A ciência médica no século XIX

“A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro foi criada em 1832. Desde seus primórdios lutava com sérias dificuldades, sobretudo com a baixa qualidade dos professores e o desaparelhamento dos laboratórios. A primeira reforma digna de nota se deu em 1854, mais de trinta anos depois da fundação da escola. A segunda ocorreu em 1884, como desdobramento da Reforma Leôncio Carvalho de 1879, também conhecida como a reforma do “ensino livre”. Dessas reformas, é importante ressaltar duas coisas. Em primeiro lugar, as propostas de associação do ensino à ciência experimental. Em segundo, a defesa dessa associação como estratégia de profissionalização do médico.

A primeira reforma corresponde à aprovação dos estatutos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. O documento que abriria o debate sobre a reforma de 1854 foi escrito por Domingos de Azevedo Americano (1813-1845), resultado de uma viagem de estudos pela Europa. Influenciado principalmente pela medicina francesa, Americano apresentou um programa para a medicina nacional que destacava a organização do ensino médico, a administração e a organização dos hospitais e o exercício da medicina. Ele apontava, inicialmente, a insuficiência dos exames preparatórios, que correspondiam aos estudos secundários, e preconizava a inclusão de novas matérias a fim de melhor preparar o aluno para os estudos superiores de medicina. Supunha que dessa forma “a profissão se acredita cada vez mais, admitindo em seu seio homens verdadeiramente hábeis, e assim as faculdades adquirem maior crédito e reputação para o público”.

Ele também aconselhava a compra de instrumentos científicos e a criação de laboratórios científicos para demonstrações das lições. Mas Americano não concebia a Faculdade de Medicina como espaço de pesquisas científicas.42 As sociedades médicas seriam o local adequado para elas. No que tocava ao controle da profissão, Americano propunha a criação de um Conselho de Salubridade Pública, cujas funções consistiriam basicamente em disciplinar o exercício da medicina, ponto fundamental para a sua consolidação como profissão. O combate a todas as outras formas de curar, denominadas de forma indiscriminada de “charlatanismo”, seria especialmente feroz nos últimos vinte anos do século XIX, assunto que voltaremos a discutir mais adiante.

Embora afinado com os interesses das elites médicas, o projeto de Azevedo Americano acabou sendo derrotado e substituído pelos estatutos redigidos pelo Visconde de Olinda. Segundo Edler, a análise do período em que vigoraram esses estatutos deixa ver que o governo não tinha um projeto definido para o ensino médico. As aspirações daqueles que sonhavam com a construção de uma escola prática e com a ampliação das instalações da faculdade foram frustradas, pois embora prometidos, tais melhoramentos nunca foram feitos. A forma de contratação dos professores também desagradou os médicos. Embora os concursos estivessem previstos, o governo podia rejeitar os nomes dos aprovados. Isso possibilitava o controle estrito das escolas superiores.

Apesar da reforma ter proporcionado alguns avanços, os problemas do ensino médico não foram corrigidos, como não cansavam de denunciar as Memórias da Faculdade de Medicina da Corte.Faltavam professores, salas de aula, laboratórios e bibliotecas atualizadas. Faltavam até mesmo alunos, pois o aumento do rigor nos exames preparatórios, efeito não esperado da reforma de 1854, afastou os pretendentes à carreira médica. Esta crise do ensino médico seria devida, para Edler, ao descompasso entre a situação real do ensino e os ideais médicos. Este descompasso, por sua vez, revelava a incapacidade da classe médica impor seu projeto profissional, no qual a questão do ensino era peça chave.

Além da conflituosa relação com as outras profissões fundamentais do Império, o bacharel em Direito e o engenheiro, que pareciam gozar de mais prestígio junto ao governo e acabavam por se identificar com ele, há uma outra explicação possível para a pouca força dos médicos na hora de impor seus pontos de vista e que é interna à corporação médica: a discordância sobre os fundamentos teóricos e práticos de seus saberes, que impedia o estabelecimento de uma ciência que tivesse valor pragmático, isto é, que se mostrasse eficiente na resolução dos problemas de saúde pública que afligiam o país.

