O mito da democracia racial no Brasil


"Uma anedota sobre Machado de Assis ilustra bem o dilema do mulato da classe superior no Brasil durante o século XIX e, espero, nos colocará no caminho para explicar a vida ea "morte" do mito da democracia racial no Brasil. Quando Machado de Assis morreu, um de seus amigos, José Veríssimo, escreveu um artigo em sua homenagem. Numa explosão de admiração pelo homem de origens modestas e ancestrais negros que tornara-se um dos maiores romancistas do século, Veríssimo violou uma convenção social e referiu-se a Machado como o mulato Machado de Assis. Joaquim Nabuco, que leu o artigo, rapidamente percebeu o faux-pas e recomendou a supressão da palavra, insistindo que Machado não teria gostado dela. "Seu artigo no jornal está belíssimo" — escreveu a Veríssimo — "mas esta frase causou-me arrepio: 'Mulato, foi de fato gre¬go da melhor época'. Eu não teria chamado o Machado de mulato e penso que nada lhe doeria mais do que essa síntese. Rogo-lhe que tire isso quando reduzir os artigos a páginas permanentes. A palavra não é literária e é pejorativa, basta ver-lhe a etimologia. O Machado para mim era um branco e creio que por tal se tomava..."

Esta história diz muito a respeito das tensões sociais e raciais e das formas de acomodação características da sociedade brasileira nos séculos XIX e XX.Nabuco era branco, de uma família de importantes políticos, e ele mesmo foi uma destacada figura no Parlamento. Foi também o líder de movimento abolicionista na Câmara dos Deputados e o autor do mais famoso libelo contra a escravidão no Brasil. Como muitos outros membros da elite brasileira, tinha negros e mulatos — come Machado — entre seus amigos. Sabia o que se esperava dele, como uma pessoa branca, sempre que se dirigisse a um negro ou a um mulato. Consideraria seus amigos negros como iguais, exprimindo de maneiras sutis que ele não tinha preconceito contra os negros — uma forte convicção que ele tinha não apenas a respeito dele próprio como a respeito dos brasileiros brancos em geral. Ele evitaria cuidadosamente qualquer situação que pudesse fazer com que negros se sentissem embaraçados ou envergonhados, conscientes de seu ser negro. Ele os trataria como se fossem brancos.

Todos sabiam que Machado era um mulato, mas reconhecer isto publicamente seria uma gafe,uma ofensa a Machado. Isto também era assim considerado pelo próprio Machado. Nabuco estava certo. Toda sua vida, Machado tinha sido perseguido por três pesadelos: seus ataques epiléticos, suas origens modestas e sua cor — três fontes de medo, ansiedade e vergonha. Ele parece ter-se tornado mais resignado com sua epilepsia do que com suas origens e sua cor. Visitava sua família em horas que não poderia ser visto. Desposou uma mulher branca. Manteve uma atitude discreta e reservada diante da abolição. Em seus romances, trabalhava com tragédias pessoais de indivíduos brancos e raras vezes, e apenas marginalmente, referiu-se a escravos ou a negros. Jamais enfrentou o problema da "negritude". Ao contrário, fez o que muitos outros negros de sua geração que ascenderam a posições importantes fizeram. Viveu a ambiguidade de sua situação e cumpriu conscientemente o papel que lhe era atribuído na comunidade de brancos da qual ele tinha se tornado um membro. E não teria gostado de ser chamado de mulato — uma expressão que revelaria a ficção de sua pessoa pública.

A atitude de Nabuco correspondia ao ideal cavalheiresco cultivado pela elite branca. Ele conhecia e respeitava o protocolo, tal como o Imperador que, ao ser avisado num baile da Corte que o engenheiro negro André Rebouças ainda não havia dançado, solicitou à sua própria filha (a Princesa Isabel) que dançasse com ele. Mas todo o paternalismo do Imperador, todo o respeito de Nabuco pela etiqueta social, todo o prestígio social de homens como Machado e Rebouças, todas as manifestações de igualdade dos membros da elite brasileira em suas relações com os negros — todos estes cuidados e discrições — não podiam apagar definitivamente a existência do preconceito racial e da discriminação racial na sociedade brasileira. Machado, cuja qualidade mais notável como escritor foi seu senso de ironia e que passou boa parte de sua vida como romancista revelando as contradições entre a imagem das pessoas e a oculta realidade de suas vidas, provavelmente teria sentido isso melhor do que seu amigo branco. Nabuco, de sua posição de branco da classe superior, talvez estivesse mais esquecido de seus próprios preconceitos. No fim das contas, ele não tinha entre seus amigos muitos mulatos ilustres? Como muitos outros brasileiros, entretanto, ele esperava que a imigração européia trouxesse para os trópicos o "fluxo do vivo, vigoroso e sadio sangue caucasiano". A mesma forma de ilusão e a mesma ambiguidade nas relações raciais tornariam possível ao mulato Nina Rodrigues, o famoso antropólogo brasileiro dos anos de 1930, propagar idéias a respeito da inferioridade dos negros.”


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Fonte:
Emilia Viotti da Costa: “Da senzala à colônia”. Difusão Européia do Livro. São Paulo, 1966, p. 235-237.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui no referido livro.

* CRUZ E SOUZA, poeta negro do Simbolismo brasileiro.

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