Representações da mulher ideal

"O momento do Iluminismo, das lutas pelo fim do Antigo Regime com a Revolução Francesa foi segundo SOIHET ponto de partida para uma reflexão sobre as limitações que impediram as mulheres por um longo tempo de desenvolver suas potencialidades. Nesta conjuntura, as novas verdades defendidas por estes intelectuais: igualdade, liberdade e razão, ao mesmo tempo em que contrapunham à Igreja Católica – considerada por eles como conservadora, dogmática e intolerante – assumiam posição similar à mesma, uma vez que proclamavam a igualdade de direitos entre os homens, mas excluíam todas as mulheres dos mesmos. Para a maioria dos iluministas, a inferioridade da razão nas mulheres era fato incontestável: elas não eram capazes de abstrair e generalizar, ou seja, de pensar e a sua beleza era incompatível com as faculdades mais nobres. Eram vistas por estes intelectuais como crianças eternas, incapazes de ir além do espaço doméstico que lhes fora legado pela natureza. Estas conclusões são, no entanto contraditórias, pois, existiam naquele momento, mulheres que organizavam saraus e difundiam o espírito filosófico, a literatura e as ciências.

Estes argumentos ganharam força ao longo do século XIX, adquirindo respaldo científico. Segundo a medicina social, a fragilidade, o recato, o predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais, a subordinação da sexualidade à vocação maternal, constituía-se em características biologicamente femininas. Em contraposição, os homens eram vistos como portadores de uma natureza autoritária e racional. Apoiados nesta corrente, Lombroso e Ferrero promoveram um estudo sobre a mulher criminosa e a prostituta no qual buscaram analisá-las partindo das características consideradas biologicamente normais para as mulheres sem levar em consideração quaisquer razões sócio-culturais. Segundo estes médicos criminologistas a mulher normal era infantilizada, de fraca inteligência, possuía menor sensibilidade sexual, era mais frígida e passiva no ato sexual, adaptava-se facilmente à poligamia masculina. Eram mais resistentes ao sofrimento, mais piedosas e religiosas, mas eram mais irascíveis. Por serem muito frágeis tinham maior senso de justiça, porém o ciúme, a inveja, o sentimento de vingança eram maiores nelas do que nos homens. Entre as mulheres inexistia a lealdade e a amizade, não eram perseverantes e sim pacientes, eram dependentes e tinha na maternidade sua função preponderante. Aquelas dotadas de erotismo intenso e forte inteligência, eram despidas do sentimento de maternidade, sendo extremamente perigosas. Constituíam-se nas criminosas natas, nas prostitutas e nas loucas que deveriam ser afastadas do convívio social.

Esta categorização considerada “cientificamente” fundamentada é segundo SOIHET uma visão preconceituosa, pois legitima a inferioridade feminina como uma simples questão biológica, quando na verdade ela é fruto de inúmeros condicionamentos resultantes de condições históricas, sociais e culturais. Ainda segundo a autora, esta abordagem padece do grave erro de considerar a mulher como categoria universal, com características comuns determinadas organicamente e estabelecendo como anormal qualquer comportamento destoante. Para ela, Lombroso e Ferrero não perceberam que as normas sociais variam conforme a cultura e a época e que as regras que valem para uma classe social, nem sempre são as mesmas que regem o comportamento de outra.

No Brasil de fins do século XIX e início do século XX a medicina passou a ter uma influência marcante no meio familiar. O cientificismo-higienismo, predominante neste período, possibilitou o controle médico sobre a família, disciplinando a sociedade. O higienismo-sanitarismo criou todo um conjunto de prescrições que deveriam orientar e ordenar a vida na cidade, no trabalho, no domicílio, na família, nos corpos. Os costumes e hábitos cotidianos, os prazeres permitidos e proibidos deveriam seguir o parâmetro médico. O discurso médico insistia na necessidade de fiscalizar os lares em relação a sua higienização e cabia à mulher esta responsabilidade. Ela seria a responsável pela saúde da família, principalmente das crianças. Neste ínterim, a educação feminina torna-se fundamental para a medicina, pois, além de ser um agente familiar da higiene social ela deveria ensinar as normas médico-sanitaristas para as suas filhas.

