Machado de Assis: "Quincas Borba"

O Humanitismo do Darwinismo

Terminei hoje, pela segunda vez, a leitura do genial romance “Quincas Borba”, do nosso igualmente genial Machado de Assis.

Quem conhece Machado de Assis e já leu seu outro romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, não terá dificuldade em observar entre ambos muitas semelhanças. De algum modo, pode-se concluir que “Quincas Borba” é, sob outro ponto de vista, a continuação das “Memórias”. E o que liga um a outro é a personagem Joaquim Borba dos Santos, ou simplesmente, Quincas Borba, filósofo e fundador de um sistema por ele denominado “Humanitismo”.

O diálogo, a seguir, entre as personagens Brás Cubas e o filósofo Quincas Borba, extraído do
“Memórias Póstumas”, sintetiza toda a visão filosófica do Humanitismo e de seu grande dístico: “Ao vencedor, as batatas!” Vejamos:

O Humanitismo
Duas forças, porém, além de uma terceira, compeliam-se a tomar à vida agitada do costume: Sabina e Quincas Borba. Minha irmã encaminhou a candidatura conjugal de Nhá-loló de um modo verdadeiramente impetuoso. Quando dei por mim estava com a moça quase nos braços. Quanto ao Quincas Borba, expôs-me enfim o Humanitismo, sistema de filosofia destinado a arruinar todos os demais sistemas.
— Humanitas, dizia ele, o princípio das coisas, não é outro senão o mesmo homem repartido por todos os homens. Conta três fases Humanitas: a estática, anterior a toda a criação; a expansiva, começo das coisas; a dispersiva, aparecimento do homem; e contará mais uma, a contrativa absorção do homem e das coisas. A expansão, iniciando o universo, sugeriu a Humanitas o desejo de o gozar, e dai a dispersão, que não é mais do que a multiplicação personificada da substância original.
Como me não aparecesse assaz clara esta exposição, Quincas Borba desenvolveu-a de um modo profundo, fazendo notar as grandes linhas do sistema. Explicou-me que, por um lado, o Humanitismo ligava-se ao Bramanismo, a saber, na distribuição dos homens pelas diferentes partes do corpo de Humanitas; mas aquilo que na religião indiana tinha apenas uma estreita significação teológica e política, era no Humanitismo a grande lei do valor pessoal. Assim, descender do peito ou dos rins de Humanitas, isto é, ser um forte, não era o mesmo que descender dos cabelos ou da ponta do nariz. Dai a necessidade de cultivar e temperar o músculo. Hércules ou Herakles não foi senão um símbolo antecipado do Humanitismo. Neste ponto o Quincas Borba ponderou que o paganismo poderia ter chegado à verdade, se se não houvesse amesquinhado com a parte galante dos seus mitos.
Nada disso acontecerá com o Humanitismo. Nesta igreja nova não há aventuras fáceis, nem quedas, nem tristezas, nem alegrias pueris. O amor, por exemplo, é um sacerdócio, a reprodução um ritual. Como a vida é o maior benefício do universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte (o que é um delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma ocasião de galanteio, é a hora suprema da missa espiritual. Porquanto, verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.
— Imagina, por exemplo, que eu não tinha nascido, continuou o Quincas Borba; é positivo que não teria agora o prazer de conversar contigo, comer esta batata, ir ao teatro, e para tudo dizer numa só palavra: viver. Nota que não faço do homem um simples veículo de Humanitas; não, ele é ao mesmo tempo veículo, cocheiro e passageiro; ele é o próprio Humanitas reduzido; dai a necessidade de adorar-se a si próprio. Queres uma prova da superioridade do meu sistema? Contempla a inveja. Não há moralista grego ou turco, cristão ou muçulmano, que troveje contra o sentimento da inveja, O acordo é universal, desde os campos da Iduméia até o Alto da Tijuca. Ora bem; abre mão dos velhos preconceitos, esquece as retóricas rafadas, e estuda a inveja, esse sentimento tão sutil e tão nobre. Sendo cada homem uma redução de Humanitas, é claro que nenhum homem é fundamentalmente oposto a outro homem, quaisquer que sejam as aparências contrárias. Assim, por exemplo, o algoz que executa o condenado pode excitar o vão clamor dos poetas; mas substancialmente é Humanitas que corrige em Humanitas uma infração da lei de Humanitas. O mesmo direi do indivíduo que estripa a outro; é uma manifestação da força de Humanitas. Nada obsta (e há exemplos) que ele seja igualmente estripado. Se entendeste bem, facilmente compreenderás que a inveja não é senão uma admiração que luta, e sendo a luta a grande função do gênero humano, todos os sentimentos belicosos são os mais adequados à sua felicidade. Dai vem que a inveja é uma virtude.

