Heresias Medievais

"O conceito de heresia vem do grego airésis, que significa escolha, entendido como o ato ou objeto da própria escolha. No Cristianismo medieval, herege era aquele que apelava para a mesma ortodoxia, mas que a interpretava de modo diferente, pretendendo restaurar a mensagem divina original. Por este motivo, os ortodoxos foram freqüentemente acusados de heresia.

As primeiras heresias do Ocidente Medieval apareceram nas décadas iniciais do século XI em diversas regiões da França, especialmente em Tours, Orleans, Aquitânia e norte da Itália. A grande revolução deste período estava no pensamento, com o renascimento da dialética a partir da lógica de Aristóteles, que trouxe preocupações à Igreja, diante da ameaça do racionalismo, tido como inimigo da Fé e da autoridade pontifícia. Assim, o que até então era absoluto passou a ser contestado e discutível. A dissolução moral da Igreja era o alvo preferencial para as críticas e a causa do afastamento de muitos da ortodoxia. Buscando uma comunicação direta com Deus, as heresias rejeitavam racionalmente, com um lastro filosófico e teológico, os sacramentos da eucaristia e do batismo e o poder dos bispos de conferir as ordens sacras.

Berengário de Tours foi o primeiro a manifestar-se contrariamente à ortodoxia, pois relegava a hóstia consagrada a simples “pão bento”. Na sua opinião, era o “Corpo de Deus” somente por uma questão de convenção, tendo sua doutrina considerada herética nos Concílios de Vercelli (1051), de Paris (1051) e de Tours (1054).

Outro movimento considerado herético foi o dos paulicianos, seita gnóstico-maniquéia surgida ao final do século IX, na Armênia. Não aceitavam nenhum dos sacramentos e chegaram a formar um estado independente, na Anatólia. Uma vez desbaratados, uniram-se no século seguinte aos bogomilos, na Bulgária. Antecessor dos albigenses, este grupo conseguiu grande repercussão entre os camponeses e os pequenos artesãos. Seus adeptos acreditavam que, pelo espírito, o homem poderia subir até a divindade original, desde que se destacasse no mundo material. Veneravam o sol, para eles o princípio do Logos ou Verbo Sagrado, do qual Cristo era o enviado. Rejeitavam a cruz, considerada símbolo de suplício, e a substituíam por outra, inscrita em um círculo com a luz solar. Desaconselhavam o casamento e absolviam-se uns aos outros, adotando uma atitude de resistência passiva aos poderes locais, embora tenham sido alvo de quatro Cruzadas.

Nos séculos XII e XIII as heresias de caráter filosófico e teológico deram lugar a movimentos heréticos de caráter popular, assentados sobre uma nova visão ética da Igreja e do cristianismo. Estes movimentos heréticos buscavam apontar os desvios da Igreja, do clero e da sua intervenção no poder secular, porque viam nesta postura crítica a forma de alterar a sociedade cristã, desvirtuada pelos maus costumes, que manchavam a verdadeira imagem da religião fundada por Cristo. Os hereges visavam uma volta ao passado cristão em oposição à vida dissoluta do clero, que não era aceita. O herege buscava o devaneio místico para tentar fugir desta realidade e, por fim, construir uma nova Jerusalém.

O mais importante movimento herético, para nossos objetivos, foi o dos cátaros ou albigenses. No dualismo cátaro, punham-se em confronto carne e espírito, pois, para eles, Jesus Cristo, um anjo, revestiu-se de corpo aparente (ilusório), a fim de ensinar o método da libertação ao homem. A salvação consistiria em libertar as parcelas da luz perdidas nas trevas do corpo. As igrejas cátaras eram compostas por eleitos ou perfeitos e simples crentes ou auditores. Os perfeitos, de ambos os sexos, entregavam-se a um rigoroso ascetismo, totalmente contrários à união carnal homem-mulher, por perpetuar a vida terrestre, considerada um castigo. Por três vezes, durante o ano, praticavam o jejum absoluto. Condenavam o juramento e a vida militar, mas não o suicídio, porque deixar-se vencer pela fome era um ato santo, a forma mais perfeita de morte.

O catarismo se disseminou principalmente entre os artesãos, pois pregava ao extremo a purificação e a simplicidade, contrapondo-se aos costumes corrompidos do clero, que praticava o nicolaísmo, ou seja, o casamento dos padres, e a simonia, isto é, a comercialização de cargos e bens eclesiásticos.

No Ocidente, os indícios deste grupo apareceram na primeira metade do século XI. Conhecidos como Irmãos do Livre Espírito, surgiram em Flandres, na Inglaterra, na França e no norte da Itália. Tiveram tamanha expressão, que o Papa Inocêncio III promoveu contra eles as Cruzadas, trazendo sérias conseqüências ao quadro feudal, principalmente por terem contribuído para o aumento excessivo do poder da Inquisição, que havia sido instituída pelo Papa Lúcio III (1181-1185), confirmada pelo Quarto Concílio de Latrão e pelo Papa Gregório IX (1227- 1241). Os cátaros foram praticamente exterminados pelos cruzados, porém a seita ainda se reconstituiu em vários pontos da Europa, somente desaparecendo em fins do século XIV.

Os movimentos heréticos, que punham em risco a ortodoxia religiosa, reclamaram uma ação enérgica por parte da Igreja e de seus seguidores. É neste quadro que Santo Antônio desponta como grande pregador, como grande defensor da fé católica. A trajetória que o levou a ser reconhecido, posteriormente, como o “martelo dos hereges”, é o que veremos na seção seguinte.”


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Fonte:

Rafael Brondani dos Santos: "MARTELO DOS HEREGES: Militarização e Politização de Santo Antônio no Brasil Colonial". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Georgina Silva dos Santos). Niterói, 2006.

Nota
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