c) A terceira e a quarta são o oráculo e o mensageiro: Existem duas divindades, que são inseparáveis nos cultos de matriz africana: um chamado Ifá, que seria o oráculo e o outro Exu, o mensageiro celeste. Para os nagôs e os jejes, ambos são seres intermediários entre as divindades e os homens. Ifá, entretanto, por trazer aos homens a palavra das divindades, situa-se em posição superior a Exu, que transmite às divindades os desejos dos homens. “Como mensageiro dos deuses, Exu tudo sabe, não há segredo para ele, tudo ele ouve e tudo ele transmite. E pode quase tudo, pois conhece todas as receitas, todas as fórmulas, todas as magias” (PRANDI, 2005, p. 74).
Em suma, estas características comuns aos dois cultos: a possessão pela divindade, a individualidade da divindade, a consulta ao adivinho e o despacho de Exu demonstram que esses cultos constituem realmente uma unidade, a qual assume formas diversas em cada lugar.
Nesses dois universos religiosos, os deuses e os mortos se misturam com os “vivos”, ouvem as queixas, aconselham, concedem graças, resolvem as suas desavenças e dão remédio para as suas dores e consolo para os seus infortúnios. O mundo celeste não está distante, nem superior e o adepto pode conversar diretamente com os deuses e aproveitar sua benemerência. Aqui estamos usando o termo “vivos” entre aspas, uma maneira de mostrar que essa dicotomia sagrado/profano, vivo/morto não existe no universo cultural religioso desses cultos. O sagrado e o profano, o vivo e o morto se correlacionam, mas são diferentes, são estados diferentes, enquanto no mundo ocidental são dicotômicos. Como nesses cultos foram introduzidos muitos elementos do Catolicismo e querendo ou não, a nossa interpretação sobre esses cultos está carregada da visão ocidental, cristã, deixamos o termo entre aspas.
Como já sabemos, no caso da cultura yoruba, no Candomblé nagô se usa o termo Orixá para se referir às divindades, e no caso da cultura daomeana, no Candomblé Jeje se usa o termo Vodum para denominá-las. E cada categoria das divindades está ligada a um dos elementos da natureza (água, fogo, ar, terra), a espécies vegetais ou animais, a atividades sociais e a comportamentos humanos.
É curioso constatar que, nas religiões de matriz africana nas Américas, particularmente o Vodu e o Candomblé, é comum um praticante ir diariamente à missa, comungar ou participar de procissões e de rituais da Igreja Católica. Os próprios praticantes não acham estranha essa atitude. Observamos também que, no Brasil, atualmente, boa parte dos adeptos das religiões afro são brancos, inclusive os pais e mães-de-santo A maioria das pessoas sem muito contato com as culturas de matriz africana acham muito estranho isso, pois parece ser quase incompreensível uma pessoa venerar os santos católicos e, ao mesmo tempo, os lois (loas) do Vodu ou orixás do Candomblé. No Haiti, é comum encontrar ex-seminaristas, ex-padres católicos, evangélicos etc, praticando o Vodu ou pelo menos tendo conhecimento sobre elementos do culto. É nesse aspecto que uma antropóloga haitiana diz que 95% dos haitianos são católicos e 100% são voduístas, uma maneira de mostrar como o Vodu está enraizado no pensamento social haitiano, na cultura popular, nos gestos, nas falas etc.
As orações da Igreja Católica, como o Pai Nosso, a Ave Maria, são igualmente rezadas no Vodu. A ladainha dos santos da Igreja Católica ocupa um lugar importante no ritual voduísta. Cada loa, ou seja, espírito do Vodu tem sua correspondência nos santos da religião católica. O sacerdote voduísta começa a sua cerimônia com o sinal da Santa Cruz, o mesmo da religião católica.
Em Dieu dans le Vaudou haïtien, Hurbon (1972) salienta que o calendário do Vodu estabelece uma correspondência entre suas grandes festas e as festas católicas. Por exemplo: a) a Noite de Natal: considera-se como o tempo de sorte ou de felicidade, de preparação dos pós mágicos para os tratamentos, tempo dos banhos sagrados que fortalecem e protegem contra os sortilégios; b) 2 de novembro: festa dos loas Guéde, gênios da morte que, nesse dia, têm permissão para passear, de branco ou de preto, por onde quiserem: praças, ruas, mercados, estradas; c) durante a quaresma: todos os objetos usados no culto do Vodu são cobertos por um lençol, como as imagens nos templos católicos.
De acordo com Hurbon (1972), a comunhão tem também a virtude de aumentar o poder do praticante do Vodu. Há até loas considerados católicos, como é o caso de Dãmbala-Wedo. O casamento: é preciso cumprir antes as exigências do loa para poder contrair casamento na Igreja. Em geral, o verdadeiro casamento é o contraído com o loa. Recorde-se que cada praticante do Vodu considera-se esposa ou cavalo de um espírito. Fora de um casamento místico entre um praticante e um loa, é o “père savane” que faz o papel do padre católico. O loa ezili, a deusa do amor, exige ser desposada antes de aquele que a serve tomar mulher. De modo geral, o êxito de um casamento depende das oblações que ele tiver feito aos loas. Oblações apresentadas nos cemitérios, nos túmulos dos parentes ou diante da grande cruz de Baron Samdi, senhor do cemitério. As missas dos mortos são indispensáveis aos olhos dos praticantes do Vodu. Graças a elas, o morto, permanente perigo para a família ou o grupo social, pode ser conjurado e se tornar favorável aos vivos.