Para que negá-lo? eu estava estupefato. A clareza da exposição, a lógica dos princípios, o rigor das consequências, tudo isso parecia superiormente grande, e foi-me preciso suspender a conversa por alguns minutos, enquanto digeria a filosofia nova. Quincas Borba mal podia encobrir a satisfação do triunfo. Tinha uma asa de frango no prato, e trincava-a com filosófica serenidade. Eu fiz-lhe ainda algumas objeções, mas tão frouxas, que ele não gastou muito tempo em destruí-las.
— Para entender bem o meu sistema, concluiu ele, importa não esquecer nunca o princípio universal, repartido e resumido em cada homem. Olha: a guerra, que parece uma calamidade, é uma operação conveniente, como se disséssemos o estalar dos dedos de Humanitas; a fome (e ele chupava filosoficamente a asa do frango), a fome é uma prova a que Humanitas submete a própria víscera. Mas eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema, senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou doze homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao meu apetite.

Entre o queijo e o café, demonstrou-me o Quincas Borba que o seu sistema era a destruição da dor. A dor, segundo o Humanitismo, é uma pura ilusão. Quando a criança é ameaçada por um pau, antes mesmo de ter sido espancada, fecha os olhos e treme; essa predisposição é que constitui a base da ilusão humana, herdada e transmitida. Não basta certamente a adoção do sistema para acabar logo com a dor, mas é indispensável; o resto é a natural evolução das coisas. Uma vez que o homem se compenetra bem de que ele é o próprio Humanitas, não tem mais do que remontar o pensamento à substância original para obstar qualquer sensação dolorosa. A evolução, porém, é tão profunda, que mal se lhe podem assinar alguns milhares de anos
” (Machado de Assis, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.


O mesmo assunto aparece também em “Quincas Borba”, no qual o próprio filósofo explana, desta vez à personagem Rubião, o funcionamento do seu Humanitismo:

— Bem, irás entendendo aos poucos a minha filosofia; no dia em que a houveres penetrado inteiramente, ah! nesse dia terás o maior prazer da vida, porque não há vinho que embriague como a verdade. Crê-me, o Humanitismo é o remate das coisas; e eu, que o formulei, sou o maior homem do mundo. Olha, vês como o meu bom Quincas Borba está olhando para mim? Não é ele, é Humanitas...
— Mas que Humanitas é esse?
— Humanitas é o principio. Há nas coisas todas certa substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível, — ou, para usar a linguagem do grande Camões:
Uma verdade que nas coisas anda,
Que mora no visíbil e invisíbil.
Pois essa sustância ou verdade, esse princípio indestrutível é que é Humanitas. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o homem. Vais entendendo?
— Pouco; mas, ainda assim, como é que a morte de sua avó...
— Não há morte. O encontro de ditas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o carácter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
— Mas a opinião do exterminado?
— Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias.
— Bem; a opinião da bolha...
— Bolha não tem opinião. Aparentemente, há nada mais contristador que uma dessas terríveis pestes que devastam um ponto do globo? E, todavia, esse suposto mal é um benefício, não só porque elimina os organismos fracos, incapazes de resistência, como porque dá lugar à observação, à descoberta da droga curativa. A higiene é filha de podridões seculares; devemo-la a milhões de corrompidos e infectos. Nada se perde, tudo é ganho. Repito. as bolhas ficam na água. Vês este livro? É Dom Quixote. Se eu destruir o meu exemplar, não elimino a obra, que continua eterna nos exemplares subsistentes e nas edições posteriores. Eterna e bela, belamente eterna, como este mundo divino e supradivino (Machado de Assis, “Quincas Borba”).

As definições acerca do que seria o “Humanitismo” na ficção machadiana são, no geral, consensuais quando o aponta como sendo uma paródia do positivismo, do determinismo e do darwinismo, doutrinas essas que obteveram elevado destaque quando Machado escreveu seus livros.

Sobre o romance “Quincas Borba”, especificamente em relação à personagem Rubião, escreveu o renomado crítico literário, Antônio Cândido”:
"No fim, pobre e louco, ele morre abandonado; mas em compensação, como queria a filosofia do Humanitismo, Palha e Sofia estão ricos e considerados, dentro da mais perfeita normalidade social. Os fracos e os puros foram sutilmente manipulados como coisas e em seguida são postos de lado pelo próprio mecanismo da narrativa, que os cospe de certo modo e se concentra nos triunfadores, acabando por deixar no leitor uma dúvida sarcástica e cheia de subentendidos: o nome do livro designa o filósofo ou o cachorro, o homem ou o animal, que condicionaram o destino de Rubião? Este começa como simples homem, chega na sua loucura a julgar-se imperador e acaba como um pobre bicho, fustigado pela fome e a chuva no mesmo nível que o seu cachorro” (Antônio Cândido de Mello e Souza: “Vários Escritos”. São paulo, 1970, p. 29).

