Romance e História

"Segundo Aguiar e Silva (1973), o romance foi, muitas vezes, considerado como um herdeiro direto das canções de gesta. Entretanto, muito há que se destacar em suas desconformidades. Suas diferenças alcançam tanto elementos formais como os de conteúdo. A canção de gesta era uma composição direcionada, como já supõe o nome, ao canto, enquanto que o romance deveria ser lido ou recitado.

Ainda esclarecendo os supostos desencontros entre estes dois gêneros literários, o autor
esclarece que o herói das canções de gesta personifica uma ação coletiva através de suas aventuras e façanhas que permanecem como quadro da tradição de um determinado lugar, representando o conjunto de atitudes e comportamentos de uma comunidade. Já o herói do romance assume uma posição mais individualizada em relação ao grupo em que é inserido. As aventuras vividas por este herói são as de uma personagem, criada pela ficção, e apresentam um cunho descritivo-narrativo. Segundo Zumthor (1972, apud AGUIAR E SILVA, 1973) a narrativa, por estar livre das contrições do canto, encontra as suas dimensões próprias e cresce por si mesma, alargando seus horizontes e perdendo grande parte da sua função poética, abarcando para si dois planos da existência do texto: a ficção e a escrita.

Sem um passado completamente definido, é interessante constatar que se encontram mais diferenças do que similaridades entre as canções de gesta e o romance. É difícil estabelecer a gênese deste que se tornou a mais popular forma literária. O romance venceu muitos obstáculos durante sua trajetória na história literária do mundo, tornando mais relevante o estudo da sua estrutura, abrangência e dos efeitos que é capaz de exercer sobre os leitores por meio de suas personagens.

Bourneuf & Ouellet (1976) comentam que o romance narra uma história, um desencadeamento de fatos ocorridos num tempo e lugar levados a cabo por suas personagens. Já para Aguiar e Silva (1973), o romance medieval “encontra-se profundamente ligado à historiografia (...)” (p.249). Sabe-se, então, que nos séculos XII e XIII os termos roman e estoire, na França, eram equivalentes, confirmando a ligação intrínseca existente entre a realidade (como fonte inspiradora) e a ficção (como representação dessa realidade) veiculada pelo romance.

Percebe-se daí a forte identificação sentida pelo leitor em relação a uma personagem ou a uma situação vivida por uma ou mais personagens. A história, seja relatada cronologicamente ou não, representa uma referência à ficção. Tal assertiva combate os estudiosos que defendem a nítida separação da criação literária do ambiente real vivido pelo autor. Por mais que um autor crie, invente personagens, situações, ações e atitudes completamente originadas por sua mente, não há como fugir dos modelos sociais pré-existentes. Apesar da relação intrínseca entre estas duas esferas, é importante salientar que se trata apenas de uma relação. A história, seja de uma comunidade ou de uma pessoa apenas, não constitui matéria real num romance. Não são a mesma coisa a vida real e o que se reflete na ficção romanesca, entretanto, esta recebe reflexos daquela que a fazem semelhante e passível de identificação.

Bourneuf & Ouellet (1976) explicam que a história narrada é fictícia e destacam a habilidade do autor em utilizar o verdadeiro e transformá-lo em ficção: “Dificilmente se pode conceber um romance puro, onde tudo seria fabricado, desligado da realidade (...)” (p.31). Do mesmo modo, questionam a possibilidade de existir uma narrativa bruta, em que tudo fosse conforme a realidade. Ainda assim estaria em conformidade com a realidade, não seria outra forma de realidade: “(...) o romance atua sem cessar na fronteira ambígua do real e da ficção. Se o romancista dá a sua história por verdadeira, engana pouco ou muito o seu leitor, mas porque este o admite e nisso sente prazer...” (p.32).

