A Companhia de Jesus no Brasil e a obra da conversão dos índios

“Ao Brasil, os jesuítas vieram, em 1549, a pedido do Rei D. João III, que via neles um instrumento para cumprir seu encargo de conversão dos índios:

“a ocasião que ouve pera isso foy querer el Rey Dom João 3º de Portugal de boa memória povoar esta terra do Brasil, que hera de sua conquista: e vendo por huma parte o grande fruito que o P. Mestre Francisco fazia na Índia assi na conversão dos gentios como no proveito espiritual dos Portugueses, e por outra a obrigação que tinha a conversão dos naturaes desta terra por pertencer ao Mestrado de Cristo cuio perpetuo Administrador elle he, e por cuio respeito leva os dízimos della, pareceolhe que os da Companhia herão muy a proposito pera lhe descarregar sua consciência na conversão dos naturaes della
” (ANÔNIMO, 1598).

Em troca desse serviço de conversão dos índios, a coroa portuguesa comprometeu-se a sustentar os jesuítas no Brasil e pagava-lhes anualmente determinado soldo em dinheiro ou mantimentos. Em decorrência disso, o jesuíta, no Brasil, além de membro de uma ordem religiosa, era um operário do rei português: como operário do rei, tinha a função de civilizar e catequizar índios; como jesuíta, era um “guerreiro de Cristo”,
com a missão de conquistar almas para o reino do Deus que anunciava. Para o pensamento da época, os dois papéis facilmente se complementavam.

Era pelo zelo de salvação das almas e pelo desejo de servir que os jesuítas nortearam sua atuação no Brasil. O campo missionário que aqui encontraram era muito próprio, diferente daquele em que atuavam na Europa ou daquele que encontravam os que iam para o oriente. Os índios pareceram-lhes, a princípio, fáceis de converter, pois, a seus olhos, eles não tinham religião e eram tabula rasa, na qual se poderia gravar a doutrina católica sem obstáculos e em sua forma mais pura. “Acá pocas letras bastan, porque es todo papel blanco y no ay más que escribir a plazer” (NÓBREGA, 1549c:143). Essa impressão de pureza dos índios entusiasmou os primeiros jesuítas que aqui desembarcaram. Com efeito, os relatos deles sobre as primeiras experiências catequéticas no Brasil estão repletas de louvores à terra e descrições de sucessos nas empreitadas de cada um dos missionários na conversão. Na concepção deles, os índios necessitavam do socorro dos arautos do evangelho, pois, dado que não conheciam os preceitos evangélicos e seguiam outros parâmetros religiosos, estavam no caminho da perdição e da condenação eterna. Esse olhar jesuítico complacente, que via os índios como almas inocentes, imersas em costumes pecaminosos e que se condenavam ao inferno sem o saber, vem expresso em várias passagens das cartas jesuíticas, reveladoras de uma espécie de sentimento de compaixão pelos nativos do Brasil. “Quanto mayor hé a cegueira e bruteza do gentio e sua erronia, tanto se mais avia o verdadeiro christão apiadar a ter dele misericórdia e ajudar a remediar sua miseria” (NÓBREGA, 1559b:78). Até mesmo a resistência dos índios em aceitar a catequese católica era concebida como fruto da ignorância ou da sujeição ao demônio. Animados pelo seu fervor, essa situação de perdição dos índios fez com que os inacianos exaltassem a grandiosidade e nobreza de sua missão de soldados de Cristo e empreendessem incomensuráveis esforços para expor aos inocentes índios a única doutrina salvadora.

Perceberam, também, que a principal ferramenta de propagação dos evangelhos, a pregação, mostrava-se ineficaz com os índios, pois estes não se convertiam por meio de artifícios argumentativos, nem estavam dispostos a substituir suas crenças ancestrais pela doutrina católica, como desejavam os inacianos. Os sucessos momentâneos por vezes conseguidos com uma entusiasmada pregação de algum padre eram enganadores, pois os índios não ouviam os padres pelo que falavam, mas porque falavam bem; admiravam a arte retórica, mas não o conteúdo do discurso. Essas resistências macularam a boa impressão que os jesuítas inicialmente tiveram dos índios, e o trabalho de conversão deles ao catolicismo foi se mostrando uma tarefa bastante árdua, que em poucas ocasiões teve os resultados esperados. Também foi mudando a imagem que os jesuítas tinham dos índios, não tão inocentes como a princípio imaginavam, senão gentios viciados em costumes pecaminosos e que insistiam em permanecer em sua vida de pecados. O afeto que os índios tinham aos seus costumes ancestrais e o pouco efeito que os sermões dos padres faziam nas almas deles, tornava os esforços dos missionários praticamente estéreis, longe das conversões esperadas.