Quem conhece um pouco o sistema filosófico que norteia a doutrina darwinista, também há de achar entre ele e o Humanitismo de Quincas Borba vários aspectos em comum. No romance “Quincas Borba”, Rubião foi explorado impiedosamente até à miséria, morrendo abandonado como um animal debilitado, que sucumbiu ante a força de outro “mais forte”. No Darwinismo sobrevive igualmente o “mais apto” (ou “mais forte”). E essa luta de vida e morte não se dá apenas na Natureza entre os bichos: ela também é vivenciada entre os homens.
Discorrendo, por exemplo, sobre Darwin, escreveram seu biógrafos Desmond e Moore:

“Na sociedade e na natureza, mendigos e brutos tinham de lutar e apenas os melhores sobreviviam. O rosto da natureza não estava mais sorrindo; ela olhava severamente para uma, arena de gladiadores, semeada pelos cadáveres dos perdedores.”
[...]
“Esta pressão populacional tornava-se uma “força semelhante a cem mil cunhas” cravadas entre os membros de uma espécie, forçando “brechas por meio da expulsão dos fracos” As variedades melhor adaptadas sobrevivem para procriar, expandindo-se às custas do resto, mudando lentamente a espécie inteira. A mesma ‘grande compressão de população” que sacudia os homens de sua indolência mantinha a vida em seu ápice de perfeição.”
[...]
"Na natureza de Darwin, os muitos caíam para que os poucos pudessem progredir. A morte adquiria um novo significado — e havia bastante dela por toda a parte: com o aumento no número de desempregados e desabrigados, os estatísticos médicos estavam compilando seus “livros-caixa da morte” (estatísticas de mortalidade) entre os moradores dos bairros pobres.”
”Os livros-caixa da natureza estavam sempre abertos; o Ceifeiro sentava-se, coberto de negro, com a pena para riscar nomes permanentemente a mão. O progresso não era tanto um hino à beneficência divina quanto um canto fúnebre que acompanhava a luta selvagem. Tanto a ciência darwiniana quanto a sociedade da Lei dos Pobres estavam agora reformadas de acordo com as linhas competitivas de Maithus” (p.282 – 283).
[...]
“Mas Darwin acreditava que a guerra colonial era necessária “para fazer os destruidores se diversificarem” e se adaptarem ao novo terreno. A destruição estava se tornando parte integrante de sua concepção malthusiana da humanidade: Quando duas raças de homens se encontram, elas agem precisamente como duas espécies de animais. — Elas lutam, comem-se uma à outra, trazem doenças uma para a outra etc,, mas, depois vem a luta mais mortal, a saber, a que faz a organização mais adequada, ou os instintos (isto é o intelecto no homem), ganhar o dia” (p. 285).
[...]
“Os “mais fortes estão sempre extirpando os mais fracos” e os britânicos estavam vencendo todos. A expansão imperial encerrou o isolamento das raças indígenas e impediu seu desenvolvimento por outros caminhos. À medida que os brancos se espalhavam a partir do Cabo, as tribos negras eram forçadas a se unir no interior, fundindo raças e pondo fim a seu isolamento criador de espécies.”
"Se isto não houvesse acontecido", especulou Darwin, “em dez mil anos o negro provavelmente teria se tomado uma espécie distinta”.
[...]
"Mas a pressão populacional de Darwin empurrava as espécies até seu limite de outras maneiras. A compressão era uma força criativa. O superpovoamento que enviava barcos cheios para as colônias implicava que apenas os animais com uma vantagem competitiva sobreviviam.”
“A iniciativa biológica de Darwin equiparava-se ao mais avançado pensamento social Whig. Era isto o que a fazia atraente. Por fim ele tinha um mecanismo que fosse compatível com os ideais de competição e livre comércio dos ultra-Whigs.” (Adrian Desmond & James Moore: “A Vida de um Evolucionista Atormentado: Darwin”. Geração Editorial. São Paulo, 1995).

Resumindo:
O darwinismo, pelo menos em seus moldes como fora inicialmente concebido, tinha como lema a “sobrevivência do mais forte”. No romance “Quincas Borba”, sobrevivem os interesses dos mais espertos, daqueles que souberam tirar proveito das fraquezas alheias, e que empreenderam todos seus esforços com o intuito de prevalecer igualmente como “os mais fortes” socialmente, sendo, portanto, aqueles que deveriam guiar a sociedade rumo à sua “máxima evolução” e “aperfeiçoamento moral”.

É isso!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!