É comum no Haiti escutar pessoas dizendo que, para ser um bom voduísta a pessoa deve ser um bom católico. “Deve ser católico para servir os loas” (MÉTRAUX, 1958, p. 287). Esta frase, citada por Alfred Métraux, em Le Vaudou haitien, é de um haitiano da cidade de Marbial, ela expressa o sincretismo do Vodu, a articulação entre o Vodu e o Catolicismo.
“Nada poderá impedir que as massas haitianas pratiquem, ao mesmo tempo, o Vodu e o Catolicismo” (HURBON, 1987, p. 70). Um fato pode nos ajudar a entender esse dinamismo, de uma pessoa ser voduísta e participar da missa da Igreja Católica ou do Candomblé e fazer o mesmo: o período da escravatura. Durante esse regime, esses dois corpora se fundiam no mundo dos escravos. Para disfarçar, praticavam o catolicismo aos olhos dos senhores e misturavam os dois universos religiosos. Eram obrigados a isso, até porque estavam proibidos de praticar os seus cultos e não queriam romper a ligação com seus ancestrais. Agora, não são mais obrigados, mas isso permaneceu nas suas práticas como elemento válido. Podemos interpretar esse fato como estratégia de sobrevivência do escravo diante do regime escravagista. “Passando do sistema do Vodu para o sistema católico, muitos haitianos mudaram apenas formalmente de universo. É a razão pela qual pode-se não ser praticante do Vodu e permanecer integrado ao sistema” (HURBON, 1987, p. 147).
Para avançar nessa dimensão analítica, Roger Bastide, nas suas pesquisas sobre os estudos afro-brasileiros, substitui a noção de classificação, que implica a de encaixamento das classes, pela de corte e de ruptura: para ele, o universo do Candomblé é dividido em compartimentos estanques. Esta compartimentação do real, de acordo com Bastide, aliás, é o que permite compreender a facilidade com a qual o adepto do Candomblé vive simultaneamente no universo religioso africano tradicional e no universo ocidental, os quais, em sua mente, conseguem coexistir sem entrar em conflito. É o mesmo argumento que justifica a atuação do adepto do Vodu no seu universo sociorreligioso e no universo cristão, católico. Cabe salientar que o pensamento religioso do Candomblé não desconhece o encaixamento das classes. Entendemos, portanto, que
Um seguidor desse Candomblé pode, se quiser, frequentar ritos da Igreja Católica, mas essa participação já não será mais vista como parte do preceito obrigatório a que estavam sujeitos os membros do Candomblé mais antigos; já não é mais um dever ritual. Não é mais necessário mostrar-se católico para poder louvar os deuses africanos, assim como não é mais necessário ser católico para ser brasileiro (PRANDI, 2005, p. 229).
A religiosidade afro não se fecha num corpo de doutrina nem exige conversão como outras religiões ou seitas. Por isso, não há nenhuma contradição em seguir crenças e realizar rituais tradicionais e, paralelamente, adotar outras práticas religiosas, como as cristãs, por exemplo.
No tangente ao corpo sacerdotal de hoje do Vodu e do Candomblé, observamos que, tanto no Brasil quanto no Haiti, os dois cultos passam a ser práticas religiosas de qualquer indivíduo na sociedade, independente da cor da pele. Por mais que o Vodu e o Candomblé tenham surgido em situações de resistência cultural e racial, isto é, como lugar de refúgio dos escravos contra as condições de exploração de sua força de trabalho, portanto, desumanas, hoje em dia encontramos houngan, mambo, adeptos do Vodu negros e mulatos. Também é comum no Brasil encontrar, mesmo nos lugares que têm uma população negra significativa, por exemplo, Bahia, pai e mãe-de-santo brancos.
Assim como encontramos uma divisão entre as divindades no Vodu, em categorias de rada e petro, espíritos frios e quentes, no Candomblé, temos deparado com duas grandes categorias de divindades: a) os deuses tranqüilos e frios; b) os deuses dinâmicos e quentes. Estas duas categorias de entidades correspondem ao ponto de vista genealógico e à oposição entre Oxalá, o criador e os Orixás por ele engendrados, e exprimem-se no ritual por pares de oposições, desde um ponto de vista dicotômico, de influência ocidental: branco/cor, direita/esquerda, assento sem tampa/assento tampado, comida sem tempero/com tempero. “O Candomblé formou-se e transformou-se no contexto social e cultural católico do Brasil do século XIX” (PRANDI, 2005, p. 67).
Através desses comentários, podemos constatar que tanto o Candomblé quanto o Vodu, como práticas sincréticas, não se conservaram puras. Houve grandes misturas com outros cultos africanos, europeus e nativos das Américas. “Um intenso processo de mudança cultural reorganiza os cultos afro-brasileiros, liberando-os de amarras que vêm de outras épocas, e dotando-os de outras identidades, que retrabalham tradições e lhes emprestam novos sentidos” (FERRETTI, 1995, p. 10).