Esse descrédito do qual os médicos eram vítimas é mostrado em detalhes por Gabriela Sampaio, que estudou as diferentes artes de curar durante o Império. Ela recupera as polêmicas que os médicos científicos travaram nas páginas da imprensa carioca e que revelam o grau de disparidade entre suas práticas terapêuticas. A discussão entre os médicos mostrava como havia pouco consenso entre os procedimentos e os conhecimentos que os orientavam. Não eram raros os casos de denúncias de erros que incapacitavam ou mesmo matavam pacientes. Tal como Edler, Gabriela Sampaio discorda dos autores que exageram o poder dos médicos e tomam a medicina como um corpo de conhecimentos homogêneos e consensuais, diminuindo a importância das divergências internas entre os esculápios. Para esses autores, que defendem a identificação inequívoca entre classe médica e Estado, a influência dos doutores estaria oficializada desde meados do século XIX e estaria expressa na criação da Junta Central de Higiene Pública na década de 1850. Não se quer aqui negar que os médicos gozavam de influência e prestígio junto às autoridades, mas apontar os seus limites.

A própria Junta de Higiene não gozava, contudo, de total apoio do governo. Isso é sugerido por um artigo publicado na União Médica de junho de 1881, mais de trinta anos depois de sua instituição. Em “A Junta de Higiene e as Farmácias”, o autor do artigo (não identificado) reclamava atenção maior das autoridades para a área e pedia a reforma do órgão. De acordo com ele, nos países europeus a higiene pública era um fato, uma função entregue nas mãos de verdadeiros especialistas. As repartições de higiene européias ocupavam lugar de destaque na administração pública. Entre nós, isso estava longe de acontecer; a higiene existiria apenas nominalmente, pois atentados contra a salubridade eram observados em vários pontos do Rio de Janeiro e em outras cidades. Em vista de tais deficiências, autor exigia:

“É preciso que o governo se compenetre dessa verdade: que somente os homens que se dedicam a um ramo especial de estudos podem ter os conhecimentos necessários para solver as questões práticas que se lhe referem. Se a ninguém é dado o ser profundo em todos os ramos do saber humano, claro é que só os profissionais devem ser ouvidos e seguidos sobre as questões de sua especial competência”.

Por essa queixa é difícil crer que os médicos já gozassem de tanta influência sobre o governo. A revista lastimava que os assuntos relativos à saúde pública ainda estivessem entregues aos leigos, que nada entendiam do assunto:

“Donde provém nossa inferioridade [em relação à Europa]? Do enciclopedismo, que nos assoberba. Julgando-se cada um apto a resolver ex-cátedra, todas as coisas conhecidas e algo mais, esquece as palavras do grande épico: ‘Tome conselhos só de experimentados, que viram largos anos, largos meses; que, posto que em cientes muito cabe. Mais em particular o experto sabe’”.

O artigo ainda cita a dificuldade que tem o presidente da Junta em aprovar importantes projetos para a implementação de medidas higiênicas profiláticas que acabariam com a fama do Brasil de país pestífero (fama injusta, segundo o autor). Em 1882, o Barão de Lavradio, presidente do órgão, voltaria a apontar o descaso do governo para com as recomendações de sua repartição. De forma muito cautelosa, visto que o seu antecessor deixou o cargo por conta de disputas com o Ministro do Império, o Barão resume suas dificuldades na União Médica:

“Não acusamos ninguém (...); apenas lamentamos que a execução de certas medidas urgentes, em prol da saúde pública, fosse procrastinada, apesar das instantes reclamações das autoridades sanitárias, preferindo sempre aos grandes interesses sociais os de uma política abstrata, que tanto tem arruinado o país, entorpecendo o seu engrandecimento e progresso, por falta de coerência e unidade e princípios dos partidos que disputam a honra do governo do país”.

Anos depois, em 1889, a imprensa médica continuou lutando contra os “ministros enciclopédicos”, que não ouviam os conselhos dos doutores-especialistas. Na União Médica, reclamava-se contra a suspensão da lavagem das ruas da cidade, o que serviria para manter limpos os canos de águas fluviais, que juntavam lama e exalavam mau cheiro. Essa seria uma medida importante no combate às epidemias.