Ressaltando ainda o papel da história na narrativa romanesca, deve-se, então, constar que nas literaturas européias medievais, extensas composições romanescas apareceram com bastante freqüência e contribuíram para a construção da imagem de uma época por descrições e narrações da vida cotidiana comum, como também da vida da Corte. Aguiar e Silva (1973) esclarece que se pode encontrar duas correntes dessa literatura: o romance de cavalaria e o romance sentimental. O romance de cavalaria, segundo modelo constituído pelas obras de Chrétien de Troyes, revela uma vivência nobre e ao mesmo tempo guerreira, apresentando uma estrutura pautada em duas vertentes: o amor e a aventura.

Vale lembrar que Zumthor (1972, apud AGUIAR E SILVA, 1973) define o significado
específico do termo “aventura” no romance de Chrétien de Troyes e de outros romancistas medievais, designando a aventura como uma prova (ou uma série de provas) em que o herói passa de um estado menor a uma posição superior, restabelecendo a ordem comum. Já o romance sentimental apresentava um caráter muito mais erótico ou acentuadamente mais sentimentalista. O romance de cavalaria se valia das peripécias amorosas para alavancar e conceder importância às aventuras, que propiciavam às personagens finais felizes pelo sucesso das façanhas, tarefas ou missões empreendidas pelo herói cavaleiresco. Também vale ressaltar que os desfechos dos romances sentimentais, com freqüência, não acompanhavam os romances de cavalaria, pois apresentavam fins trágicos, acentuando seu caráter dramático.

Aguiar e Silva (1973) explicita que, do ponto de vista técnico, o romance de cavalaria apresentou uma capacidade muito maior de expansão de suas seqüências narrativas, haja vista as várias e conhecidas continuações ou novas aventuras envolvendo os mesmos personagens já narrados em aventuras anteriores. A literatura medieval não é restrita apenas a estas narrativas. Encontram-se outras formas literárias, tais como as moralidades, as exempla, as farsas, os fabliaux, a novela e o conto. Entre estas formas menores, destacam-se a novela e o conto.

Segundo Bourneuf & Ouellet (1976), a novela e o conto possuem uma estreita ligação com o romance, porém nem sempre fácil de compreender, dadas as diferentes concepções que estas formas literárias receberam em diversas épocas. A novela sofreu alterações várias desde o seu aparecimento, no século XV, na França. Formou-se de acordo com as modas e os costumes, procurando ligar-se à crônica cotidiana ou à reconstituição histórica, muitas vezes satírica e outras tantas filosófica, registrando tradições e hábitos, como também se abrindo ao fantástico. Estruturalmente, a novela era uma narrativa curta, descomplicada, não dada a longas descrições “se esforçava por contar um fato ou um incidente impressionante, de tal modo que se tivesse a sensação de um acontecimento real; esse incidente deveria parecer mais importante do que as personagens que o vivem” (JOLLES, 1972, p.251, apud Aguiar e Silva, 1973).

Grande destaque ganhou a novela no século XIV na literatura pré-renascentista italiana, cujo modelo fixou-se com Boccacio, com o seu Decameron, novela escrita com pouca matéria e mais objetiva em sua narrativa. Não se distancia do romance apenas devido à extensão de sua história: “a sua própria natureza é diferente, isto é, o objetivo do autor, a construção, o ritmo, o tom que ele adota” (BOURNEUF & OUELLET, 1976, p.33). Foi a partir da literatura italiana que a novela irradiou-se pela Europa. Da mesma forma como Jolles explica a sensação de realidade transmitida pela novela, também Bourneuf & Ouellet (1976) expõem o fato de a novela apresentar histórias curtas, a complexidade da vida que o autor busca transparecer torna-se mais densa e edificada.

Em relação ao conto, há controvérsias quanto a sua caracterização, bem como as suas semelhanças e diferenças com a novela. Existem autores que não diferenciam essas formas literárias, atribuindo as possíveis variedades a uma terminologia apenas. Entretanto, há outros estudiosos que procuram delimitar certas características à novela inexistentes no conto ou vice-versa. Paul Zumthor (1972, apud AGUIAR E SILVA, 1973) esclarece que a novela, narrativa curta, como designação literária, provém do italiano novella, que significa “novidade, notícia”. No século XIII a palavra “nova” aparece com o significado de “narrativa feita de alguma matéria tradicional, arranjada de novo”.