A partir das nossas observações sobre a literatura analisada para desenvolver a investigação, verificamos ser o Vodu a religião oficial atualmente no Haiti e no Brasil essa possibilidade de ter uma religião afro oficializada pela nação brasileira foi sufocada por vários motivos já apresentados ao longo desta investigação. Mas, desde um ponto de vista estadual e não nacional, o prestígio do Candomblé foi reconhecido oficialmente: em 15 de janeiro de 1976, o então governador da Bahia, Sr Roberto Santos, assinou, diante de 800 pais e mães-de-santo e de enorme multidão, o decreto que liberava finalmente o culto do registro obrigatório na Secretaria da Segurança Pública e do controle policial. A partir daquele momento, a vida religiosa foi integrada à vida cotidiana, à vida pública; acontecimentos, tais como confirmações de ogãs, deká, falecimentos, aniversários, fundação de novos terreiros tornaram-se objetos de notas na imprensa local (MOURA, 2004).
Nas sociedades africanas antigas e atuais, a religião tinha e continua tendo uma ligação forte com a vida cotidiana, por isso podemos nos impressionar pela sua sobrevivência nas Américas apesar de todos os fatores para provocar seu desaparecimento, como a proibição dos cultos, a divisão dos escravos em tribos diferentes, o sofrimento, o trato desumano etc. O culto dos espíritos e dos deuses, como também a magia, foram, para o escravo, ao mesmo tempo um refúgio e uma forma de resistência à opressão. O regime escravagista poderia completamente desanimar o africano escravizado. A simples proibição de praticar os seus cultos poderia impedi-los de dançar e cantar como exigem as práticas teísto-animistas. “Nas plantações de cana e nas oficinas, eram reunidos escravos de etnias diferentes, aos quais os senhores davam outros nomes” (HURBON, 1987, p. 66-67). Na ilha de São Domingos (atual Haiti e República Dominicana), em 1704, um decreto proibiu especificamente os escravos de se reunir de noite sob qualquer pretexto de dançar no seu sentido amplo. “O caráter político do Vodu tornou-se tão evidente que tudo se fez para impedir qualquer manifestação religiosa dos negros” (HURBON, 1987, p. 68).
Em 1765, foi criada, sob o nome de Primeira Légion de Saint Domingue, uma tropa, a função de proibir qualquer tipo de agrupamento ou reunião dos escravos para praticar o Calenda (naquela época, Vodu era chamado de Calenda, hoje em dia não é mais usado, não sabemos de onde vem essa palavra). Uma regra da polícia foi promulgada em 1664 por M. de Tracy: exigia dos proprietários de escravos que os levassem ao batismo. O artigo 2 do Código Negro (10 de março de 1685) dizia: “Todos os escravos que estarão nas nossas Ilhas serão batizados e instruídos na religião Católica Apostólica e Romana” (MÉTRAUX, 1958, p. 26, Tradução do autor).
De acordo com Alfred Métraux, a primeira tentativa oficial da Igreja Católica para combater o Vodu ocorreu em 1896. O bispo chamado Kersuzan da cidade de Cabo haitiano, situada no norte do Haiti, organizou contra a “superstição” várias conferências e reuniões, o que resultou na “liga contra o Vodu”, pela qual as ações em cada paróquia deviam ser exercidas por cada pároco. Contudo, o bispo ameaçava os adeptos do Vodu e tomou outras medidas, como proibir ao houngan e à mambo de serem padrinhos de crianças no batismo católico e a qualquer adepto do Vodu de receber a eucaristia na Igreja Católica. Todas essas medidas não tiveram êxito, mas em 1939 se iniciou a verdadeira luta da Igreja contra o Vodu, sob o governo do presidente Elie Lescot.
Até à revisão do Código Penal de 1953, no Haiti qualquer prática de magia e feitiçaria era motivo de punição. Isso ficou bem claro no artigo 405:
Todos aqueles que fazem ouangas, caprelatas, vaudoux, compèdre, macandale e outros sortilégios serão punidos por três a seis meses de cadeia e uma fiança de sessenta gourdes51 a cento cinqüenta, a) para o tribunal de polícia; e no caso de reincidência, fica na cadeia de seis meses a dois anos e paga uma fiança de trezentos gourdes a mil gourdes, b) para o tribunal correcional, sem prejudicar as penas mais fortes que incorriam pelos delitos ou crimes por eles cometidos para preparar e executar seus maléficos (MÉTRAUX, 1958, p. 240, tradução do autor).
Salientamos que tanto no Haiti como no Brasil, houve perseguição às práticas religiosas de origem africana. Em Segredos Guardados: Orixás na alma brasileira, Reginaldo Prandi demonstra a atitude de um pastor da Igreja Universal em relação às religiões afro-brasileiras. O referido autor afirma:
Não foi um ato isolado e gratuito o discurso do pastor fluminense Samuel Gonçalves, da Assembleia de Deus, [...] em que afirmou que uma das “três maldições do Brasil é a religião africana”. [...] E esse é apenas um exemplo de um largo leque de agressões. Nos tempos atuais, a perseguição sofrida pelas religiões afro-brasileiras passou de órgãos do Estado para instituições da sociedade civil (PRANDI, 2005, p. 232).