A imagem construída para a mulher, segundo esse discurso, destacava a sua fragilidade física, de onde emanava sua delicadeza e debilidade moral. Sua inferioridade em relação ao homem se manifestava pelo predomínio das faculdades afetivas. A fraqueza, a sensibilidade, a doçura, a castidade, o recato e a submissão eram considerados virtudes essenciais ao sexo feminino. O discurso médico representava a maternidade como uma função natural que enaltecia a mulher além de desenvolver seus sentimentos maternais tão importantes para a família e para a sociedade. Qualquer atividade feminina que não fosse a de mãe e esposa era vista como desviante.

Os médicos condenavam o trabalho externo das mulheres que era visto como um desperdício das energias femininas, nocivo à moralidade, empecilho para as funções maternais, responsáveis pela mortalidade infantil e pelas desordens sociais. O homem era o oposto da mulher. Ele deveria ser racional, autoritário, era considerado menos propenso ao amor e inclinado para o desejo puramente sexual. Ao afirmar que o homem por ser forte, agressivo e inteligente conferiu o desenvolvimento da civilização urbana, enquanto a mulher, por sua natureza passiva e fecunda, deveria perpetuar esta civilização por meio da maternidade, o discurso médico legitimava a dominação masculina sobre a mulher. Por ser considerada biologicamente predestinada, a maternidade tornava-se uma obrigação e a representação feminina concentrava-se na valorização da sensibilidade, da devoção e da submissão, em detrimento das capacidades intelectuais.

Respaldados nestas teorias científicas consideradas naquele momento como verdade absoluta, inquestionável, muitos políticos, juristas, intelectuais, autoridades em geral, mantiveram-se contrários a qualquer forma de emancipação feminina. Firmes em suas convicções insistiam em limitar as ações cotidianas das mulheres em defesa da integridade da família. Para tanto, utilizava-se de diversos meios como o teatro, a literatura e a imprensa. Em relação à imprensa, particularmente nos periódicos mineiros, percebemos que esta mulher “criada” pela ciência será apresentada como a imagem da mulher ideal para o bom andamento da sociedade. Por isso, as qualidades femininas deste modelo cientificamente comprovado, serão constantemente exaltadas em verso e prosa.

A mulher
A mulher é uma fada benfazeja, um anjo, uma medianeira entre Deus e a creatura para elevar a alma do homem às delicias do céo. A mulher é um thezouro de ternura e de amor; é a flor que exala o prazer, o calix que contem a felicidade. O sol e a mulher parecem ter dividido entre si o império do mundo. Um nos dá o dia, outra nos embelleza e nos amenisa.

Neste exemplo, a mulher é representada como um ser muito próximo da divindade, da perfeição. Ela é bela, terna, amorosa e proporciona paz e felicidade ao homem. O que vemos predominantemente na imprensa mineira é a afirmação da beleza como o maior instrumento da mulher, pois seria através dela que seu futuro seria definido: por meio de um bom casamento que lhe traria a felicidade e uma família feliz.

Se quereis ser verdadeiramente bella, apegae-vos desesperadamente á sua mocidade e para conservar essa mocidade não te fatigueis jamais.
Repouso, muito repouso, esta é a pedra angular do monumento da belleza. Não compete a uma mulher bella trabalhar, estudar, como um benedictino, e ainda muito menos remar, jogar o “golfe” e dirigir seu automóvel.[...]
Cada vez que a mulher se fadiga faz um saque no banco dos attractivos e, por isso, ela só deve fazer o exercicio estrictamente necessario para evitar a gordura e o amortecimento dos olhos.[...]
Mas não esqueçais: o “repouso” – em primeiro logar!
Quanto á alimentação, estudai os effeitos das diversas iguarias sobre o nosso organismo e regulai- vos segundo esse estudo.
Os frutos de qualquer qualidade, principalmente pela manhã são excellentes para a tez.
Dormi bem mas não em excesso e estudai-vos também sobre este ponto.[...]
Finalmente, o maior amigo da belleza não é nem o ar livre, nem o exercício, é um vidro da melhor água de rosas á qual se adicionam doze gotas de glycerina.
É o que há de melhor para refrescar a pelle e, podeis ter certeza, com uma pelle fresca não há mulher feia...