O governo não era o único que não prestava a atenção devida aos sábios doutores. Fazia o mesmo a população, que recorria a muitas outras práticas de cura de tradição mais antiga. A medicina que se dizia “científica” era última opção a ser cogitada. Mesmo a imprensa, que em geral apoiava as causas médicas, não perdia a chance de destacar e ridicularizar os enganos dos facultativos.

Essa situação começou a ser combatida na década de 1870, período marcado pelo advento do “bando de idéias novas”, no dizer de Silvio Romero, fazendo menção à renovação intelectual que vivia o país. Segundo Edler, uma “nova representação sobre os fundamentos do saber médico, expressa pela noção de medicina experimental, conquistava adeptos principalmente entre os mais jovens médicos”. Difundia-se através dos periódicos médicos citados acima uma proposta de reforma que tinha como maior ambição criar um novo tipo profissional: o especialista que daria solução para certos problemas sanitários que eram obstáculo para o desenvolvimento pleno da nação. Começava a tomar forma a chamada “ideologia da higiene”, ou seja, a pressuposição de que os problemas de saúde exigiam soluções técnicas baseadas na ciência, isentas de paixões políticas e partidárias e, por isso, neutras. Mais uma vez é preciso frisar que essa identificação entre os projetos médicos e os interesses do Estado não aconteceu de forma instantânea e linear. Ao contrário, ela vai se consolidando aos poucos no último quartel do século XIX e começo do século XX.

O que interessa especialmente é a proposta dessa medicina experimental que, segundo seus defensores, estava revolucionando a prática médica na Europa. Tinha-se em mente também as reformas institucionais promovidas no Velho Mundo, que uniam o ensino à produção de saber, sobretudo na Alemanha. Segundo os defensores dessa proposta, a profissionalização da medicina dependia da combinação do método experimental com os temas da saúde nacional, que, no caso, deveriam se restringir ao combate às epidemias, responsáveis pela imagem do país como lugar insalubre.

Mas o que se entende por “medicina experimental”? É comum encontrar na literatura sobre medicina no Brasil a associação entre medicina experimental e microbiologia ou bacteriologia. Faz-se necessário aqui fazer distinção entre esses termos para que se possa avaliar como essa prática científica se introduziu no Brasil. O que apresento a seguir não tem a pretensão de ser uma revisão exaustiva da literatura sobre o assunto. É apenas uma descrição parcial das idéias que circulavam na Europa em meados do século XIX.

Em linhas gerais, a medicina experimental se caracteriza pela noção de ensino prático, pelo ideal universalista, pela defesa da especialização e pela oposição à medicina de base anatomoclínica. O surgimento da medicina experimental está relacionado a transformações amplas no conhecimento médico do século XIX. Buscava-se a explicação teórica da doença calcada em saberes oriundos da física e da química, tidas como ciências experimentais consolidadas. A observação do doente e das lesões causadas pelas doenças (anatomia patológica) passaram a ser consideradas insuficientes para explicar e curar os males que afligiam os homens. As idéias de processo e lei científica, provenientes daquelas disciplinas, foram usadas para conferir um caráter mais científico à medicina. Para Georges Canguilhem, o francês François Magendie (1783-1855), tido como um dos precursores da medicina experimental, realizou um triplo deslocamento em relação à medicina fisiológica de Victor Broussais (1772-1838), que utilizava sangrias e sanguessugas como forma de tratamento: o primeiro, de lugar, levando a medicina do hospital para o laboratório; o segundo, de objeto, do homem para o animal, que seria usado nos testes laboratoriais; e o terceiro, do preparado galênico (obtido a partir d extratos vegetais) ao princípio ativo do remédio isolado pela química farmacêutica.

