A ideologia do progresso...


“A ideologia do progresso encontra, sem dúvida, nesta fase a expressão mais acabada] desta ideologia na filosofia de Auguste Comte, tal como ele a exprimiu nomeadamente no Cours de philosopãe positive (1830-42). No Discours préliminaire sur l'ensemble du positivisme [1848] declara: "Uma sistematização real de todos os pensamentos humanos constitui portanto a nossa primeira necessidade social, igualmente relativa à ordem e ao progresso. O cumprimento gradual desta vasta elaboração filosófica fará surgir espontaneamente em todo o Ocidente uma nova autoridade moral, cujo inevitável prestígio lançará a base direta da reorganização final, ligando as diversas populações avançadas por uma mesma educação geral, que fornecerá em todo o lado, [pg. 259] para a vida pública e para a vida privada, princípios fixos de juízo e de conduta. É assim que o movimento intelectual e a agitação social, cada vez mais solidários, conduzem apesar de tudo a elite da humanidade ao advento decisivo de um verdadeiro poder espiritual, ao mesmo tempo mais consistente e mais progressivo do que aquele de que a Idade Média tentou prematuramente fazer o admirável esboço".

Este texto demonstra que a ideologia do progresso não está inevitavelmente ligada ao espírito democrático. Auguste Comte, depois de uma surpreendente reabilitação da Idade Média, primeira idade de uma tentativa de "poder intelectual", ;firma o seu elitismo: é um aristocrata intelectual do progresso,Exata-mente na mesma data, em 1848 (embora o livro não tenha aparecido senão em 1890)„Ernest Renán dizia a mesma coisa no Avenir de la Science e nos Dialogues et fragments philosophiques afirma especificamente: "A grande obra cumprir-se-á pela ciência, não pela democracia. Nada se az sem grandes homens; deles virá a salvação" [1876, p. 103]

O período de 1840 a 1890 é o do triunfo da ideologia do progresso, simultaneamente com o grande "boom" econômico e industrial do Ocidente.

O saint-simoniano Buchez exprimiu a nuança progressista do socialismo cristão desde 1833, na sua Introduction à la science de l'histoire; o socialista Louis Bianc funda, em 1839, a "Revue du progrès"; Javary publica em 1850 De l'idée du progrès, na qual vê a idéia do século, ardentemente professada por alguns e vivamente combatida por outros; Proudhon junta-se ao coro na primeira carta da Philosophie du progrès (1851). Em 1852 Eugène Pelletan, na sua Profession de foi du XIX siècle faz do progresso a lei geral do universo. Em 1854 Bouillier, na sua Histoire de la philosophie cartésienne, repõe o cristianismo na ascendência progressista. Em 1864 Vacherot escreve uma Doctrine du progrès.

Em contrapartida, a idéia do progresso não parece jogar um papel importante no pensamento de Marx. No Capital [1867] lê-se, por exemplo: "A vida social, cuja base é formada pela produção material e pelas relações que ela implica, não se separará do véu místico que lhe encobre o aspecto, senão no dia em [pg. 260] que se manifestar como produto de homens livremente associados, agindo conscientemente segundo o seu próprio plano. Mas isso exige um fundamento material da sociedade, um conjunto de condições materiais de existência que são, por sua vez, o produto originário da história de um longo e doloroso desenvolvimento". "Um longo e doloroso desenvolvimento...", que melhor definição para progresso?

É necessário assinalar um acontecimento altamente significativo: a Exposição de Londres de 1851, hino ao progresso industrial e material. No discurso inaugural, o príncipe consorte Alberto declara: "Vivemos num período de transição perfeitamente maravilhoso, que está em via de atingir rapidamente esse grande objetivo para o qual tende toda a história: a unificação de toda a humanidade. A Exposição de 1851 deve fornecer-nos uma prova de verdade e um testemunho vivo do ponto de desenvolvimento ao qual o conjunto da humanidade chegou no cumprimento desse grande dever e um novo ponto de partida a partir do qual todas as nações possam dirigir os seus futuros esforços" [citado em Bury, 1920, p. 330].

Na segunda metade do século a ideologia do progresso deu novos passos adiante com as teorias científicas e filosóficas de Darwin e de Spencer.

O primeiro, em On the Origin of Species (1859), conduziu, segundo Bury [1920], à terceira etapa do desenvolvimento da idéia de progresso. Bury sublinha que, paradoxalmente, o reinado da idéia de progresso se estabelece sobre humilhações do homem. Na época de Copérnico e de Galileu a astronomia heliocêntrica destronou o homem da sua posição privilegiada no universo. Sofria uma nova degradação no seu próprio planeta perdendo a sua gloriosa veste de ser racional especialmente criado por Deus O transformismo de Darwin veio apoiar os primeiros trabalhos de Herbert Spencer (1820-1903) e nomeadamente a sua teoria geral da evolução exposta nos Principles of Psychology (1855). Spencer expôs, desde abril de 1857, as suas idéias sobre o progresso num artigo da "Westminster Review". Aplica em seguida a sua teoria evolucionista à biologia (Principles of Biology, 1864-67) e finalmente à sociologia (Principles of Sociology, 1877-96). A obra de Spencer marcou o coroamento [pg. 261] da idéia "do progresso concebido como uma necessidade benfazeja" e a ideologia do progresso de uma Europa, a do século XIX, que confundia "a sua civilização com a civilização" [cf. Valade, 1973]."


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Fonte:
Jacques Le Goff: “História e memória”. Editora da UNICAMP. Campinas, 1990, 226-227.

Nota
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A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra.

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