Além dessa perseguição recente da Igreja Universal em relação à religiosidade afro-brasileira, já no início do século XX, entre os anos 1920 e 1942, houve várias perseguições policiais ao Candomblé, particularmente na Bahia. No período mencionado, houve um delegado da polícia chamado Pedro Azevedo Gordilho, conhecido como Pedrito que perseguia o Candomblé baiano violentamente, inclusive virou símbolo de perseguição na Bahia durante um período.
Ao mesmo tempo, cabe frisar a existência de policiais que praticavam o Candomblé nessa época, e protegiam aos adeptos quando sabiam que a polícia ia bater nas casas para pegar os objetos do culto e levar os praticantes presos até a delegacia da polícia. A integração de alguns policiais nesse culto ajudou na sua sobrevivência, foi fundamental para manter a sua integridade. “Há o caso do inspetor de um quarteirão que, ao mesmo tempo, era „ogã‟, e, na hora da batida no Candomblé, tentou frustrar a ação da polícia” (LÜHNING, 1995 - 96, p. 202). Algumas pessoas, às vezes para se proteger das perseguições policiais, diziam que cultuavam apenas santos católicos. E outros tentavam não expor os objetos do culto para evitar confusão com a polícia e desviar a ordem pública com as rezas do catolicismo. Portanto, os adeptos do Candomblé, naquela época, enfrentaram muitas dificuldades para manter a sua fé e continuar servindo aos Orixás e Voduns. Outros tinham postura diferente: além de usar os objetos do ritual, diziam à polícia que a sua religião tinha o mesmo valor que o catolicismo, o protestantismo etc, simplesmente era uma outra maneira de ligar-se com o sagrado.
Não faz muito tempo, os terreiros, para fazerem suas festas públicas, necessitavam de licenças especiais da polícia. Isso já não se dá, talvez por causa de entidades como as federações, existentes na Bahia e em outros estados as quais tentam salvaguardar os templos de questões com a sociedade complexa. O Candomblé está integrado ao sistema da sociedade brasileira, com quem interage, exercendo influência individual ou impondo o reconhecimento coletivo de sua importância cultural, social e econômica.
Contudo, antes desse avanço, os negros tinham duas alternativas: a) aceitar o sistema de valor dos opressores e assim se contentar com o lugar colocado para eles pelos outros; b) encontrar uma maneira completamente nova de olhar a realidade, que os capacitasse a lutar contra a opressão. A maioria dos negros escolheu a segunda, usando Jesus Cristo como fundamento de sua luta. Por meio de Jesus, eles podiam saber que eram pessoas, ao contrário do que os senhores diziam e os tratavam como objetos e coisas. Jesus era aquela realidade que invadia a história deles, vindo de fora e depositando neles uma definição de humanidade que não podia ser destruída por maus tratos.
Quando os africanos e seus descendentes nas Américas cantam, oram e contam estórias acerca da sua luta, um fato é claro: eles não estão tratando simplesmente de si mesmos. Estão falando acerca de outra realidade, “tão alta que você não pode passar por cima dela. A intenção dos senhores de escravos era apresentar um “Jesus” que tornaria o escravo obediente e dócil. Supunha-se que Jesus faria dos africanos e seus descendentes melhores escravos, isto é, fiéis servos dos senhores brancos. Mas, muitos escravos rejeitaram essa visão de Jesus, não apenas porque ela contradizia sua herança africana, mas também porque contradizia o testemunho das Escrituras.
Por isso, para se compreender o movimento dinâmico do pensamento afro em relação ao sofrimento dos africanos e seus descendentes nas Américas quando os afros tentaram tirar sentido da vida, é necessário ter-se em mente a existência social e política da qual o pensamento afro emergiu. O pensamento religioso afro representa a resposta teológica de um povo africano e seus descendentes nas Américas à sua situação de servidão na América Latina e no resto do mundo.”
---
Fonte:
Joseph Handerson: "VODU NO HAITI – CANDOMBLÉ NO BRASIL: IDENTIDADES CULTURAIS E SISTEMAS RELIGIOSOS COMO CONCEPÇÕES DE MUNDO AFRO-LATINO-AMERICANO". (Dissertação apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Pelotas pelo mestrando Joseph Handerson, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Profª Orientadora: Drª. Beatriz Ana Loner). Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, 2010
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Tal como se encontram atualmente na América Latina o Vodu e o Candomblé, podemos apontar quatro características que lhes são comuns, mas sem dúvida existem muitas outras semelhantes. Haverá uma delas principal, as outras dela decorrentes, mas todas fundamentais.
a) A primeira é a possessão: de modo diferente das demais religiões ou seitas na America Latina, a divindade se apossa do adepto, nesses dois cultos, servindo-se dele como instrumento para a sua comunicação com os que já partiram, ou seja, os mortos. Entendemos, portanto, não ser o fenômeno da possessão, por si mesmo, que caracteriza os cultos de matriz africana, mas a circunstância de ser a divindade o agente da possessão.
