Stephen Jay Gould e os magistérios da ciência e da religião


“Não vejo corno a ciência e a religião podem ser unificadas, ou mesmo sintetizadas, sob qualquer esquema comum de explicação ou análise; mas tampouco entendo por que as duas experiências devem ser conflitantes. A ciência tenta documentar o caráter factual do mundo natural, desenvolvendo teorias que coordenem e expliquem esses fatos. A religião, por sua vêz, opera na esfera igualmente importante, mas completamente diferente, dos desígnios, significados e valores humanos - assuntos que a esfera factual da ciência pode até esclarecer, mas nunca solucionar. De modo semelhante, enquanto os cientistas devem agir segundo princípios éticos, alguns específicos à sua profissão, a validade desses princípios nunca pode ser deduzida das descobertas factuais da ciência.

Proponho que concentremos esse princípio central de não-interferência respeitosa - acompanhado de um intenso diálogo entre as duas disciplinas distintas, cada uma cobrindo uma faceta central da existência humana - enunciando o Princípio dos MNI, ou magistérios não-interferentes. Acredito que meus colegas católicos não reclamarão dessa apropriação de um termo comum de seu discurso - pois um magistério (do latim magister, ou professor) representa uma área de autoridade acadêmica.

Admito que magisterium é uma palavra complexa, mas considero o termo tão apropriado ao conceito central deste livro que ouso propor essa novidade para o vocabulário de muitos leitores. Esse pedido de indulgência e esforço também inclui um pedido: por favor, não confundam essa palavra com muitos outros homônimos próximos de significado muito diferente - majestade, majestoso etc. (confusão bastante comum, uma vez que vida católica também tem atividades nessa área muito diferente). Essas outras palavras são derivadas da raiz (e do caminho) diferente majestas, ou majestade (e, mais além de magnus, ou grande), e significam dominação e obediência inquestionáveis. Um magistério, por outro lado, é uma área onde uma forma de ensinamento tem as ferramentas apropriadas para um discurso e solução significativos, Em outras palavras, nós debatemos e dialogamos sob a égide de uni magistério, enquanto ficamos em silêncio ou somos obrigados a obedecer a uma majestade.

Resumindo, não sem alguma repetição, a esfera ou magistério da ciência engloba o mundo empírico: de que é feito o universo (fato) e por que ele funciona de determinada maneira (teoria). O magistério da religião engloba questões de significado definitivo e valor moral. Esses dois magistérios não interferem um com o outro, tampouco englobam todas as especulações (considerem, por exemplo, o magistério da arte e o significado da beleza). Para citar antigos clichês, a ciência se interessa pelo tempo, e a religião, pela eternidade; a ciência estuda como funciona o céu, e a religião como ir para o céu.”

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Fonte:
Stephen Jay Gould: "Pilares do Tempo: ciência e religião na plenitude da vida". Editora Rocco. Rio de Janeiro, 2002, p. 12-13.

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