A arte de ser bella (cartas de MM. Lina Cavaliere)
publicado no ano de 1918 no jornal O flirt era muito mais do que um conjunto de dicas de beleza: era um texto doutrinador que tentava mostrar as mulheres o papel que elas deveriam desempenhar na sociedade. Artigos como este endossavam o discurso científico da época que considerava a beleza como fundamental para se conseguir um bom casamento, que deveria ser o principal objetivo feminino. Além disso, acreditava-se que sua manutenção era incompatível com algumas reivindicações femininas como o estudo e o trabalho fora do lar. Consideramos este artigo doutrinador porque havia a intenção de educá-las para serem apenas bibelôs sociais. A beleza era usada como instrumento legitimador desta categorização social que designava à mulher apenas funções domésticas e atividades não intelectualizadas. Ao assumir as funções masculinas ela não teria mais condições de repousar, ficaria com a feição abatida e feia e o seu lar, conseqüentemente desestruturado. Para se manter sempre bela a mulher não deveria se cansar em hipótese alguma; a boa disposição que o repouso dava era fundamental para manter a beleza uma vez que o homem precisava encontrar em sua casa tranqüilidade e alegria refletida na esposa e nos filhos.

Em 1915 a revista Vida de Minas, publicava um artigo que era um diálogo entre mãe e filha pertencentes à alta sociedade. A filha, casada havia três meses, lamentava a mãe o fato de ser bonita demais. Ela sentia que havia muitos inconvenientes em ser bela e por isso gostaria de ser menos bonita, simpática talvez, mas feia não. Enquanto a filha argumentava com a mãe as dificuldades que ela enfrentava por causa da beleza - o marido ficava enciumado demais; os homens a olhavam de forma indiscreta, as pessoas falavam dela simplesmente por ser bonita-, a mãe por sua vez tentava mostrar a filha como seria mais difícil se ela não tivesse os atributos físicos que apresentava.

Como nada convencia a aflita moça, a mãe então lhe dava conselhos para se tornar menos bonita. Sugeria que a filha deixasse de se vestir na moda, tornando-se deselegante; fato este totalmente descartado pela filha que considerava a elegância fundamental para manter seu marido sempre apaixonado por ela. A segunda sugestão era que se mutilasse como as japonesas faziam depois de casadas para não serem mais atraentes. A jovem senhora se desesperava porque se fizesse isto, o marido a abandonaria. Por fim a mãe revelava à filha o segredo dos homens que tinham belas esposas: aparentemente se mostravam ciumentos, cheios de cuidados, mas na verdade tinham muito orgulho por ver a sua esposa despertar a admiração de todos.

Este diálogo assinado por Carlos Góes parece-nos uma história criada para mostrar às moças da sociedade a importância que a beleza tinha nas suas vidas. Notamos no artigo que a jovem casada não tinha outras preocupações, em momento algum ela falava em querer ser vista por outros atributos, como a inteligência, por exemplo, apenas queria ficar menos bonita. A mãe acabava por convencê-la de que era importante sim ser bonita porque o marido se orgulharia por ela ser assim. A beleza foi usada durante inúmeras gerações como a mais poderosa arma das mulheres. O encanto, a graça, os belos traços femininos eram a garantia de um futuro promissor, bem longe dos bancos das universidades, do trabalho bem remunerado e de status e, principalmente, da vida política.”

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Fonte:
KELLY CRISTINA NASCIMENTO: "ENTRE A MULHER IDEAL E A MULHER MODERNA: REPRESENTAÇÕES FEMININAS NA IMPRENSA MINEIRA - 1873-1932". (Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre. Orientadora: Prof. Dra. Adriana Romeiro). Belo Horizonte - MG, 2006.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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