b) A segunda é a individualidade da divindade: A possessão se exerce não sobre todos os adeptos, mas sobre alguns escolhidos por ela. Acredita no universo religioso afro que cada pessoa tem uma divindade protetora. Não são todas as pessoas que servem de instrumento (cavalo) para uma divindade poder possuir sua cabeça, alguns precisam iniciar-se (assentar o santo) para recebê-la e para outros, pode ser simplesmente uma questão hereditária.
c) A terceira e a quarta são o oráculo e o mensageiro: Existem duas divindades, que são inseparáveis nos cultos de matriz africana: um chamado Ifá, que seria o oráculo e o outro Exu, o mensageiro celeste. Para os nagôs e os jejes, ambos são seres intermediários entre as divindades e os homens. Ifá, entretanto, por trazer aos homens a palavra das divindades, situa-se em posição superior a Exu, que transmite às divindades os desejos dos homens. “Como mensageiro dos deuses, Exu tudo sabe, não há segredo para ele, tudo ele ouve e tudo ele transmite. E pode quase tudo, pois conhece todas as receitas, todas as fórmulas, todas as magias” (PRANDI, 2005, p. 74).
Em suma, estas características comuns aos dois cultos: a possessão pela divindade, a individualidade da divindade, a consulta ao adivinho e o despacho de Exu demonstram que esses cultos constituem realmente uma unidade, a qual assume formas diversas em cada lugar.
Nesses dois universos religiosos, os deuses e os mortos se misturam com os “vivos”, ouvem as queixas, aconselham, concedem graças, resolvem as suas desavenças e dão remédio para as suas dores e consolo para os seus infortúnios. O mundo celeste não está distante, nem superior e o adepto pode conversar diretamente com os deuses e aproveitar sua benemerência. Aqui estamos usando o termo “vivos” entre aspas, uma maneira de mostrar que essa dicotomia sagrado/profano, vivo/morto não existe no universo cultural religioso desses cultos. O sagrado e o profano, o vivo e o morto se correlacionam, mas são diferentes, são estados diferentes, enquanto no mundo ocidental são dicotômicos. Como nesses cultos foram introduzidos muitos elementos do Catolicismo e querendo ou não, a nossa interpretação sobre esses cultos está carregada da visão ocidental, cristã, deixamos o termo entre aspas.
Como já sabemos, no caso da cultura yoruba, no Candomblé nagô se usa o termo Orixá para se referir às divindades, e no caso da cultura daomeana, no Candomblé Jeje se usa o termo Vodum para denominá-las. E cada categoria das divindades está ligada a um dos elementos da natureza (água, fogo, ar, terra), a espécies vegetais ou animais, a atividades sociais e a comportamentos humanos.
É curioso constatar que, nas religiões de matriz africana nas Américas, particularmente o Vodu e o Candomblé, é comum um praticante ir diariamente à missa, comungar ou participar de procissões e de rituais da Igreja Católica. Os próprios praticantes não acham estranha essa atitude. Observamos também que, no Brasil, atualmente, boa parte dos adeptos das religiões afro são brancos, inclusive os pais e mães-de-santo A maioria das pessoas sem muito contato com as culturas de matriz africana acham muito estranho isso, pois parece ser quase incompreensível uma pessoa venerar os santos católicos e, ao mesmo tempo, os lois (loas) do Vodu ou orixás do Candomblé. No Haiti, é comum encontrar ex-seminaristas, ex-padres católicos, evangélicos etc, praticando o Vodu ou pelo menos tendo conhecimento sobre elementos do culto. É nesse aspecto que uma antropóloga haitiana diz que 95% dos haitianos são católicos e 100% são voduístas, uma maneira de mostrar como o Vodu está enraizado no pensamento social haitiano, na cultura popular, nos gestos, nas falas etc.
As orações da Igreja Católica, como o Pai Nosso, a Ave Maria, são igualmente rezadas no Vodu. A ladainha dos santos da Igreja Católica ocupa um lugar importante no ritual voduísta. Cada loa, ou seja, espírito do Vodu tem sua correspondência nos santos da religião católica. O sacerdote voduísta começa a sua cerimônia com o sinal da Santa Cruz, o mesmo da religião católica.
Em Dieu dans le Vaudou haïtien, Hurbon (1972) salienta que o calendário do Vodu estabelece uma correspondência entre suas grandes festas e as festas católicas. Por exemplo: a) a Noite de Natal: considera-se como o tempo de sorte ou de felicidade, de preparação dos pós mágicos para os tratamentos, tempo dos banhos sagrados que fortalecem e protegem contra os sortilégios; b) 2 de novembro: festa dos loas Guéde, gênios da morte que, nesse dia, têm permissão para passear, de branco ou de preto, por onde quiserem: praças, ruas, mercados, estradas; c) durante a quaresma: todos os objetos usados no culto do Vodu são cobertos por um lençol, como as imagens nos templos católicos.
