Patologias do catolicismo romano

"Até aqui tentamos descrever o catolicismo em sua tendência original e normal. Mas ele apresenta também manifestações patológicas. Não há somente o católico. Existe também o catolicístico, como forma decadente do católico. E ele pertence também à história do catolicismo e como tal deverá ser assumido pêlos ca­tólicos. O patológico aponta para o normal e o negativo guarda sempre referência ao positivo, pois para algo ser patológico e ne­gativo tem de ser mais do que patológico e negativo. Muito daqui­lo que a tradicional crítica protestante e cultural move contra o catolicismo romano não é outra coisa senão crítica ao catolicístico e como tal pode e deve ser acolhida pêlos católicos lúcidos. Con­sideramos acima que a identidade católica reside na sacramentalidade, na assunção positiva da mediação na qual o Evangelho e Cristo nos atingem. Por isso no catolicismo se valoriza muito a ins­tituição, a doutrina, a lei, o rito, os sacramentos, os ministérios e outras tantas mediações do cristianismo. A partir daqui podem ve­rificar-se reais patologias. Esse perigo foi muito cedo detectado por São Leão Magno ao pregar sobre o fim das perseguições e sobre a paz entre cristianismo e Império: "habet igitur, dilectissimi, pax nostra pericula sua..."', a nossa paz possui lá seus perigos. E estes não foram muito evitados na Igreja. Nela podemos encontrar, his­toricamente, todas as patologias imagináveis. Seria longo entrar na analise das principais, o que já foi feito com notável competência por outros". Apontaremos somente a estrutura patológica de fun­do que reside na absolutização e ontocratização da mediação. Acentua-se tão-somente o momento de identidade entre mediação e cristianismo, ocultando, quando não recalcando, a outra dimen­são da não-identidade. Assim a instituição da Igreja é de tal manei­ra absolutizada que tende a substituir Jesus Cristo ou a entender-se igual a ele. Em vez de ser função sacramental da redenção, se inde-pendentiza, bastando-se a si mesma e se impondo opressivamente sobre todos. O catolicismo privilegia a palavra (dogma) e a lei (câ­non). A palavra e a lei exigem o especialista (o teólogo e o cano-nista). Assim surgiram as elites dos doutos e dos hierarcas que pos­suem a gestão exclusiva do sagrado. Como são os únicos versados, presumem que somente mediante suas doutrinas, dogmas, ritos e normas se obtém a salvação e se pertence à Igreja'. Uma coisa é o dogma e outra o dogmatismo, a lei e o legalismo, a Tradição e o tradicionalismo, a autoridade e o autoritarismo. O cristianismo foi na compreensão patológica católica reduzido a uma simples doutrina de salvação: importa mais saber as verdades "sicut oportet ad salutem consequendam", do que fazê-las numa práxis de segui­mento de Jesus Cristo. Adora-se Jesus, sua terra, suas palavras, sua história, veneram-se os santos, decantam-se os mártires, celebram-se os heróicos testemunhos da fé, mas não se insiste no principal, que é pôr-se no seguimento deles e fazer o que eles fizeram; a ce­lebração cúltica nem sempre leva à conversão e não raro a uma alienação da verdadeira práxis cristã.

A absolutização de uma doutrina, de uma forma cultual, de um modo de distribuir o poder na comunidade centralizando todas as decisões numa pequena elite hierárquica, de uma manei­ra de presença da Igreja na sociedade levou a formas inegáveis de opressão dos fiéis. O endurecimento institucional conduziu à au­sência de fantasia, de espírito crítico, de criatividade. O novo é logo colocado sob suspeição enquanto predominam as tendências de apologia do status quo eclesiástico, apelos de lealdade à insti­tuição mais do que à mensagem e às exigências evangélicas. A ideia da segurança é muito mais forte do que a da verdade e da veracidade. As tensões são sufocadas frequentemente por repressão em que não raro se violam direitos fundamentais da pessoa humana, res­peitados até por sociedades aconfessionais ou oficialmente ateias.

A absolutização de um tipo de Igreja e de uma forma de apresentar a mensagem evangélica origina uma espécie curiosa de patologia: uma mentalidade apocalíptica. Quando o statusabsolutizado entra em crise, as pessoas empenhadas nele têm a nítida sensação do fim do mundo e da iminência da escatologia final. Pa­rece que tudo se acaba. Teólogos e santos puderam cair em seme­lhante ilusão. São Jerônimo, por exemplo, via na queda do Impé­rio Romano sinal evidente do fim próximo do mundo (Ep 123, 15-17; PL 22, 1.057-1.058); São Gregório, Papa, lia nos cataclismos de seu tempo e na derrocada de Roma o sinal do fim iminente (Hom. in Evang. I, 5: PL 76, 1.080-1.081). Com efeito, chegou o fim de um mundo, de sua ordem e de seu poder. Mas esse mundo não é todo o mundo, nem absorve em si todo o processo histórico. A história continua, surgirão outros mundos e outras chances para a fé de se encarnar e de possibilitar o encontro salvífico do homem com Deus.

As manifestações patológicas do catolicismo romano ga­nharam livre curso com a expulsão cie seu seio do pensamento negativo que mantinha viva a consciência da não-identidade. Foi um erro histórico a exclusão do protestantismo porque não se excluiu apenas Lutero, mas se excluiu também a possibilidade da crítica verdadeira, da contestação do sistema em nome do Evan­gelho. O catolicístico pode se transformar numa ideologia total, reacionária, violenta, repressiva e um dia invocada por conhecidos regimes totalitários instalados em vários países da América Latina. Nada mais longe e alheio ao espírito evangélico do que a pretensão do sistema catolicístico de infalibilidade ilimitada, de inquestionabilidade, de certezas absolutas, do que o encapsulamento do cris­tianismo numa única e exclusiva expressão, do que a incapacidade de reconhecer o Evangelho senão numa única doutrina, numa única liturgia, numa única norma moral e numa única organização eclesiástica. Substitui-se a experiência cristã pela indoutrinação do sistema montado. Vive-se no inferno dos significantes sempre de novo interpretados e reinterpretados ideologicamente para se manterem sempre vigentes, numa cadeia sem fim de interpreta­ções, perdendo-se a referência ao único necessário que é o Evan­gelho. A fetichização da mediação dentro do catolicismo é respon­sável pelo seu esclerosamento histórico e pela lentidão em captar os sinais dos tempos e, à luz deles, traduzir e encarnar novamente a mensagem libertadora de Jesus.

Ao concluirmos esta parte, queremos novamente ressaltar que tais manifestações são patologias de um princípio verdadeiro, pa­tologias que não logram deglutir a força positiva da identidade do catolicismo. O negativo vive de um positivo mais fundamental, e a crítica, por mais contundente e veraz, se inspira em algo maior e mais são. Sem esta dicção do problema, cairíamos em juízos sem dis­cernimento dos espíritos e acabaríamos confundindo cristianismo com catolicismo e identidade com suas concretizações históricas.”

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Fonte:
Leonardo Boff: “Igreja: Carisma e Poder”. Editora Ática. São Paulo, 1993, p. 146-149.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra.

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