Magendie preconizava que a fisiologia deveria calcar-se nas ciências físico-químicas. Ele formulou seis diretrizes sobre o assunto: 1) a fisiologia e a medicina ainda não haviam se transformado em ciências porque eram dominadas pelo empirismo e por sistemas contraditórios; 2) a física e a química eram ciências porque se baseavam no método experimental; 3) a física e a química deviam ser a base da fisiologia; 4) a fisiologia devia ser, desse modo, uma ciência experimental; 5) apesar disso, a fisiologia seria uma ciência autônoma em relação à física e à química, e 6) também em relação à patologia e à patologia fisiológica.

Mas Luiz Otávio Ferreira aponta que o surgimento da medicina experimental não está ligado apenas à adoção dos métodos das ciências naturais, mas também à emergência da biologia como um novo campo disciplinar, no qual se destacavam os estudos de forma e função dos processos orgânicos. A biologia, durante o século XIX, confundia-se com a fisiologia, campo de interesse da medicina, o que explica o fato de estudos que dizem respeito a processos funcionais do corpo terem sido realizados por médicos. Segundo Ferreira, isso fez com que aparecesse primeiro entre os fisiólogos (ou fisiologistas) a percepção da necessidade de transformar a medicina em uma ciência de base experimental. Claude Bernard (1813-1878), que considerava ter ampliado o trabalho de Magendie, destacou-se por ter tornado a noção de medicina experimental a pedra angular de seu discurso metodológico. Em 1865 publicou o livro Introdução ao Estudo da Medicina Experimental, algo como um programa de investigações para a disciplina. Como afirma Gustavo Caponi,

“(…) Bernard expone [em Introduction a l’étude de la médecine experimentale], con claridad y precisión hasta entonces inéditas, las condiciones de posibilidad y los marcos metodológicos más generales de ese ámbito de la biología que (...) podemos llamar biología funcional, consiguiendo incluso delimitar, en cierto sentido, el campo donde ese tipo de investigaciones habría de desarrollarse en los ciento cincuenta años siguientes”.

Para Bernard, a medicina experimental compreendia três partes distintas: a fisiologia, a patologia e a terapêutica, sendo a primeira a sua base. Ele considerava a medicina de sua época essencialmente empírica, isto é, baseada na observação. Esta medicina visava conhecer as leis dos fenômenos naturais a fim de prevê-los, mas sem modificá-los ou dominá-los. As ciências experimentais iriam além disso, pois descobririam as leis dos fenômenos para submetê-los à vontade humana. Desse modo, a medicina empírica calcada nos conhecimentos de Hipócrates (460-375/351 a.C.), que acreditava no poder curativo da natureza, apenas estudava as doenças, sem a capacidade de combatê-las. Apesar de apontar as limitações da medicina empírica, Bernard não a rejeitava. Afirmava ele que a observação era parte importante da medicina experimental. Dentro de seu esquema de evolução das ciências, a medicina empírica era o primeiro período da medicina experimental. Mas todos os dados oriundos da observação deveriam ser colocados à prova da experimentação. Em sua época, dizia Bernard, a medicina se encontraria em uma fase de transição do empirismo puro para a observação combinada à experimentação laboratorial.

A cientificidade da medicina seria dada pelo uso sistemático do método experimental. Tanto é que ele designa a expressão “medicina científica” como sinônimo de medicina experimental. Bernard se insurgiu contra todos os sistemas e doutrinas médicos precedentes, afirmando que a medicina experimental não era nenhum sistema novo, mas, ao contrário, era a negação de todos os sistemas:

“La medicina experimental, como por otra parte todas las ciencias experimentales, no tiene que ir más allá de los fenómenos, y por tanto no tiene necesidad de ligarse a ninguna palabra sistemática; no será vitalista, ni animista, ni organicista, ni solidista, ni humoral; será simplemente la ciencia que trata de remontar a lãs causas inmediatas de los fenómenos da vida, en estado de salud y en estado mórbido. En efecto no tiene para qué embarazarse con sistemas que, ni unos ni otros, expresarían jamás la verdad”.

