Contestações às teses de Gilberto Freyre

Contestações das teses Freyrianas no Brasil

"Os estudos sobre a escravidão no Brasil, produzidos subseqüentemente rebateriam com veemência os pressupostos da obra de Gilberto Freyre. A pesquisa historiográfica se preocuparia em desvendar o caráter violento da instituição escravista, enquanto as pesquisas de cunho sociológico buscariam apreender a permanência da intolerância racial e da discriminação no Brasil. Essa tentativa de demonstrar que a perspectiva de Freyre era colonizadora e elitista e que sua visão culturalista era interclassista, reacionária e harmonizadora das contradições e tensões sociais nasceu principalmente no seio da escola sociológica da USP, em torno de autores como Florestan Fernandes. Segundo José Carlos Reis, a obra de Florestan Fernandes e de seus seguidores pretendeu romper com as construções idealizadas de um passado agrário-escravista-exportador e reinterpretar a história do país sob a luz dos problemas brasileiros contemporâneos, fugindo da suavização e da mitificação no estudo das relações socia is que conformavam a realidade nacional. Era necessário, para Florestan e seus colegas, identificar e formular os grandes problemas brasileiros, conhecer suas causas e repercussões sociais, assim como as razões dos fracassos nas tentativas de conter esses mesmos problemas. Nesse metier os pensadores marxistas se oporiam tenazmente à tese de Freyre.A idéia de um escravismo pautado na suavidade era um mito cruel e pernicioso e deveria ser destruído pois representava uma tentativa de aniquilar as presenças do negro e do indígena na história.

A escola sociológica marxista de São Paulo (USP), formada por sociólogos e historiadores tais como Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e Emília Viotti da Costa vai representar um lócus de contraposição à tese da democracia racial e do caráter benigno ou brando da escravidão. Esses e outros cientistas abriram uma nova vertente de estudos buscando constatar a violência na escravidão e analisaram o Brasil utilizando conceitos de “classe social” e “luta de classes”. De acordo com seus estudos, o sistema escravocrata estava longe de ser benévolo, e o escravo longe de ser submisso, pois o escravismo,

“assentava-se na exploração e recorria à violência para se manter. Vivia, portanto, em um círculo vic ioso: a violência gerava a rebeldia do escravo, punida com mais violência. As punições, por sua vez, conduziam a maior rebeldia.”

Supervalorizando determinados aspectos da obra de Gilberto Freyre, os paulistas realizaram críticas às proposições do intelectual pernambucano. Recorreram à idéia jurídica do instrumentum vocale segundo a qual o escravo era coisa, era propriedade, deixando de ser coisa quando resistia (matava, fugia...), pois passava a responder por seus atos. A resistência se daria, então, quando ocorresse o rompimento com a ordem estabelecida. Tais estudiosos acabaram por propor uma concepção de escravidão que gerou um novo mito: a coisificação do escravo.

O mito da coisificação do escravo partia de uma definição legal da condição do escravo “reduzido à condição de cousa, sujeito ao poder e domínio ou propriedade de outro, é havido por morto, privado de todos os direitos e não tem representação alguma”.

Essa visão legalista, baseada no direito positivo foi apresentada por Perdigão Malheiro em 1860, num estudo, de caráter abolicionista que atacava a escravidão e a violência nela presente. Segundo Malheiro, a escravidão impedia a marcha normal do país rumo ao progresso e à civilização. Muitos estudiosos associaram à coisificação legal uma reificação subjetiva do escravo. Segundo eles, além de ser considerado como peça, instrumento ou coisa pelo senhor, o escravo se “auto-representava como ser incapaz de ação autonômica”.

Segundo Caio Prado Junior,

“se o negro traz algo de positivo isso anulou-se, deturpou-se em quase tudo. (...) o trabalho cativo não lhe acrescentará elementos morais; pelo contrário, degradá- lo-á, eliminando nele até mesmo o conteúdo cultural que porventura tivesse trazido de seu estado primitivo.”