Essa situação foi, com o passar do tempo, esfriando o ânimo dos obreiros inacianos, até levá-los a questionar inteiramente a empresa catequética e reduzindo a poucos os entusiasmados com a continuação da obra. Em meados da década de 1550, já eram rotineiras as manifestações de desânimo nos escritos jesuíticos, e a questão se valia a pena continuar investindo na tentativa de conversão dos índios ocupava as reflexões de muitos deles. Os que defendiam a continuidade do empreendimento empenhavam-se por encontrar razões para justificar sua posição e animar seus companheiros; os que concebiam como inúteis os esforços com os índios começaram a investir em outros trabalhos, voltados para outras partes da
população colonial. Além disso, as dificuldades nos trabalhos concretos no contexto indígena brasileiro, contestavam os fundamentos do discurso teológico que sustentava a vocação jesuítica tal como expressa nos documentos fundadores da ordem, o que levou vários jesuítas a abandonar a Companhia ou a solicitar seu regresso à Europa.

O resultado e superação desse período de crise e reflexões dos jesuítas do Brasil acerca de seu trabalho de conversão, que envolveu intensa correspondência com os superiores na Europa, foi a reformulação da forma de atuação missionária com os índios. Essa reformulação deu-se a partir da constatação de que a conversão dos índios implicava também a sua transformação sócio-econômica e a imposição de um dia-a-dia regrado por parâmetros civilizatórios: “por experientia vemos que por amor hé mui difficultosa a sua conversão, mas, como hé gente servil, por medo fazem tudo (...) com sojeição, farão della o que quizerem, ho que não será posível com rezões nem argumentos” (BLAZQUEZ, 1556a: 271). Além disso, a experiência mostrava que “quanto mais apartados de los blancos, tanto mais crédito nos tienen los Indios” (NÓBREGA, 1553b:450). Ao mesmo tempo, porém, a sujeição dos índios exigia a colaboração das autoridades coloniais, pois os jesuítas entendiam que seu poder limitava-se às questões espirituais, o que vinha confirmado nos documentos orientadores da Companhia. Dessa forma, a questão indígena não restringia-se a sua catequização, mas envolvida todo o projeto colonial do Brasil, em virtude da importância dos índios como mão-de-obra. Diante das repercussões em apoiar jesuítas ou colonos, nem todas autoridades estavam dispostas a envolver-se com o projeto jesuítico de catequização dos índios. Enfim, o apoio esperado por
Nóbrega veio apenas com Mem de Sá, quando assumiu o Governo Geral do Brasil, que dispôs-se a colaborar com os jesuítas e assumiu o compromisso da sujeição dos índios às leis portuguesas. Essa aliança resultou no êxito da propagação de um projeto catequético-civilizatório conhecido por aldeamentos. Com eles e diante do sucesso na fundação e propagação deles, renasceu nos inacianos o entusiasmo pelo trabalho de conversão dos índios, consolando os que a ele se dedicavam. Segundo eles, chegara a época de colher o que com lágrimas e desconsolações fora por vários anos semeado. Se antes da aliança com Mem de Sá os trabalhos dos jesuítas com índios foram só lágrimas e desconsolações e, se antes os pés dos índios

“erão veloces ad effundendum sanguinem, agora posso com resão escrever que são ligeiros pera irem e correrem à igreja; e se suas gargantes eram sepulchrum patens pera matarem e comerem vivos, agora estão abertas pera louvarem a Cristo; e se não avia contricio mas infelicitas in viis eorum, agora já chorão e se arrependem e se confessão; e se não avia temor de Deos ante óculos eorum, agora não tão somente do Senhor mas do Governador isto tudo se obra (...) E, asi, fica a cousa tão chãa que se pode dizer erunt prava in directa et aspera in vias planas
”(PIRES, Francisco, 1559:160-161).

Diante do sucesso do projeto dos aldeamentos na Baia, ele espalhou-se, em pouco tempo, para todas as capitanias em que atuavam os jesuítas. No entanto, o entusiasmo durou pouco, pois os trabalhos nos aldeamentos também mostraram-se árduos e cheios de frustrações, deixando a muitos jesuítas desanimados, insatisfeitos e queixosos. As dificuldades eram diversas, principalmente relacionadas à preservação da fidelidade dos inacianos aos preceitos da ordem e aos conflitos com colonos que requisitavam os índios em trabalhos em suas fazendas. Além disso, a sujeição dos índios não significava sua conversão: “si espera V.P. que aya muchos de los brasiles convertidos engañase a sua esperança.” (ANCHIETA, 1560:249). O P. Antônio da Rocha, em 1569, queixava-se de “que de los Indios ninguna consolacion se recibe sino es Baptizar alguno in extremis” (ROCHA, 1569:161b). Assim continuava na década de 1580, pois o visitador Cristóvão de Gouveia era enviado ao Brasil principalmente “por consolacion delos nros que trabajan enla aqella viña tan esteril, laboriosa y peligrosa” (AQUAVIVA, 1582 – s/ paginação).

