Antônio Cândido e os condenados à vanguarda

A entrevista, a seguir, com o prestigiado professor Antônio Cândido, da Universidade de São Paulo, foi publicada em 1975 pela revista de literatura "Escrita" (Ano I - Nº 2 - disponível para o acesso público no Arquivo Público do Estado de São Paulo), com o título "Antônio Cândido e os condenados à vanguarda". Falando sobre os críticos, por exemplo, diz o professor: "O mal da crítica anterior era o arbítrio sem fundamento. O mal desta é o arbítrio fingindo de rigor". Sem dúvida um belo "achado literário".

---
1. Qual o seu conceito de vanguarda?
R. Para simplificar: é a opção consciente no sentido de renovar as artes ou a literatura de modo radical e constante, e não renovar para permanecer. Nesse sentido, é urna fenômeno pós-romântico e só se configurou plenamente no nosso século.

2. Por que, no Brasil, estaríamos “condenados à vanguarda”?

R. Reconheço os termos que usei num debate público, e confirmo. Não digo só no Brasil. No momento em que vivemos, em todos os países com civilização de tipo ocidental, me parece que isto é um fato, independente de qualquer juízo de valor, A mudança social e técnica é tão acelerada, muda tanto a fisionomia das sociedades, que as formas literárias e artísticas se desgastam rapidamente, requerendo o esforço de refazê-las. Daí uma certa inviabilidade da obra-prima, da obra feita para durar, Como diria Paul Valéry, “o instante é a nossa unidade de tempo”, e “está aberta a era do provisório”. Isto explica a ânsia experimental, que caracteriza as vanguardas. É claro que há vanguarda e vanguarda, como tudo o mais; desde as mistificações até os esforços realmente válidos.
Nessa espécie de necessidade do nosso tempo, há riscos muito graves, porque a vanguarda não é feita para permanecer, e sim para provocar a mudança e dar lugar a uma fase estável. Mas, como na verdade ela só suscita estabilizações fugazes, surge automaticamente e, logo após, uma nova e aflita vanguarda; e a gente fica pensando o que será de unia literatura só movimento, sem as paradas indispensáveis. Mas não é assim também no resto?

3. A inivação revolucionária, implícita na idéia de vanguarda, pode ser induzida artificialmente ou é resultante de um longo processo de maturação social?
R. Em princípio, uma pseudo-vanguarda pode ser artificialmente montada, sem razão-de-ser profunda. Quanto ás outras, nos termos propostos acima, há uma escolha deliberada, mas esta é suscitada por estímulos que favorecem e mesmo solicitam a atitude de renovação radical e constante, Esta é um traço do nosso tempo, e portanto resulta também de condições sociais, Eu diria que a literatura não pode nem deve ser apenas vanguarda; mas que as vanguardas têm sido o sal do nosso tempo.

4, Assim como ocorre com a tecnologia em geral, não constituiria a chamada “critica científica” ara fator de alienação, relativamente ao contexto nacional, exigindo por isso, da parte dos professores e críticos, uma atitude de reserva a desmistificação?

R. Não creio. E para responda direito faço uma distinção entre “crítica científica” e parolagem tecnicista, Penso que vocês se referem às tendências contemporâneas para analisar objetivamente as estruturas literárias, com base nas contribuições da lingüística e da semiótica, suspendendo o juízo de valor e mais preocupadas em estabelecer a correlação dos elementos formais do que em chegar desde logo aos significados, que seriam imanentes em relação aos ditos elementos. Isto representa a meu ver o estabelecimento de instrumentos úteis de trabalho, que podem ser usados em diversos contextos ideológicos e, portanto, servirem tanto para uma crítica alienada quanto para uma crítica responsável. Entendo mesmo que,, no futuro, a própria função do contexto humano na constituição do texto será melhor avaliada por meio de métodos basicamente formais. No momento, eles ainda estão, na maioria dos casos, preocupadas demais com o nível puramente lingüístico.
Mas concordaria que estes métodos todos se prestam e uma espécie de jogo de palavras cruzadas, mediante o qual se faz um trabalho que não é crítico, não chega a ser científico e não passa de malabarismo inócuo. E, neste caso, alienado. Como as novidades seduzem, os menos capazes se atiram sofregamente a elas e produzem trabalhos de mera logomaquia, inçados de nomenclatura rebarbativa, como uma cortina de fumaça em torno do vazio. É o que acontece muito por aí. Mas não que a crítica de intenção realmente científica, apesar de todas as suas limitações, seja isto.
Isto posto, concordo que seria preciso desmistificar essas operações mecânicas sobre elementos simétricos, essas extrapolações esquemáticas, essa obnubilação em face dos significados reais. O mal da crítica anterior era o arbítrio sem fundamento. O mal desta é o arbítrio fingindo de rigor.

