Capitalismo e privatização de corpos e almas

“Seria injusto e errôneo descrever essas soluções modernistas para o desenvolvimento e redesenvolvimento urbano do pós-guerra como puros fracassos. Cidades arrasadas foram reconstruídas rapidamente e populações abrigadas em condições melhores do que no período entre-guerras. Dadas às condições tecnológicas e à dramática escassez de recursos da época, é difícil ver como isto poderia ter sido viabilizado, exceto por variantes do que de fato foi executado. E apesar de algumas soluções haverem se mostrado mais bem sucedidas do que outras (no sentido de produzir satisfação pública), a reconstituição do tecido urbano de modo a preservar o pleno emprego, melhorar os equipamentos sociais materiais, contribuiu para as metas de bem estar social, de modo geral facilitando a preservação de uma ordem social capitalista bastante ameaçada em 1945.

Uma época (anos 50) em que era moda louvar as virtudes de um estilo internacional e alardear sua capacidade de criação de uma nova espécie de ser humano visto como o braço expressivo de um aparelho estatal burocrático intervencionista, considerado, ao lado do capital corporativo, o guardião de todos os avanços do bem-estar humano. Algumas alegações ideológicas eram grandiosas, mas as transformações radicais nas paisagens sociais (e físicas) das cidades tinham pouca relação com elas. Na visão de Habermas (1983, 1989), puro uso ético da razão prática, objetivando a pacificação artificial generalizada mediante valores herdados do mundo social, de modo a continuar reproduzindo aquele mesmo mundo e suavizando as tensões decorrentes dos desejos de transformação – perpetuando assim as tradições e as certezas ingênuas do mundo social nativo.

A visão do filósofo alemão é de certa forma reforçada por Michel Foucault (1987) em Vigiar e Punir, numa releitura do conceito do panóptico de Jeremy Bentham (2000), referenciando-o aos controles disciplinares da sociedade. Sua interpretação corrobora a impressão de que tanto naqueles filósofos quanto no panorama do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley (1969, 11ª Edição), a sociedade da (auto?)imposição/sugestão em que vivemos restringe as individualidades, – seja através da coerção ostensiva, ou da condução sugestionada, – e assujeita ao mesmo tempo em que amolda indivíduos utilitários, em sua ação coletiva, ao que o próprio Foucault se refere como corpos úteis e dóceis, nome que deu a um dos capítulos da obra, numa proximidade cada vez maior à da organização sociabilizada dos chamados insetos-sociais (abelhas, formigas, cupins...) apontada por Huxley no ensaio posterior Regresso ao Admirável Mundo Novo (1959), por meio de uma “dominação internalizada e legitimação de uma identidade auto-imposta, padronizadora e não diferenciada”, que aponta Castells (1999ª:25), já anteriormente ressaltada, segundo ele, por teóricos como Sennett, e mesmo antes, por Horkheimer ou Marcuse.

“Hoje a arte de controlar os espíritos está em vias de se tornar uma ciência. Os praticantes desta ciência sabem o que estão fazendo e por quê. São guiados na sua obra por meio de hipóteses firmemente estabelecidas sobre uma grande massa de dados experimentalmente constatados” Aldous Huxley (1959)

Foucault identificou na tomada de poder sobre o indivíduo enquanto ser vivo, um dos fenômenos primordiais das sociedades industriais, que engendrou uma espécie de estatização do biológico, denominada pelo filósofo de “biopolíticas” (Foucault, 2000). O fenômeno se constituiria de um conjunto de políticas de planejamento, regulação e prevenção, com o fito de intervir nas condições de vida para modificá-las e lhes impor uma normatização, e teria sido apropriado sem exceção pelos Estados-Nação da era industrial. A este respeito, Paula Sibilia (2002:158) aponta que o processo teve lenta e inexorável progressão no decorrer de todo um século, tendo se consolidado na primeira metade do século XX, e que um grande motivador de seu surgimento teria sido a nova problematização da vida a partir da visão de Charles Darwin das engrenagens da natureza, que reconfigurou os fenômenos biológicos próprios da espécie humana na ordem do poder e do saber, atiçando as iniciativas tecnológicas no sentido de controlá-los e modificá-los. Daí teria nascido a idéia de população como problema político proposto à prática governamental (saúde, higiene, natalidade, raças, etc.), o que adquiriu uma enorme importância econômica e política, erigindo-se como um dos pilares da sociedade industrial.

Este conjunto de estratégias estatais teria vindo complementar a outra série de dispositivos voltados para a internalização da vigilância (Sibilia 2002:159) que apontavam para o disciplinamento dos corpos individuais, operados através das várias formas e instituições de cerceamento com suas técnicas de observação, exame e confissão (ordenamento urbano; instituições escolares, fabris, religiosas, médicas, prisionais...), operando através do esquadrinhamento do tempo, distribuição dos indivíduos no espaço e punições normatizantes, tendo como meta o direcionamento e a sincronização da força humana útil por meio do treinamento (adestramento) minuciosamente organizado, da docilização dos corpos, e da domesticação das almas.