Entende-se que a novela dedica-se à contemplação, não oferecendo matéria à interrogação, à intriga, ao exercício intelectual da leitura. Mesmo estando próxima à realidade cotidiana, por suas características ingênuas e vulgares, torna-se uma literatura mais apropriada ao leitor menos exigente, que apenas procura por distração. Por esse motivo, a temática maravilhosa e fantástica adapta-se bem à contemplação e satisfaz este leitor.

Retomando a narrativa romanesca, suas implicações e seus principais elementos constitutivos e históricos, Aguiar e Silva (1973) aponta uma estreita ligação entre o romance surgido no período barroco, no século XVII, e o romance medieval, caracterizando-se pela exuberante imaginação e pela quantidade vasta de situações aventurosas, fantásticas e inverossímeis, tais como “naufrágios, duelos, raptos, confusões e personagens, aparições de monstros e gigantes, etc.” (p.252). Mas, ao mesmo tempo, o romance barroco vem preencher o gosto e responder às exigências requintadas do público leitor daquele século, que consumia vorazmente esta literatura romanesca, repleta de narrativas longas e complicadas, principalmente, aventuras sentimentais.

Ainda no quadro das literaturas européias do século XVII, ocupa lugar de destaque Dom
Quixote, de Cervantes, posicionando a Espanha no cume do domínio da criação romanesca. A obra constitui uma espécie de anti-romance pautada na crítica aos valores cavaleirescos, representando uma sátira aos romances de cavalaria. À literatura espanhola também pertence a obra Vida de Lazarillo de Tormes, de autor desconhecido. Vale afirmar que o romance picaresco exerceu forte influência na literatura européia, trazendo para o gênero a descrição realista da sociedade e dos costumes de época. Entretanto, parece transcender a este retrato da realidade e abarcar um significado mais profundo, em especial, à construção da personagem. O pícaro, protagonista deste gênero, é tido como um anti-herói, tanto por sua origem, como por seu comportamento e natureza. De acordo com Aguiar e Silva (1973) o pícaro, através da sua rebeldia, se afirma como um indivíduo ciente da sua condição social e, por causa disto, tem a ousadia de considerar a sua miséria, matéria legítima e digna de uma obra literária.

O romance barroco, por sua vez, apresenta-se como um instrumento de fuga, a partir do
enfraquecimento do “vício romanesco”. O romance moderno toma forma e aspira a ser mais do que somente uma história, questionando os problemas sociais e suscitando soluções ou respostas. Segundo Aguiar e Silva (1973), o romance moderno não se constituiu apenas da dissolução da narrativa barroca, mas também do não apego à estética clássica. Para o autor, o romance é um gênero desprovido de antepassados greco-latinos e, portanto, livre de modelos a imitar e de regras a seguir. As poéticas européias pertencentes aos períodos quinhentista e seiscentista foram centradas em Aristóteles e Horácio e, por conseguinte, não concederam a devida atenção e importância ao romance, resultando daí a sua intensa liberdade e fluidez. O seu sucesso, percebido por sua difusão através dos séculos, nem sempre foi bem visto. O romance sofreu muitas críticas e chegou a ser considerado uma literatura menor, não recomendada às pessoas de bem.

Até o século XVIII, sem prestígio, sob todos os pontos de vista, mesmo apresentando um fascínio exercido pela narrativa, o romance foi relegado à posição de literatura frívola, fútil e sem utilidade prática, própria de leitores comuns, pouco exigentes e sem cultura literária prévia. Considerando o público feminino que os romances medieval, renascentista e barroco dirigiram-se é provável a associação entre a digressão de comportamentos e as leituras desses romances. O romance como um instrumento perigoso de perturbação emocional e corrupção dos bons costumes explica as “(...) razões por que os moralistas e os próprios poderes públicos o condenaram asperamente” (AGUIAR E SILVA, 1973, p.255).

