Espaço e Símbolo

"Em obra sobre a natureza das formas simbólicas, Ernst Cassirer (Cassirer, 2001) mobiliza um arsenal filosófico kantiano para argumentar que as formas que estruturariam os dados sensíveis e objetivos seriam produções espirituais, organizadas a partir de sistema relacional que não está dado de forma natural no mundo. Nesta chave, haveria uma evidente função simbólica humana, expressa de forma mais clara na linguagem. Para Cassirer, a linguagem não seria apenas expressão do sensível, ou uma mera tradução direta do real, mas uma forma que escaparia das determinações e seria capaz de produzir generalizações. Nos termos do autor, haveria uma dupla natureza das formas simbólicas. Ele explica,

Em cada “signo” lingüístico, em cada “imagem” mítica ou artística comparece um conteúdo espiritual, que, em si, transcende o sensorial, convertido à forma do sensível, audível, visível ou tangível. Surge um modo de configuração autônomo, uma atividade específica da consciência, que se distingue de todo dado da sensação ou percepção imediatas, e que no entanto se utiliza deste mesmo dado como veículo e meio de expressão. Com isso, o simbolismo “natural”, que, como vimos, se encontra estabelecido no caráter fundamental da consciência é utilizado e conservado, por um lado, enquanto por outro é superado e depurado (Cassirer, 2001, p.62-63).

O potencial revelador das palavras (e não meramente reprodutor) foi levado a outros patamares pela tradição hermenêutica. Ricoeur, brevemente analisado em seção anterior, é um dos representantes dessa tradição, que dá grande destaque ao problema da interpretação do texto. No registro hermenêutico, a escritura só pode ser decifrada se a distância entre a produção original da mesma e suas posteriores leituras for situada como uma mediação central, que estrutura as próprias possibilidades abertas pela obra em questão. Isso permitiria a aceitação de uma autonomia semântica do texto, já que este não poderia ser aprisionado dentro dos limites da intenção original do autor e da situação a partir do qual ele é produzido. Nos termos de Ricoeur, “Graças à escrita, o homem e só o homem tem um mundo, e não apenas uma situação” (Ricoeur, 1987, p.47). Note-se que o autor refere-se a “um mundo”, e não “ao mundo”, enfatizando com isso o potencial imaginativo presente na tarefa da interpretação hermenêutica. Com esse procedimento, ele reforça o potencial criador da leitura, não por esta se apoiar num texto hipostasiado, mas pelo fato de que o próprio texto cria um mundo que não é limitado às fronteiras da situação empírica específica que lhe serve de suporte original. Ou seja, o que em Cassirer parecia ser decorrência da função simbólica do espírito humano, em Ricoeur transforma-se em produto de um diálogo inevitável entre texto e leitura, a partir do qual esta desvenda horizontes de experiência que transcenderiam o espaço mental do autor. Para os propósitos desta tese, ambos ajudam a caracterizar, de forma genérica, a função simbólica da categoria terra. Afinal, nos termos de Ricoeur,

O sentido de um texto não está por detrás do texto, mas à sua frente. Não é algo de oculto, mas algo de descoberto. O que importa compreender não é a situação inicial do discurso, mas o que aponta para um mundo possível, graças à referência não ostensiva do texto. Compreensão tem menos do que nunca a ver com o autor e a sua situação. Procura apreender as posições de mundo descortinadas pela referência do texto. Compreender um texto é seguir o seu movimento do sentido para referência: do que ele diz para aquilo de que fala (Ricoeur, 1987, p.99).

Mas como pensar a relação entre simbolismo e espaço, tema mais geral desta tese? Michel Foucault (Foucault, 2001) fornece pistas interessantes para o desenvolvimento dessa discussão. Em uma conferência proferida em 1967, ele sugeriu que a grande mania do século XIX seria a História, como se a humanidade pudesse ser pensada como uma seta percorrendo um sentido preciso. Não à toa, acrescento, aquele século foi o parteiro de todos os tipos de evolucionismo, desde a antropologia vitoriana inglesa até o darwinismo social, passando pela grande idéia força do marxismo. Essa prioridade dada à categoria tempo implicava também uma consagração do modelo civilizatório europeu. Nesta perspectiva, o tempo seria preenchido por uma lógica homogênea, e seria irredutível ao particular.

Contudo, o espaço resistiu e resiste como categoria de interpretação. Hoje parece por demais evidente que os lugares não se rendem à lógica uniformizadora que os confiantes homens dos Oitocentos acreditavam ser inexorável. O predomínio das políticas da “diferença”, a rotinização do relativismo cultural e a propagação de teorias que ressaltam as singularidades são atestados da persistência do tema do “local”. Ainda na mesma conferência, Foucault observa que o século XX seria marcado pela lógica do espaço. Segundo ele,

Estamos em um momento em que o mundo se experimenta, acredito, menos como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa pontos e que entrecruza sua trama. Talvez se pudesse dizer que certos conflitos ideológicos que animam as polêmicas de hoje se desencadeiam entre os piedosos descendentes do tempo e os habitantes encarniçados do espaço (Foucault, 2001, p.411).

Continuando seu argumento, Foucault afirma que utopias e heterotopias se combinariam na caracterização dos espaços. Enquanto as primeiras se refeririam a posicionamentos sem lugares reais, como projeções inexistentes no cotidiano, estas se encarnariam em lugares concretos, combinando desejos sociais ainda não realizados e objetos físicos disponíveis. Ou seja, um parque público, concebido sob a égide do Estado, pode combinar referências conhecidas, refletindo o repertório de imagens à disposição de uma dada sociedade, e mesclá-las com projeções utópicas sobre o modelo de uma boa sociedade, concebida idealmente por engenheiros e arquitetos. O espelho seria a metáfora perfeita para ilustrar as heterotopias. Ao mesmo tempo em que ele refletiria algo real, esse reflexo se projetaria num espaço existente apenas como virtualidade.