Os queixumes e desânimos dos jesuítas em relação aos trabalhos nos aldeamentos, contrastava com o entusiasmo com que eles enfrentavam as dificuldades encontradas nas entradas que faziam ao sertão para descimento de índios. Enquanto eram poucos os que, a partir da década de 1570, se entusiasmavam com o trabalho contínuo nas Aldeias, muitos eram os que se empolgavam diante da aventura de passar meses no meio do sertão, enfrentando fome, cansaço e perigos de morte em busca de índios para doutriná-los e descê-los para as aldeias do litoral. Na verdade, os jesuítas sempre ficavam entusiasmados diante de uma missão nova, que prometia grandes números de conversões, mas tão logo percebiam que os sucessos avistados eram enganadores, voltavam a queixar-se da inutilidade dos seus esforços. Assim foi nos primeiros anos com os Tupi do litoral da Baia e capitanias do sul. Saciados por dificuldades e frustrações com estes índios, passam a sonhar com os Carijó do Paraguai; verificado que a catequização destes apresentava os mesmos desafios encontrados com os índios do litoral brasileiro, passam a apostar seu entusiasmo, mais para o fim século, nos Potiguara encontrados nos caminhos das conquistas do Rio Grande do Norte e Maranhão. Tanto é assim que no final do século, o provincial P. Pero Rodrigues, solicitado pelo Geral a dar informações acerca da “disposição, esperanças que há da conversão do gentio deste Estado do Brasil” (RODRIGUES, Pero, 1597b:424), apresentou como argumentos para comprovar que estava “agora aberta amayor porta da conversão, que nunqua tivemos nestas partes” (Idem.) as entradas que os jesuítas faziam sertão adentro, nas diversas partes do Brasil, em busca de índios para descer e catequizar. De fato, enquanto as entradas, por mais difíceis que fossem, atraíam os missionários em razão da significação que para eles tinham, a expressão máxima do compromisso de anúncio do evangelho a todos os cantos do mundo, o trabalho nos aldeamentos era tedioso, cheio de conflitos com colonos e representava grandes perigos à vocação casta do jesuíta. Essas dificuldades nos aldeamentos fizeram com que se desenvolvesse no Brasil a certeza de que nem todos os jesuítas eram aptos a ser destinados para os aldeamentos e, com efeito, de Roma vinham reiteradamente orientações aos superiores do Brasil para que houvesse cautela no envio de missionários aos aldeamentos e que só se mandasse quem realmente fosse apto para esse trabalho.

As agruras da tarefa de conversão dos índios no Brasil, além de minar o entusiasmo inicial de muitos dos missionários que aqui desembarcavam, fez com que muitos jesuítas, passassem a investir suas pregações com o público português, que, aos olhos dos inacianos, também estava necessitado de ajuda espiritual para salvação de suas almas. Além disso, de Portugal vinham ordens para que eles se responsabilisassem pela formação dos filhos dos colonos. “Despues que conocimos la poca disposición en la tierra para entender con los gentiles, recogeron algunos obreros al Colegio y tuvieron más tiempo para entender con los christianos” (BLÁZQUEZ, 1558:436). E, de fato, os catálogos mostram que o percentual de jesuítas ocupados diretamente com atividades com índios gradativamente diminuía ao longo do século XVI. Em 1589, por exemplo, a província do Brasil contava com mais de 150 jesuítas; desses, em torno de 35 trabalhavam em tempo integral com índios e o mesmo tanto devia trabalhar com eles em tempo parcial. Dos outros, parte ainda estava em formação e o restante ocupava-se com outros ofícios. Em 1600, entre estudantes e formados, havia acima de 170 jesuítas no Brasil, dos quais em torno de 45 trabalhavam integralmente com índios. Dos demais, parte ocupava-se apenas temporariamente com índios ou ocupava-se com as atividades educativas e o atendimento ao público português."


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Fonte:
LUÍS KIST: "OS JESUÍTAS NO COMEÇO DO BRASIL, GUIADOS PELA FÉ E REGIDOS PELA COLÔNIA". (Dissertação para obtenção do título de mestre no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Orientador: Prof. Dr. Pedro Inácio Schmitz). São Leopoldo, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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