Bourneuf & Ouellet (1976) também apontam para o desprestígio do romance, vítima de
preconceitos desde o século XVII, recebendo denúncias de ordem moral e condenações de caráter estético. Os moralistas investiram contra ele por muitas vezes, bradando ao público a sua influência corruptora, numa tentativa de purgar a leitura pelas famílias da sociedade burguesa: “Um fazedor de romances e um poeta de teatro é um envenenador público, não dos corpos, mas das almas dos fiéis, que deve ser olhado como culpado de uma infinidade de homicídios espirituais” (BOURNEUF & OUELLET, 1976, p.14) 5 . Os autores ainda comentam que tais ataques sofridos não foram gratuitos, considerando-se o grande poder que o romance possui para explicar a realidade, de ensinar e de divertir. Desta forma, ele não apenas reflete o gosto de público, mas também os cria, os designa, tal como o cinema, atualmente, responsável pelos mais variados modismos.

Tal atitude de repulsa e desconfiança dos moralistas em relação ao romance prolongou-se pelos tempos modernos, nas mais variadas formas, segundo Aguiar e Silva. Levou um tempo razoável para que fosse, aos poucos, perdendo força. A partir do enfraquecimento da estética clássica, no século XVIII, formou-se um novo público, com novos gostos artísticos e uma nova mentalidade, reconsiderando o romance. O espírito desse novo público procurou instaurar uma nova ordem cultural, social e principalmente econômica, a fim de se afastar dos valores até então vigentes, provenientes das estéticas clássicas e tradicionais. Nascia e se reproduzia uma sociedade burguesa, valorizando os aspectos positivos e a apreciação do romance.

A nova ordem, cansada do caráter fabuloso do romance, em voga até meados do século
XVIII, demanda uma carga maior de realismo, de verossimilhança. A novela, que já oferecia muito desses aspectos, passa a ganhar a atenção do público novamente e até a prolongar a sua extensão, tornando-se, segundo Aguiar e Silva (1973)

(...) uma espécie de gênero narrativo intermediário entre o ciclópico romance barroco e as curtas novelas do Renascimento: um gênero intermediário que, do ponto de vista técnico, pode ser justamente considerado como ponte que conduz ao romance moderno (p.257,258).

O século XVIII trouxe ao romance um caráter bastante analítico. O autor ressalta uma
exacerbada melancolia, aspecto pré-romântico que tomou espaço considerável neste século. Quando os primeiros matizes do romantismo se espalham pela Europa, o romance parece já ter conquistado a sua liberdade como gênero e até já se falava em certa tradição romanesca. Durante o período de transição do século XVIII para o XIX houve um aumento da necessidade de leitura por parte do público leitor. Apresenta-se, portanto, profícuo para a escrita e editoração de obras; muitas foram escritas e publicadas. O aspecto negativo apontava para uma maioria de leitores não exigentes e isto, conseqüentemente, fez cair a qualidade das obras publicadas neste período.

Entre as temáticas mais apreciadas estão o romance negro ou de terror, em que povoam
personagens exageradamente boas ou más, e o romance em folhetins que apresentavam histórias melodramáticas, repletas de romantismo emocionante, elemento que garantia o vivo interesse dos seus leitores, não significando, porém, que todo material divulgado por este veículo fosse de baixa qualidade. As temáticas demasiadamente comoventes eram adequadas ao apetite romanesco das grandes massas leitoras da época.

O Romantismo veio, por conseguinte, afirmar a narrativa romanesca como forma literária relevante, não mais como uma literatura marginal. Esta narrativa fez-se hábil na descrição de personagens, seja em aspectos físicos como em psicológicos; foi capaz de conduzir análises do homem e do mundo ao seu redor, criando uma variada tipologia: romance psicológico, histórico, poético ou simbólico, de análise crítica, entre outros.”

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Fonte:
CRISTINA HELENA CARNEIRO: "BRUXAS E FEITICEIRAS EM NOVELAS DE CAVALARIA DO CICLO ARTURIANO: O REVERSO DA FIGURA FEMININA?". (Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Estadual de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras, área de concentração: Estudos Literários. Orientador: Profª. Drª. Clarice Zamonaro Cortez). Maringá, 2006.

Nota
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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