A ação simultânea destes campos de forças da disciplina e das biopolíticas, o primeiro direcionado ao homem-corpo (com seu impulso individualizante), e o outro focalizando o homem-espécie (em sua potência massificante), como conjunto de técnicas orientadas para a dominação, teria se articulado num vetor destinado a massificar e expropriar as forças humanas com vistas à utilidade.

Sibilia aponta que Walter Benjamin (1989), nos relatos do flâneur que acompanhava pelas ruas de Paris de meados do século XIX, resgata o mal-estar e as rejeições populares suscitadas pela ampla rede de controle que tratava de amarrar a vida civil cada vez mais firmemente em suas malhas. E que ele relembra as tentativas até certo ponto violentas de domesticar a confusa organização urbana da época, para propiciar um ordenamento com vistas à sujeição e normalização dos habitantes, implantando políticas de higiene e planejamento urbano: a numeração das residências e a imposição da iluminação noturna que foram objeto de fortes movimentos de oposição popular, e que foram traduzidas em manifestações indignadas (Sibilia 2002:160) de escritores e intelectuais como Edgar Allan Poe e Robert Louis Stevenson. Os processos classificatórios da população e de fixação do indivíduo na massa impuseram-se, contudo, não sem que claros vestígios daquela rejeição se conservassem no tempo, manifestados nesta queixa resgatada por Sibilia (2002:161) do livro de Benjamin:

“Pobres mulheres da França! Vós bem que gostaríeis de permanecer desconhecidas, para ficar tecendo o vosso pequeno romance de amor. Mas como quereis fazer isso numa civilização que manda registrar nas praças públicas a chegada e a saída das carruagens, que conta as cartas e as sela uma vez no despacho e outra vez na entrega, que apõe números às casas e que logo [...] terá o país todo cadastrado até o seu menor detalhe.” Honoré de Balzac

A apropriação das biopolíticas teria começado a se consolidar algum tempo depois de seu surgimento histórico, e com retardo em relação aos dispositivos disciplinadores, devido à complexidade de sua operacionalização no aparato estatal. Suas estratégias, entretanto, teriam logrado se incrustar (curioso e bemapanhado termo cunhado por Sibilia para o processo) na população, graças aos efeitos de disciplinamento operado nos corpos individuais que os antecederam.

Foucault (2000) também apontou como finalidade das biopolíticas a organização totalizante da vida: cultivá-la, protegê-la, garanti-la, multiplicá-la, regulá-la, controlar e compensar suas contingências, enquadrar suas possibilidades biológicas enquadrando-as em formatos definidos como normais que ganharam viabilidade na Modernidade graças à evolução dos conhecimentos de natureza científica baseados na observação e exame (medir, avaliar, classificar, hierarquizar) e ao processamento centralizado dessa informação, apropriado pelo Estado-Controlador (com a estatística e a demografia), que teriam viabilizado induzir e administrar os processos inerentes às populações vivas: natalidade, mortalidade, morbidade, lactância, epidemias, endemias, envelhecimento, incapacidades físicas e efeitos do meio ambiente, a partir dos dados meticulosamente coletados junto aos cidadãos, intervindo com um processo racionalizado no substrato biológico das populações através de leis, regulamentações sanitárias, planejamento reprodutivo, campanhas de aprendizado em saúde pública, propagação de hábitos e costumes ligados à higiene e prevenção de doenças, objetivando dominar a aleatoriedade inerente a toda a população de seres vivos.

Este poder de esquadrinhar e gerir vidas consolidado nas mãos do Estado-ação foi sistematizado por Foucault sob a denominação de biopoder. Ele também apontou que este poder teria sido fundamental para o desenvolvimento do capitalismo em seu objetivo de produzir e direcionar forças sob seu estrito controle, fazê-las crescer, ordená-las e canalizá-las, ao invés de barrá-las. Em suma, de proceder a uma verdadeira ortopedia social, potencializar as forças vitais sem com isso torná-las menos fáceis de serem sujeitadas e convertidas em meros recursos úteis aos interesses do capitalismo industrial: uma formatação de corpos e almas visando a produtividade. Já Sibilia (2002:164) ressalta que estas estratégias teriam culminado com a construção da figura sociopolítica e econômica do trabalhador, que antecedeu ao nascimento a fórceps do operário, este o protagonista do grande drama da sociedade industrial, que segundo se pode depreender da análise de Foucault (1996) nunca constituiu a essência natural do homem. Teria sido, sim, forjada a suor e sangue na re-estruturação de corpos e almas numa complicada operação de vertentes bipolares sucessivas: disciplinadoras e biopolíticas.