Esses sistemas não conseguiriam expressar a verdade, segundo o autor, porque partiam de princípios ou doutrinas não demonstráveis, mas de idéias subjetivas ou de crenças, tal como a idéia de “atividade ou força vital” presente no sistema vitalista. O problema delas era justamente o não uso da experimentação para demonstrar aquilo que Bernard considerava “ideas hipotéticas o teóricas transformadas en principios imutables. Esta manera de proceder pertence esencialmente a la escolástica, y difere radicalmente del método experimental”.

Fica patente o esforço de Bernard em dar um status científico à medicina por meio do método experimental, que já se achava consideravelmente consolidado nas ciências físicas e químicas.Ele ponderava que a medicina de seu tempo ainda estava longe de ser científica: essa era uma tarefa a cumprir. Daí esse seu livro se assemelhar a uma espécie de programa para a ciência médica, cuja profissionalização passaria obrigatoriamente pela unificação dos conhecimentos. O que também fica claro é que aqueles médicos que não se rendessem ao avanço inexorável da ciência e não adotassem a experimentação como a base da produção de conhecimentos, estariam condenados a serem vistos como meros curandeiros ou charlatães. Explicando melhor: aqueles que utilizassem em seu ofício conhecimentos oriundos da prática, da tradição ou do misticismo, ainda que eficazes, não seriam considerados verdadeiros médicos. Essa idéia com certeza é a que embasava a perseguição ao curandeirismo e seguramente estava presente no Brasil de fins do século XIX, quando os curandeiros passaram a ser tenazmente combatidos pelos médicos.

Em 1878, alguns meses depois da morte de Bernard, o químico Louis Pasteur (1822-1895) apresentava na Academia de Medicina de Paris uma comunicação sobre A teoria dos germes e suas aplicações em medicina e cirurgia. É justo dizer que Pasteur estava dentro desse movimento mais amplo denominado medicina experimental. Todavia, a revolução teórica e prática que levou o seu nome e representou um novo momento na medicina, não foi necessariamente uma continuação das transformações empreendidas pelos fisiólogos. Canguilhem assinala que as teorias de Pasteur não foram imediatamente compreendidas pelos seus contemporâneos, fortemente influenciados pelas idéias de Bernard.

Pasteur formulou por meio da cristalografia, o estudo das propriedades dos cristais, o critério da originalidade do ser vivo, diz Canguilhem. Foi no cristal, matéria morta, que ele encontrou o caminho para solucionar os problemas patológicos do ser vivo. Esse caminho parece ser o motivo da discórdia dos bernardianos em relação às teses pasteurianas. O próprio Bernard divergia da explicação que Pasteur dava sobre as fermentações. Ele julgava as fermentações um fenômeno exclusivamente químico, enquanto Pasteur afirmava que elas tinham um papel fisiológico, pois eram resultado de um ato vital, de um fenômeno de nutrição. Em toda fermentação estaria presente a ação de um micróbio.

Uma diferença fundamental entre as idéias de Claude Bernard e Louis Pasteur pode ser vista na concepção que ambos têm de vida. Para o primeiro, há uma oposição entre os fenômenos da vida, representados pelas sínteses orgânicas, e os fenômenos de morte ou destruição, que são para aquele as fermentações. O segundo pensa a vida como matéria organizada. A morte é simplesmente a destruição dessa matéria, mas não é oposta à vida e sim lhe é intrínseca. As fermentações fazem, então, parte da vida.

A revolução pasteuriana, segundo Vera Portocarrero, foi “um complexo de novos procedimentos médicos instituídos em função de um raciocínio causal”. Neste complexo estão incluídos a identificação e isolamento de microorganismos patogênicos e sua manipulação, métodos profiláticos através da vacina, soroterapia, teoria dos germes, atenuação da virulência dos microorganismos. Também essa revolução responde pela mudança do gesto, da palavra, do vestuário, da arquitetura hospitalar e da legislação de saúde.