De acordo com Hurbon (1972), a comunhão tem também a virtude de aumentar o poder do praticante do Vodu. Há até loas considerados católicos, como é o caso de Dãmbala-Wedo. O casamento: é preciso cumprir antes as exigências do loa para poder contrair casamento na Igreja. Em geral, o verdadeiro casamento é o contraído com o loa. Recorde-se que cada praticante do Vodu considera-se esposa ou cavalo de um espírito. Fora de um casamento místico entre um praticante e um loa, é o “père savane” que faz o papel do padre católico. O loa ezili, a deusa do amor, exige ser desposada antes de aquele que a serve tomar mulher. De modo geral, o êxito de um casamento depende das oblações que ele tiver feito aos loas. Oblações apresentadas nos cemitérios, nos túmulos dos parentes ou diante da grande cruz de Baron Samdi, senhor do cemitério. As missas dos mortos são indispensáveis aos olhos dos praticantes do Vodu. Graças a elas, o morto, permanente perigo para a família ou o grupo social, pode ser conjurado e se tornar favorável aos vivos.
É comum no Haiti escutar pessoas dizendo que, para ser um bom voduísta a pessoa deve ser um bom católico. “Deve ser católico para servir os loas” (MÉTRAUX, 1958, p. 287). Esta frase, citada por Alfred Métraux, em Le Vaudou haitien, é de um haitiano da cidade de Marbial, ela expressa o sincretismo do Vodu, a articulação entre o Vodu e o Catolicismo.
“Nada poderá impedir que as massas haitianas pratiquem, ao mesmo tempo, o Vodu e o Catolicismo” (HURBON, 1987, p. 70). Um fato pode nos ajudar a entender esse dinamismo, de uma pessoa ser voduísta e participar da missa da Igreja Católica ou do Candomblé e fazer o mesmo: o período da escravatura. Durante esse regime, esses dois corpora se fundiam no mundo dos escravos. Para disfarçar, praticavam o catolicismo aos olhos dos senhores e misturavam os dois universos religiosos. Eram obrigados a isso, até porque estavam proibidos de praticar os seus cultos e não queriam romper a ligação com seus ancestrais. Agora, não são mais obrigados, mas isso permaneceu nas suas práticas como elemento válido. Podemos interpretar esse fato como estratégia de sobrevivência do escravo diante do regime escravagista. “Passando do sistema do Vodu para o sistema católico, muitos haitianos mudaram apenas formalmente de universo. É a razão pela qual pode-se não ser praticante do Vodu e permanecer integrado ao sistema” (HURBON, 1987, p. 147).
Para avançar nessa dimensão analítica, Roger Bastide, nas suas pesquisas sobre os estudos afro-brasileiros, substitui a noção de classificação, que implica a de encaixamento das classes, pela de corte e de ruptura: para ele, o universo do Candomblé é dividido em compartimentos estanques. Esta compartimentação do real, de acordo com Bastide, aliás, é o que permite compreender a facilidade com a qual o adepto do Candomblé vive simultaneamente no universo religioso africano tradicional e no universo ocidental, os quais, em sua mente, conseguem coexistir sem entrar em conflito. É o mesmo argumento que justifica a atuação do adepto do Vodu no seu universo sociorreligioso e no universo cristão, católico. Cabe salientar que o pensamento religioso do Candomblé não desconhece o encaixamento das classes. Entendemos, portanto, que
Um seguidor desse Candomblé pode, se quiser, frequentar ritos da Igreja Católica, mas essa participação já não será mais vista como parte do preceito obrigatório a que estavam sujeitos os membros do Candomblé mais antigos; já não é mais um dever ritual. Não é mais necessário mostrar-se católico para poder louvar os deuses africanos, assim como não é mais necessário ser católico para ser brasileiro (PRANDI, 2005, p. 229).
A religiosidade afro não se fecha num corpo de doutrina nem exige conversão como outras religiões ou seitas. Por isso, não há nenhuma contradição em seguir crenças e realizar rituais tradicionais e, paralelamente, adotar outras práticas religiosas, como as cristãs, por exemplo.
No tangente ao corpo sacerdotal de hoje do Vodu e do Candomblé, observamos que, tanto no Brasil quanto no Haiti, os dois cultos passam a ser práticas religiosas de qualquer indivíduo na sociedade, independente da cor da pele. Por mais que o Vodu e o Candomblé tenham surgido em situações de resistência cultural e racial, isto é, como lugar de refúgio dos escravos contra as condições de exploração de sua força de trabalho, portanto, desumanas, hoje em dia encontramos houngan, mambo, adeptos do Vodu negros e mulatos. Também é comum no Brasil encontrar, mesmo nos lugares que têm uma população negra significativa, por exemplo, Bahia, pai e mãe-de-santo brancos.
Assim como encontramos uma divisão entre as divindades no Vodu, em categorias de rada e petro, espíritos frios e quentes, no Candomblé, temos deparado com duas grandes categorias de divindades: a) os deuses tranqüilos e frios; b) os deuses dinâmicos e quentes. Estas duas categorias de entidades correspondem ao ponto de vista genealógico e à oposição entre Oxalá, o criador e os Orixás por ele engendrados, e exprimem-se no ritual por pares de oposições, desde um ponto de vista dicotômico, de influência ocidental: branco/cor, direita/esquerda, assento sem tampa/assento tampado, comida sem tempero/com tempero. “O Candomblé formou-se e transformou-se no contexto social e cultural católico do Brasil do século XIX” (PRANDI, 2005, p. 67).
