AIDS: O surgimento do vírus

Embora a Aids tenha surgido no início dos anos 80, o HIV já estava infectando pessoas em algumas regiões do continente africano desde pelo menos as duas décadas anteriores. Para esse trabalho, utilizamos a perspectiva de Mirko Grmek que, em sua obra sobre a Aids, considera que a emergência do HIV não ocorreu de repente por uma mutação brusca, mas resultou de um processo histórico que, após ter se desenrolado ao longo do tempo, veio, nos anos 70, a ultrapassar um limiar crítico.

Para os especialistas, o vírus provavelmente existiu durante algum tempo e pode até ter causado a doença em habitantes de alguma remota região rural, sem ser detectado. Pode ter sido transmitido para outras populações, acompanhando movimentos migratórios, especialmente em direção às áreas urbanas do continente africano. O registro epidemiológico confirmou a sua emergência amplificada em algum lugar na região leste do lago Vitória, em Uganda, e a sua disseminação pelas rotas de caminhões que transportavam mercadorias entre os portos e o interior do continente africano.

Daí ele se espalhou para o resto do mundo, devido às condicionantes históricas e sociais no último terço do século XX: intenso processo de urbanização, onde antes não havia grandes cidades; fluxos migratórios decorrentes desse mesmo processo ou associados a guerras civis e perseguições políticas; incorporação desordenada de tecnologias, muitas vezes desestruturando formas culturais tradicionais, sem que houvesse o correspondente desenvolvimento social para sustentá-las; inúmeras oportunidades de comunicação, comércio e interações entre países de áreas relativamente isoladas.

Vários autores que se dedicaram ao estudo da epidemia da Aids levantaram as causas sociais ligadas a essa “epidemia moderna”. Nesse estudo, chamamos a atenção para alguns aspectos do panorama mundial que influenciaram o seu aparecimento.

O último terço do século XX foi um período em que se verificou, de um lado, um progresso material impressionante, grandes descobertas e inovações tecnológicas, acrescido de uma confiança ilimitada no poder da ciência de resolver os problemas do mundo. Mas também foi um período de questionamentos, em que a sociedade, sobretudo jovem, mobilizada nos grandes centros modernos, propôs outros espaços e novos canais de expressão para o indivíduo, libertando-se das amarras tradicionais, como a religiosa e a familiar, e estabelecendo novos padrões de comportamento, sobretudo sexuais. A pílula anticoncepcional deu liberdade sexual às mulheres jovens, que, pela primeira vez, tinham um método seguro de se proteger contra uma gravidez não-desejada. Foi a época também em que as doenças venéreas deixaram de ser consideradas um grande pesadelo, graças, sobretudo, à utilização de medicamentos como a penicilina. Foi o tempo da contracultura, movimento social de caráter fortemente libertário, de transgressão, da derrubada de valores, do arrombamento das portas da percepção, das drogas, do transar. Sobretudo a década anterior aos anos 80 teve essa característica, assim definida no testemunho de uma das pessoas envolvidas, em depoimento:

“Foi ingênuo, romântico, jovem? Foi tudo isso. Foi principalmente bonito, mas acabou. Hoje é uma ruína pré-histórica (...), mas não se deve esquecê-la (...) Do positivo de sua contradição, valeria a pena lembrar que era generosa, tinha uma alegria feroz de resistência que perdemos desde os anos 80.”

Passados trinta anos daqueles tempos, as análises sobre o aparecimento da Aids chamam a atenção para “aqueles anos loucos” como o período em que, sem que ninguém soubesse, o vírus começou a se espalhar. Como diz a pesquisadora Laurie Garrett,o clima de liberdade sexual não era novo na História, lembrando que até mesmo na Atenas de Aristóteles e Platão as atividades sexuais (homo e hetero) podiam resultar em orgias freqüentes. Mas havia diferenças.

A população do planeta nesse período recente era muito maior e uma porcentagem sempre crescente de pessoas passou a viver nos grandes centros urbanos. Viagens aéreas e transporte em massa permitiam às pessoas do mundo todo ir para as cidades de sua escolha, os movimentos jovens contestatórios e feministas estavam no apogeu, e o número de jovens com menos de 25 anos aumentou. Aventuras heterossexuais anônimas e sem conseqüência não eram mais proibidas, como mostra a pesquisadora no texto abaixo:

“Na dura e alienada atmosfera freqüentemente encontrada nas grandes e inamistosa cidades, as discotecas proporcionavam uma instantânea intimidade. Se havia risco em deixar a discoteca com um estranho, isso apenas aumentava o fascínio sexual da aventura. E para milhares de mulheres, especialmente em países em desenvolvimento, o clima reinante permitia explorar a única fonte potencial e independente de renda: a prostituição”.

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Fonte:
Martha San Juan França: "Ciência em tempos de Aids: uma análise da resposta pioneira de São Paulo à epidemia". (Tese apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo sob a orientação da Profa. Dra. Ana Maria Alfonso-Goldfarb). São Paulo, 2008.


Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

Um comentário:

  1. Excelente publicação, Iba. Parabéns mais uma vez pea iniciativa. Um abraço!!!

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