Para esse autor, o escravo foi vítima de profunda deformação do caráter e da cultura e as implicações dessa deformação o acompanharam em sua história subseqüente. A imagem elaborada, ao enfatizar a dissolução moral do escravo e, por extensão, a dissolução moral de toda a sociedade brasileira, atendia a uma opção política, pois condenava o legado sócio-econômico do sistema colonial português, que, de acordo com esses pensadores, Gilberto Freyre terminava por defender. Esses autores iriam insistir na idéia do Escravocoisa. Na reificação há a instauração de uma nova “significação operante”, a captação de uma categoria de homens por uma outra categoria como assimilável em todos os sentidos práticos, a animais ou a coisas. O escravo é metaforizado como animal. A legítima preocupação em desvendar o caráter violento da escravidão terminou por forjar um outro equívoco: a idéia de que o escravo era incapaz de autonomia na ação e estava sujeito a determinações exteriores.

Preocupados em demonstrar a coisificação objetiva e subjetiva do escravo, concluíram que os escravos apenas espelhavam passivamente os significados sociais impostos pelos senhores. Essa elaboração mental, ao traçar um quadro da violência generalizada em relação aos negros terminou por convertê-los em seres “anômicos, perdidos uns para os outros, desprovido de laços de interdependência, de responsabilidade e de solidariedade entre si,”16 em suma, sem vontade política.

Empreender estudos sobre a escravidão e sobre a violência nela contida tendo como balizamento essencial a teoria do escravo -coisa levou muitos historiadores a construírem uma visão dos negros como seres incapazes de formulação de idéias autônomas e receptores passivos dos valores e normas senhoriais. Criava-se um mito tão forte e pernicioso quanto o anterior, a imagem mítica de uma sociedade democrática e harmônica.

As contribuições da Escola Sociológica de São Paulo, se por um lado trouxeram à baila a discussão da existência de uma sociedade idílica, que camuflava, no limite, a violência da instituição esc ravista e as lutas de classes, por outro lado gerou alguns equívocos pela imposição de conceitos, modelos e leis pré-estabelecidas para o estudo da escravidão.

Eduardo Paiva afirma, em sua obra Escravos e Libertos nas Minas Gerais do século XVIII que,

“a revisão historiográfica empreendida negava a análise patriarcalista e idílica e passava a enfocar a violência da relação senhor/escravo.Com isso entendeu o cativo mais como objeto dessas relações e menos como agente histórico, limitando a resistência à fuga, à rebelião e à violência.”

O autor lembra que a concepção de escravo enquanto coisa está somente na legislação, no discurso oficial e não nas práticas cotidianas; a reificação não existiu no dia-a-dia. A insistência na abordagem da violência e da coisificação do escravo contribuiu para a manutenção do que o autor denomina “imaginário do tronco”.

Diante da corrente historiográfica que enxergava o escravo como coisa, numa postura subserviente e anômica, outros historiadores propuseram um escravo rebelde – o cativo cujos atos seriam provenientes do seu inconformismo com a sua condição de coisa e se materializariam em gestos de desespero e revolta. Nas palavras de Gorender “o primeiro ato humano do escravo é o crime, desde o atentado contra seu senhor à fuga do cativeiro”.

A obra de Gorender (1978) rebateu as teses de Tannenbaum e Freyre e retomou o tema do tratamento dispensado aos escravos. Nessa mesma época se desdobraram os estudos na redescoberta das formas de resistência escrava. Começaram a avolumar-se os estudos das formas violentas de resistência, principalmente as mais explícitas como fugas, suicídios, rebeliões, formação de quilombos, homicídios.

Contrapondo-se à tese da suavidade do escravismo brasileiro, as obras desses historiadores e cientistas sociais, ao enfatizarem o caráter violento da instituição no Brasil, criaram outros estereótipos como o do escravo coisificado, subjugado ou o do escravo rebelado (fugitivo, aquilombado ou que cometera homicídio ou suicídio). A única saída para os escravos resgatarem sua humanidade estaria na “resistência aberta”, ou seja, a rebeldia. Para Fernando Henrique Cardoso, restava aos cativos “apenas a negação subjetiva da condição de coisa, que se exprimia através de gestos de desespero e revolta.”