Através desses comentários, podemos constatar que tanto o Candomblé quanto o Vodu, como práticas sincréticas, não se conservaram puras. Houve grandes misturas com outros cultos africanos, europeus e nativos das Américas. “Um intenso processo de mudança cultural reorganiza os cultos afro-brasileiros, liberando-os de amarras que vêm de outras épocas, e dotando-os de outras identidades, que retrabalham tradições e lhes emprestam novos sentidos” (FERRETTI, 1995, p. 10).
A partir das nossas observações sobre a literatura analisada para desenvolver a investigação, verificamos ser o Vodu a religião oficial atualmente no Haiti e no Brasil essa possibilidade de ter uma religião afro oficializada pela nação brasileira foi sufocada por vários motivos já apresentados ao longo desta investigação. Mas, desde um ponto de vista estadual e não nacional, o prestígio do Candomblé foi reconhecido oficialmente: em 15 de janeiro de 1976, o então governador da Bahia, Sr Roberto Santos, assinou, diante de 800 pais e mães-de-santo e de enorme multidão, o decreto que liberava finalmente o culto do registro obrigatório na Secretaria da Segurança Pública e do controle policial. A partir daquele momento, a vida religiosa foi integrada à vida cotidiana, à vida pública; acontecimentos, tais como confirmações de ogãs, deká, falecimentos, aniversários, fundação de novos terreiros tornaram-se objetos de notas na imprensa local (MOURA, 2004).
Nas sociedades africanas antigas e atuais, a religião tinha e continua tendo uma ligação forte com a vida cotidiana, por isso podemos nos impressionar pela sua sobrevivência nas Américas apesar de todos os fatores para provocar seu desaparecimento, como a proibição dos cultos, a divisão dos escravos em tribos diferentes, o sofrimento, o trato desumano etc. O culto dos espíritos e dos deuses, como também a magia, foram, para o escravo, ao mesmo tempo um refúgio e uma forma de resistência à opressão. O regime escravagista poderia completamente desanimar o africano escravizado. A simples proibição de praticar os seus cultos poderia impedi-los de dançar e cantar como exigem as práticas teísto-animistas. “Nas plantações de cana e nas oficinas, eram reunidos escravos de etnias diferentes, aos quais os senhores davam outros nomes” (HURBON, 1987, p. 66-67). Na ilha de São Domingos (atual Haiti e República Dominicana), em 1704, um decreto proibiu especificamente os escravos de se reunir de noite sob qualquer pretexto de dançar no seu sentido amplo. “O caráter político do Vodu tornou-se tão evidente que tudo se fez para impedir qualquer manifestação religiosa dos negros” (HURBON, 1987, p. 68).
Em 1765, foi criada, sob o nome de Primeira Légion de Saint Domingue, uma tropa, a função de proibir qualquer tipo de agrupamento ou reunião dos escravos para praticar o Calenda (naquela época, Vodu era chamado de Calenda, hoje em dia não é mais usado, não sabemos de onde vem essa palavra). Uma regra da polícia foi promulgada em 1664 por M. de Tracy: exigia dos proprietários de escravos que os levassem ao batismo. O artigo 2 do Código Negro (10 de março de 1685) dizia: “Todos os escravos que estarão nas nossas Ilhas serão batizados e instruídos na religião Católica Apostólica e Romana” (MÉTRAUX, 1958, p. 26, Tradução do autor).
De acordo com Alfred Métraux, a primeira tentativa oficial da Igreja Católica para combater o Vodu ocorreu em 1896. O bispo chamado Kersuzan da cidade de Cabo haitiano, situada no norte do Haiti, organizou contra a “superstição” várias conferências e reuniões, o que resultou na “liga contra o Vodu”, pela qual as ações em cada paróquia deviam ser exercidas por cada pároco. Contudo, o bispo ameaçava os adeptos do Vodu e tomou outras medidas, como proibir ao houngan e à mambo de serem padrinhos de crianças no batismo católico e a qualquer adepto do Vodu de receber a eucaristia na Igreja Católica. Todas essas medidas não tiveram êxito, mas em 1939 se iniciou a verdadeira luta da Igreja contra o Vodu, sob o governo do presidente Elie Lescot.
Até à revisão do Código Penal de 1953, no Haiti qualquer prática de magia e feitiçaria era motivo de punição. Isso ficou bem claro no artigo 405:
Todos aqueles que fazem ouangas, caprelatas, vaudoux, compèdre, macandale e outros sortilégios serão punidos por três a seis meses de cadeia e uma fiança de sessenta gourdes51 a cento cinqüenta, a) para o tribunal de polícia; e no caso de reincidência, fica na cadeia de seis meses a dois anos e paga uma fiança de trezentos gourdes a mil gourdes, b) para o tribunal correcional, sem prejudicar as penas mais fortes que incorriam pelos delitos ou crimes por eles cometidos para preparar e executar seus maléficos (MÉTRAUX, 1958, p. 240, tradução do autor).