Prosseguindo na trajetória que percorre, Sibilia menciona a obra Regras para o parque humano com que Peter Sloterdijk (2000) brinca com conceitos ideados por Platão em seu clássico O Político, desde o título. Naquele clássico, o filósofo grego apresenta a arte da política como não mais do que: cuidar voluntariamente de rebanhos de seres vivos que demandam voluntariamente dos cuidados oferecidos. Sloterdijk, segundo a autora, teria estabelecido um contraponto, numa leitura que reinterpreta a atividade da política como “arte de pastorear homens” (in Sibilia 2002:164/5), fazendo alusão a regras para administrar rebanhos humanos, conceito que deu origem ao nome do livro, numa explícita sugestão à domesticação/adestramento de animais em jardins zoológicos ou circos. Sibilia entende que, do ponto de vista político, o questionamento seria traduzido como: em que divergem fundamentalmente uma população de homens e um conjunto de animais domésticos? Até que ponto uma distinção qualitativa essencial, e não meramente de cifras? lembrando a extrema proximidade numérica da informação dos códigos genéticos da espécie humana, e, por exemplo, as dos chipanzés, 98,4% idênticas, confirmada recentemente pela biologia molecular.

Mesmo sem recorrer às verdades digitais que hoje fluem das equações da vida, a provocação lançada por Sloterdijk, segundo a autora, ecoou com força nos debates intelectuais ligados à nova tecnociência, cujas propostas de extrapolação de limites prenunciam um futuro biopoliticamente assustador, ameaçando atualizar conceitos tão caros à tradição ocidental, como: rebanhos, pastores, pessoas voluntariamente dóceis...

Segundo a autora (Sibilia 2002:167), apesar de ter se debruçado na análise detalhada dos mecanismos disciplinadores e das biopolíticas nas sociedades industriais, e de ter percebido uma certa crise das disciplinas que mencionou em seu Em defesa da sociedade, Foucault não viveu para conhecer as mudanças acontecidas em anos mais recentes, mutações que teriam motivado Gilles Deleuze (1992) a elaborar um Post-Scriptum sobre as sociedades de controle à maneira de um apêndice a uma genealogia do poder tão sagazmente arquitetada e respeitada, dando conta do adensamento de suas malhas em um processo de sofisticação e intensificação dos dispositivos das sociedades industriais, agora reforçadas pelas inovações tecnocientíficas, passando a uma cobertura totalizante das ações de todo o espectro social, sem deixar praticamente nada fora deste controle, sobretudo aos vinculados aos campos da teleinformática e biotecnologia.

No novo capitalismo pós-produção industrial, ancorado no consumo, no marketing e nos fluxos financeiros, os mecanismos de saber-poder entrelaçamse intimamente com os dispositivos de prazer e entretenimento, ganhando eficácia e legitimidade sociopolítica; e chancelam o declínio do poder centralizador dos Estados-Nação decorrentes da globalização, da virtualização, e da privatização, aprofundando a crise generalizada das velhas instituições. Ao mesmo tempo sinalizam o modelo empresarial onipresente das corporações transnacionais que cumprem hoje um papel fundamental na construção biopolítica de corpos e almas mediante a linguagem flexível, porém efetiva; e dispersa, [1] mas onipresente, do mercado. Linguagem de encantamento que produz e reproduz sujeitos-consumidores inebriados e entorpecidos pelas alegrias e alegorias do marketing e pelo fetichismo da mercadoria diagnosticada mais de um século antes por Marx.

Sibilia (2002:169) observa que a produção biopolítica é um fenômeno em processo, e que precisa “beber constantemente nas fontes dos novos saberes e desenvolvimentos tecnológicos para efetuar seu incessante ajustamento nas lutas inerentes às redes de poder, conquistando novos espaços vitais e por vezes negociando e transigindo com eventuais resistências” Arremata que na supremacia que o mercado assume sobre os fluxos vitais, a nova vertente de biopoder falseia sua onipotência abrindo e fechando simultaneamente fendas por onde se daria a fuga de possíveis forças vitais, e se recompõe através delas mesmas. Uma dinâmica de reequilíbrio, reestruturação e reconfigurações permanentes tipicamente normalizadora, que mostra uma capacidade do capitalismo do século XXI de encampar e reciclar resistências em forças vitais e realizar continuamente o seu afã de convertê-las em frases de efeito e slogans publicitários e de vendê-las repaginadas no mercado. E conclui (2002:169):

“Os novos dispositivos de poder aparecem de maneiras cada vez mais sutis e menos evidentes, mas parecem ter conquistado em sua transparência uma eficácia inaudita: viabilizaram o exercício de um controle total mesmo ao ar livre, que desconhece fronteiras e atravessa todos os espaços e todos os tempos, engolindo o fora”.


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Fonte:
Alberto Rabin: "EM BUSCA DO ELO PERDIDO: VIRTUAIS COMUNIDADES". (Comunicação, web, transformações identitárias, corpo, corporalidade e sociedade de consumo Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – PPGCOM/UFPE, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Paulo Carneiro da Cunha Filho). Recife – PE, 2007.

Nota
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A imagem inserida no texto não se inclui na referida teses.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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