5, A
exigência do absolutamente novo a todo instante não corresponderia afinal aos valores do consumerismo, que tem no obsolescência programada um dos seus instrumentos mais devastadores?
R. Creio que sim, e vocês já definiram o problema na pergunta. No esforço de renovação, no encanto pela novidade, pode estar uma atitude autêntica de penetração na raiz do nosso tempo mutável; mas pode também estar, consciente ou inconscientemente, a submissão a esse novidadeirismo suspeito.

6. Dadas as nossas condições históricas e sociais, seria incorreto afirmar que a linguagem clara, linear, direta, é muito mais fértil em termos de criatividade?
R. Entendo a pergunta como reação à parolagem que anda solta, tanto na atividade critica quanto na criativa; e neste sentido, acho que é um desabafo justo. Como ficou sugerido acima, é mais fácil esconder o vazio usando um vocabulário arrevezado e forjando estruturas verbais impenetráveis, parque nem todos podem enfrentar o teste da clareza. Eu chegaria a concordar vocês que fugir desta, no nosso tempo, é por vezes um modo de evitar pôr as cartas na mesa e se esconder numa aparente profundidade. Como aliás sempre ocorreu.
No entanto, eu não tiraria a conclusão generalizadora que vocês tiram. A criatividade exige freqüentemente a produção de textos densos, que resistem à compreensão imediata e obrigam a um esforço redobrado, que constitui enriquecimento para quem o faz. Neste sentido, tais textos representam uma luta contra o automatismo, que é a praga maior de toda criação. E não esqueça que o obscuro de hoje é o claro de amanhã.

7. Por que o autor brasileiro ou latino-americano moderno só é objeto do estudo e da reflexão da critica universitária após a sua consagração no Exterior?
R. Não concordo com a pergunta no que toca aos brasileiros. Os nossos maiores escritores continuam pouco conhecidos fora, e o seu tratamento pela critica universitária independe completamente disto. Quanto aos latino-americanos, talvez vocês tenham razão, porque ainda os avaliamos, em parte por tabela, depois que repercutem na França ou nos Estados Unidos.

8. No debate sobre literatura brasileiro, realizado no Teatro Casa Grande, Rio de Janeiro, alguns participantes teriam afirmado que a crítica literária contemporânea, por demasiado científica, teria inibido o escritor nacional. A afirmação é válida?
R. Não lembro bem, mas acho que não foi bem isso o que se disse. De qualquer modo, não creio que uma crítica científica iniba o escritor. São duas atividades diversas. O que pode acontecer é algo diferente: uma corrente reversível entre critica e criação, fazendo esta desejar corresponder às exigências teóricas daquela, e levando aquela a se interessar sobretudo pelos textos que correspondem aos seus pontos de vista.

9. Naquela mesma oportunidade, o senhor se referiu ao êxito recente de alguns livros de memórias, como uma demonstração de que o público brasileiro estaria cansado de vanguarda e experimentação, desejando receber urna literatura mais “referencial”. Diante disso, perguntamos: por que a literatura “referencial” é mal vista pela critica atual, pelo menos a que se situa dentro das universidades?

R. O que disse, no encontro do Teatro Casa Grande, e já tinha dito antes em outros lugares, é o seguinte: o fato da linguagem literária se voltar cada vez mais sobre si mesmo, tomando-se como finalidade, representa, como é obvio, uma negação da literatura mimética, que procura representar o ser e o mundo de maneira identificável. Começada na poesia, esta tendência chegou à ficção. Ora, parece que o homem tem uma necessidade imperiosa de sentir o mundo através da literatura, porque se isto lhe é negado pela poesia e a ficção, ele a procura noutros lugares, como nos livros de memórias, que estão assumindo em certos casos esta função. Sob este aspecto, livros como “A Idade do Serrote”, de Murilo Mendes, ou “Baú de Ossos’, de Pedro Nava, são sofregamente recebidos por leitores, que encontram, no primeiro, uma certa poesia referencial que se perdeu; e no segundo, os valores tradicionais do romance. Uma espécie de metamorfose de gêneros, como diria um critico esquecido, Ferdinand Brunetière.
Quanto ao fato da literatura predominantemente mimética (trata-se, é claro, de grau) ser mal vista pela crítica de hoje, sobretudo universitária, talvez seja porque as obras mais estimulantes do nosso tempo fujam a este padrão. Mas, pondo um pouco de sarcasmo na resposta, poderia ser também porque se prestam menos à parolagem critica em moda, avidamente absorvida pelos universitários, professores e alunos, que sempre tiveram certa inclinação pelo pedantismo e a complicação desnecessária - que funciona como um timbre de nobreza, separando-os do “vulgo ignaro...”

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!