Note-se que o próprio pensamento geográfico incorporou uma percepção simbólica do tema do espaço, especialmente através do conceito de paisagem. Em artigo sobre o tema, Vera Melo (Melo, 2001) argumenta que a década de 1970 teria marcado a retomada dos estudos mais propriamente culturais sobre a paisagem, em especial através de abordagens oriundas da fenomenologia. Desde então, leituras hermenêuticas e atentas ao caráter discursivo do fenômeno proliferaram, assim como estudos influenciados pelo marxismo inglês alimentado por Raymond Williams. Essas interpretações, de um modo geral, voltavam-se para a dimensão simbólica da paisagem e para sua produção social, passível de ser explicada como uma espécie de código animado por livros, pinturas, fotos e demais sinais expressivos humanos. É a esse aspecto que Edvânia Gomes (Gomes, 2001) se refere, ao dizer que “A paisagem é denotada pela morfologia e conotada pelo conteúdo e processo de captura e representação (...) A paisagem só existe a partir do indivíduo que a organiza, combina e promove arranjos do conteúdo e forma dos elementos e processos, num jogo de mosaicos” (Gomes, 2001, p.30).

Mas é na obra de um historiador que essa abordagem simbólica ganha alcance explicativo e mesmo teórico. Em trabalho sobre as relações entre paisagem e memória, o historiador Simon Schama (Schama, 1996) mostra como a natureza sempre teria sido moldada culturalmente. Na contramão de uma ingênua reflexão ecológica que vê o natural como uma entidade primitiva, supostamente autêntica, que teria sido poluída pelos artefatos mobilizados pelos homens, Schama argumenta que a natureza estaria relacionada de forma inescapável à cultura. Afinal, “(...) é nossa percepção transformadora que estabelece a diferença entre matéria bruta e paisagem” (Schama, 1996, p.23).

Ao longo de seu livro, o autor mobiliza diversos registros históricos para mostrar como a paisagem já é produção intelectual humana, que reúne os referentes vislumbrados no cenário natural e organiza-os em imagens poderosas e metafóricas, que ganham vida e escapam à mera descrição do existente. Nas suas palavras,

Paisagem é cultura antes de ser natureza; um construto da imaginação projetado sobre mata, água, rocha. No entanto, cabe também reconhecer que, quando uma determinada idéia de paisagem, um mito, uma visão, se forma num lugar concreto, ela mistura categorias, torna-as metáforas mais reais que seus referentes, torna-se de fato parte do cenário (Schama, 1996, p.70).

Pode-se extrair dessas discussões duas idéias sugestivas para pensar o tema desta tese: o espaço como metáfora, construção intelectual, e o espaço como agente potencializado, força viva a moldar a vida humana. Este segundo sentido, que tanta importância terá na obra de um dos mestres da nossa imaginação espacial, Euclides da Cunha, é evidenciado por Schama na seguinte passagem, dedicada a personagens que se notabilizaram pela produção de paisagens:

Ao escrever sobre o mundo gelado da Antártica, o escaldante sertão australiano, a transformação ecológica da Nova Inglaterra ou as guerras pela água no Oeste americano, autores como Stephen Pyne, William Cronom e Donald Worster realizaram a proeza de transformar uma topografia inanimada em agentes históricos com vida própria. Devolvendo à terra e ao clima o tipo de imprevisibilidade criativa convencionalmente reservada aos atores humanos, esses escritores criaram histórias nas quais o homem não é tudo. (Schama, 1996, p.23).

Tais formulações encontram eco num dos clássicos da teoria sociológica. Nos seus escritos sobre o significado sociológico do espaço, Georg Simmel (Simmel, 1997) argumenta que este é categoria da imaginação, projetada como forma destinada a dar sentido às experiências sociais de interação. Fiel a sua sociologia das formas, Simmel sugere que o que importa para a análise social não é o espaço físico, mas a espacialização de processos sociológicos. Nesse registro, o espaço é pensado por analogia à obra de arte, como uma atividade humana que, através do fechamento e da ruptura introduzida entre o objeto e o mundo exterior, produz uma forma definida10. Ao traçar este paralelo entre os limites de uma obra de arte e as fronteiras de um espaço, ele afirma que “The boundary is not a spatial fact with sociological consequences, but a sociological fact that forms itself spatially” (Simmel, 1997, p.143).

Das formulações acima, retiro as seguintes sugestões: o espaço é cenário físico, por certo, geografia povoada de referentes. Mas é também metáfora ou imagem capaz de dar sentido às experiências sociais. Ou seja, mesmo quando diretamente referenciada numa realidade física imediata, uma imagem pode extrapolar essa dimensão e operar como uma idéia que encarne temas e problemas mais amplos. Não se trata, portanto, de postular apenas a dimensão cultural e simbólica envolvida na apreensão da paisagem ou do espaço (passo imprescindível para o encaminhamento do problema), mas de sustentar que esse simbolismo pode mesmo servir não só à representação de um lugar, mas a uma discussão teórica na qual o espaço se associe a certas qualidades ou propriedades de fenômenos de outra ordem.”

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Fonte:
JOÃO MARCELO EHLERT MAIA A “RÚSSIA AMERICANA”: A TERRA NO PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO". RIO DE JANEIRO – IUPERJ – 2006.

Nota
:
A imagem inserida (extraída da Revista Moderna, 1912) no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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