Salientamos que tanto no Haiti como no Brasil, houve perseguição às práticas religiosas de origem africana. Em Segredos Guardados: Orixás na alma brasileira, Reginaldo Prandi demonstra a atitude de um pastor da Igreja Universal em relação às religiões afro-brasileiras. O referido autor afirma:
Não foi um ato isolado e gratuito o discurso do pastor fluminense Samuel Gonçalves, da Assembleia de Deus, [...] em que afirmou que uma das “três maldições do Brasil é a religião africana”. [...] E esse é apenas um exemplo de um largo leque de agressões. Nos tempos atuais, a perseguição sofrida pelas religiões afro-brasileiras passou de órgãos do Estado para instituições da sociedade civil (PRANDI, 2005, p. 232).
Além dessa perseguição recente da Igreja Universal em relação à religiosidade afro-brasileira, já no início do século XX, entre os anos 1920 e 1942, houve várias perseguições policiais ao Candomblé, particularmente na Bahia. No período mencionado, houve um delegado da polícia chamado Pedro Azevedo Gordilho, conhecido como Pedrito que perseguia o Candomblé baiano violentamente, inclusive virou símbolo de perseguição na Bahia durante um período.
Ao mesmo tempo, cabe frisar a existência de policiais que praticavam o Candomblé nessa época, e protegiam aos adeptos quando sabiam que a polícia ia bater nas casas para pegar os objetos do culto e levar os praticantes presos até a delegacia da polícia. A integração de alguns policiais nesse culto ajudou na sua sobrevivência, foi fundamental para manter a sua integridade. “Há o caso do inspetor de um quarteirão que, ao mesmo tempo, era „ogã‟, e, na hora da batida no Candomblé, tentou frustrar a ação da polícia” (LÜHNING, 1995 - 96, p. 202). Algumas pessoas, às vezes para se proteger das perseguições policiais, diziam que cultuavam apenas santos católicos. E outros tentavam não expor os objetos do culto para evitar confusão com a polícia e desviar a ordem pública com as rezas do catolicismo. Portanto, os adeptos do Candomblé, naquela época, enfrentaram muitas dificuldades para manter a sua fé e continuar servindo aos Orixás e Voduns. Outros tinham postura diferente: além de usar os objetos do ritual, diziam à polícia que a sua religião tinha o mesmo valor que o catolicismo, o protestantismo etc, simplesmente era uma outra maneira de ligar-se com o sagrado.
Não faz muito tempo, os terreiros, para fazerem suas festas públicas, necessitavam de licenças especiais da polícia. Isso já não se dá, talvez por causa de entidades como as federações, existentes na Bahia e em outros estados as quais tentam salvaguardar os templos de questões com a sociedade complexa. O Candomblé está integrado ao sistema da sociedade brasileira, com quem interage, exercendo influência individual ou impondo o reconhecimento coletivo de sua importância cultural, social e econômica.
Contudo, antes desse avanço, os negros tinham duas alternativas: a) aceitar o sistema de valor dos opressores e assim se contentar com o lugar colocado para eles pelos outros; b) encontrar uma maneira completamente nova de olhar a realidade, que os capacitasse a lutar contra a opressão. A maioria dos negros escolheu a segunda, usando Jesus Cristo como fundamento de sua luta. Por meio de Jesus, eles podiam saber que eram pessoas, ao contrário do que os senhores diziam e os tratavam como objetos e coisas. Jesus era aquela realidade que invadia a história deles, vindo de fora e depositando neles uma definição de humanidade que não podia ser destruída por maus tratos.
Quando os africanos e seus descendentes nas Américas cantam, oram e contam estórias acerca da sua luta, um fato é claro: eles não estão tratando simplesmente de si mesmos. Estão falando acerca de outra realidade, “tão alta que você não pode passar por cima dela. A intenção dos senhores de escravos era apresentar um “Jesus” que tornaria o escravo obediente e dócil. Supunha-se que Jesus faria dos africanos e seus descendentes melhores escravos, isto é, fiéis servos dos senhores brancos. Mas, muitos escravos rejeitaram essa visão de Jesus, não apenas porque ela contradizia sua herança africana, mas também porque contradizia o testemunho das Escrituras.
Por isso, para se compreender o movimento dinâmico do pensamento afro em relação ao sofrimento dos africanos e seus descendentes nas Américas quando os afros tentaram tirar sentido da vida, é necessário ter-se em mente a existência social e política da qual o pensamento afro emergiu. O pensamento religioso afro representa a resposta teológica de um povo africano e seus descendentes nas Américas à sua situação de servidão na América Latina e no resto do mundo.”
---
Fonte:
Joseph Handerson: "VODU NO HAITI – CANDOMBLÉ NO BRASIL: IDENTIDADES CULTURAIS E SISTEMAS RELIGIOSOS COMO CONCEPÇÕES DE MUNDO AFRO-LATINO-AMERICANO". (Dissertação apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Pelotas pelo mestrando Joseph Handerson, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Profª Orientadora: Drª. Beatriz Ana Loner). Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, 2010
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!