O maior problema advindo dessa avaliação da ação do escravo, repousa, a nosso ver, no engessamento das manifestações e práticas sociais e culturais da população cativa. As ações que demonstram mobilidades espaciais e até sociais, resistências, enfrentamentos e acomodações são entendidas ora como exceção ora como beneplácito do senhor, diminuindo o valor dos espaços conquistados pelos escravos em sua diversidade e importância.

Alguns anos mais tarde, autores, como Sílvia H. Lara, criticaram essa limitação na interpretação da ação do escravo:

“Assim, quando hoje se fala na escravidão no Brasil, a primeira imagem que vem à cabeça é a de um homem negro, com o corpo marcado de chicotadas, acorrentado ou preso a um tronco, submetido a uma exploração sem limites por parte de senhores brancos, cruéis e desumanos: é a imagem do escravo coisificado, totalmente subjugado ao poder implacável do senhor, incapaz de qualquer ação autônoma a não ser deixar de ser escravo, suicidando-se ou fugindo para os quilombos. Por sinal, a outra imagem, também muito freqüente, é a do homem negro, de olhar altivo e severo, líder de muitos escravos fugitivos, que se reuniram e enfrentaram seus senhores durante décadas e décadas...”

Na mesma perspectiva de crítica feita por Sílvia Lara se situa a argumentação de Sidney Chalhoub. As análises da violência inerentes ao sistema e às condições duras do cativeiro fundamentariam o que o autor denomina de “teoria do escravo-coisa”, ou seja,

“a idéia de que as condições desfavoráveis no cativeiro teriam desprovido os escravos da capacidade de pensar o mundo a partir de categorias e significados sociais que não aqueles instituídos pelos próprios senhores. Ocorreria, então, uma ‘coisificação social’ dos negros sob a escravidão.”

Tal teoria, limitando os conceitos de resistência e de liberdade, apenas via ação autônoma quando o cativo ameaçava ou rompia violentamente o status quo. Apesar da crítica, Chalhoub lembra que

“É importante entender que todas essas afirmações, pinçadas de estudiosos célebres como Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso e Jacob Gorender, tinham um intuito de denunciar os horrores da escravidão em nosso país, desmascarando assim o mito da bondade dos senhores de escravos nestas terras.”

O próprio Gorender, em sua obra A escravidão reabilitada, analisando as últimas tendências e as novas orientações metodológicas no estudo da escravidão no Brasil, produzidas nas últimas décadas pelas universidades brasileiras, apesar de não concordar com os novos paradigmas acerca da escravidão no Brasil, reviu algumas posições, entre elas reconhecendo o exagero da escola paulista ao superestimar o processo de coisificação social que a instituição escravista impunha aos escravos. É importante lembrar que, na década de 70, os estudos sobre a escravidão dedicaram mais espaço à rebeldia, estudos na sua grande maioria de inspiração marxista.

Nessas concepções historiográficas, esboçadas acima, os estudiosos colocavam os escravos em extremidades opostas. À imagem mítica da sociedade democrática e harmônica foi sobreposta uma outra, a de uma sociedade estratificadora e violenta, propiciadora da existência do escravo-coisa ou do escravo rebelde, cujas manifestações de coragem e luta seriam um marco de não resignação. Essa talvez tenha sido uma construção relacionada com uma necessidade profunda de desvincular do atual cidadão social e politicamente ativo a imagem do antepassado escravo passivo. Mas é também uma interpretação limitadora, pois nela a resistência só se dá quando ocorre o rompimento com a ordem estabelecida, não se consideram os inúmeros acordos, as formas de co-existência, formas de resistências estratégicas construídas no cotidiano. A idéia do escravo rebelde como única forma de resistência, portanto, não explica todas as relações uma vez que resistência é algo mais amplo, construído no dia-a-dia.”


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Fonte:
Jonice dos Reis Procópio Morelli: "ESCRAVOS E CRIMES - FRAGMENTOS DO COTIDIANO - MONTES CLAROS DE FORMIGAS NO SÉCULO XIX". (Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção de título de Mestre em História. Orientador: Profº Dr.Douglas Cole Libby Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Minas Gerais). Belo Horizonte, 2002.

Nota
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O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

Um comentário:

  1. ADOREI!! a INTELIGENCIA E A ESPERANÇA SÃO PRE REQUISITOS PRA ESTE NOVO MUNDO!!
    CLESIA

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