Portocarrero frisa que o conceito de micróbio não é o mais importante da obra de Pasteur, e que não teria sido ele o seu formulador. A idéia seria bem anterior. Em 1546, em seu livro “De contagione” (Sobre o contágio), Girolamo Francastoro (1483-1553), postulou a doutrina do “contagium vivum”, que afirmava que o contágio das doenças era provocado por agentes vivos (seminaria). Em 1673, Antony van Leeuwenhoek (1623-1723), a quem se atribui a invenção do microscópio, observou e descreveu o que classificaria como “animálculos” (“pequenos animais”). O médico de Viena Anton von Plenciz (1705-1786), reconhecendo a importância da descoberta de Leeuwenhoek, reforçou a idéia de que os “animálculos” eram os causadores das doenças e que para cada doença correspondia um ser vivo específico.

O conceito de “micróbio” foi cunhado em 1878 por Charles-Emmanuel Sédillot (1804- 1884), como reconheceu o próprio Pasteur. Contudo, na obra deste, o conceito de micróbio não era a questão fundante, era resultado e não condição de possibilidade. Como afirma Portocarrero, a idéia de micróbio era a expressão de um procedimento que associa de forma íntima a biologia, a química, a física e a cristalografia para o estudo dos seres vivos. A questão da vida fez a microbiologia surgir a partir dos conceitos de dissemetria molecular e de fermentação; o primeiro oriundo da cristalografia, e o segundo proveniente da fisiologia. A emergência da microbiologia não se limitou, pois, ao campo das ciências biomédicas.

Uma das teses que a microbiologia ajudou a refutar foi a da geração espontânea. Segundo essa teoria, era possível o surgimento de seres vivos que não provinham de outros preexistentes. A curiosidade sobre a origem dos fermentos levou Pasteur a estudar a teoria da abiogênese. Embora outros cientistas já tivessem realizado experiências que contestavam tal teoria,80 ela retornou no século XIX para explicar a origem de seres diferentes a partir de matéria orgânica inerte. Pasteur realizou experiências que desmentiram a abiogênese e confirmaram que um ser vivo só pode surgir de onde já existam outros atuando.

A microbiologia também abriu novos caminhos na utilização de vacinas, que possibilitaram o avanço posterior da soroterapia, da quimioterapia e da imunologia. A inovação foi o conceito de “vírus-vacina”, um micróbio atenuado ou de “vitalidade modificada”. Embora tivesse recuperado o termo utilizado pelo médico inglês Edward Jenner (1749-1823), que descobriu que as pessoas infectadas com o vírus da varíola bovina se tornavam imunes à varíola humana, Pasteur estabeleceu uma diferença fundamental entre o seu produto e o de Jenner. A vacina de Jenner era de origem animal. No caso específico da varíola, o material para imunização era retirado do gado bovino infectado, daí o nome “vacina” (que significa “da vaca”).

Pasteur, entretanto, produzia a sua vacina no laboratório, através da identificação dos germes que causavam a enfermidade e da atenuação do seu poder infectante. Nesse método, diversas culturas são desenvolvidas com graus diferentes de virulência. Com o desenvolvimento dessas técnicas, deixou de ser necessário recorrer ao sangue de bovinos. Em 1880 ele descobriu que bactérias enfraquecidas ou atenuadas davam proteção contra a cólera aviária e, em 1884, divulgou a confecção de uma vacina contra a raiva.

Eram essas as idéias, descritas aqui de forma panorâmica, que influenciavam os médicos brasileiros. Foram essas transformações em curso na Europa que informaram as reformas do ensino médico brasileiro da década de 1880. Com as breves distinções feitas acima, quis fazer notar que, ao falarmos genericamente de medicina experimental, é preciso separar as idéias dos fisiólogos, que defendiam a introdução do experimentalismo na medicina desde metade dos oitocentos, das defendidas pelos microbiologistas a partir das duas últimas décadas daquele século.”

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Fonte:
JORGE AUGUSTO CARRETA: “O MICRÓBIO É O INIMIGO”: DEBATES SOBRE A MICROBIOLOGIA NO BRASIL – 1885/1904". (Tese apresentada ao Instituto de Geociências como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Política Científica e Tecnológica. Orientadora: Prof.a Dr.a Maria Conceição da Costa Co-orientadora: Prof.a Dr.a Sílvia Fernanda de Mendonça Figueirôa. Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP). Campinas, 2006.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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