A Teologia Judaica do Holocausto

Histórico

"Reflexões religiosas judaicas sobre o Holocausto surgiram durante a própria Segunda Guerra Mundial, em obras elaboradas ainda em guetos e campos-de-concentração. Entre os iniciadores da chamada Teologia do Holocausto se destaca o rabino Kalymnous Kalmish Schapiro, que escreveu um diário com reflexões baseadas na porção semanal da Torá e no que testemunhou no Gueto de Varsóvia. Schapiro foi assassinado em novembro de 1943 e, seu diário, encontrado nas ruínas do gueto. O texto foi posteriormente editado e recebeu o título de Esh Kodesh (Fogo Sagrado). Outra figura de destaque é o rabino ortodoxo húngaro Yissachar Shlomo Teichthal, que escreveu Em Habanim Smehah (A Feliz Mãe de Crianças). Esta obra foi concebida pouco antes de seu assassinato em Auschwitz e chama a atenção por sua postura pró-sionista (uma raridade entre os ortodoxos da época).

Porém, com o final da guerra e a tomada de consciência sobre as reais dimensões do massacre nazista, o horror e a perplexidade tomaram conta dos pensadores judeus e um silêncio sobre o assunto perdurou durante cerca de vinte anos. Os maiores nomes judeus do imediato pós-guerra - como Abraham Joshua Heschel, Martin Buber, Mordecai Kaplan e o próprio Joseph Soloveitchik - conseguiram tratar da Shoá apenas marginalmente em suas obras.

O acadêmico Zachary Braiterman aponta várias causas para este silêncio. Segundo ele, os pensadores judeus que testemunharam o Holocausto teriam vivenciado um “choque psicológico”, do mesmo tipo sofrido por enlutados ou pacientes terminais, que passam por um período de negação e descrença da realidade. Para estes pensadores também faltou o acesso à literatura, filmes, estudos científicos e testemunhos oculares sobre o Holocausto, que algumas décadas mais tarde inundariam a cultura ocidental e ajudariam a criar uma linguagem própria para abordar o nazismo.

Neste ambiente de doloroso silêncio, a publicação de A Noite por Elie Wiesel foi uma exceção. A obra apareceu em edição francesa em 1958 e, dois anos mais tarde, em inglês. É um pequeno livro de memórias, onde ele narra a vida dos judeus na Hungria antes da Shoá, a deportação de sua família, a internação em Auschwitz, a morte de familiares e sua libertação. Apesar de ser, em sua maior parte, uma biografia narrativa, há também algumas poucas reflexões religiosas, mas que marcaram profundamente toda a posterior Teologia do Holocausto. Entre as esparsas reflexões religiosas de Wiesel, destaca-se o trecho do enforcamento de uma criança.

Apesar do impacto desta obra de Wiesel, continuou imperando o silêncio no que diz respeito à reflexão judaica sobre o nazismo. Esta situação apenas se modificaria a partir de 1961, sob o impacto do julgamento do criminoso nazista Adolph Eichmann, em Jerusalém - um verdadeiro divisor de águas para a Teologia do Holocausto. De assunto tabu, a Shoá foi levada ao debate público e passou a ocupar um lugar central na reflexão judaica (e do mundo ocidental em geral). Em 1966, o professor e teólogo norte-americano Richard Rubenstein publicou After Auschwitz, a primeira obra judaica em que o Holocausto aparece como tema central de reflexão.

Rubenstein tem uma história pessoal digna de nota. Nascido numa família judia nova-iorquina em 1924, converteu-se à corrente cristã Unitarista e preparava-se para assumir funções sacerdotais quando retornou ao judaísmo. Matriculou-se no Hebrew Union College, visando tornar-se rabino reformista, mas mudou de posição e formou-se rabino conservador, aos 28 anos, através do Jewish Theological Seminary. Alguns anos depois, doutorou-se em Harvard, com tese sobre a aplicação da análise freudiana em agadot rabínicas.

Em After Auschwitz
, Rubenstein formulou uma teologia de “morte de deus”, inspirada em pensadores cristãos norte-americanos daquela época16. Rubenstein afirma ser impossível conciliar a idéia judaica tradicional de uma divindade benevolente e onipontente, que faz uma aliança com um povo escolhido, com as câmaras-de-gás nazistas. Por conta da Shoá, o pensador rejeitou conceitos clássicos do judaísmo como messianismo, ressurreição e História guiada por Deus.

Para Rubenstein, o Holocausto evidenciou que a divindade se afastou dos assuntos humanos e não há um sentido no Cosmos. Ele propõe em seu livro uma nova religião judaica, inspirada no paganismo, de culto à natureza. O judaísmo, afirma, deve continuar existindo, pois apenas a comunidade humana dá sentido à vida.

Quase concomitante à reflexão de Rubenstein, um novo evento histórico colaborou para transformar a postura dos pensadores judeus em relação ao Holocausto: a Guerra dos Seis Dias, entre Israel e seus vizinhos árabes, em 1967. A expressiva vitória militar israelense teve um impacto na consciência judaica ao redor do mundo, transmitindo um novo sentimento de segurança e auto-estima.

Nas palavras do acadêmico Michael Morgan, a vitória militar “liberou a memória (judaica)” e os pensadores puderam, enfim, confrontar o Holocausto de maneira mais ampla. A experiência dos campos-de-concentração não mais levava a um absoluto sentimento de culpa e embaraço, e nem ameaçava ofuscar toda a tradição e o passado judaicos. Após 1967, a humilhação das câmaras-de-gás pôde ser posicionada antes da vitória militar judaica, que parecia, à época, moralmente justificada como uma ação de auto-defesa.

A partir de então, começaram a surgir importantes reflexões sobre o Holocausto. Eliezer Berkovits completou Faith After the Holocaust logo após a Guerra dos Seis Dias. Outro pensador de destaque foi Emil Fackenheim, que publicou God’s Presence in History em 1970.

Fackenheim nasceu na Alemanha em 1916, formou-se rabino liberal e, logo após a Noite dos Cristais (1938), foi internado durante alguns meses no campo-de-concentração de Sachsenhausen. Após sua libertação, transferiu-se para o Canadá, onde ficou preso durante um ano e meio acusado de “inimigo estrangeiro”. Libertado, assumiu funções de rabino e ingressou na Universidade de Toronto, onde doutorou-se e lecionou Filosofia. Faleceu em Jerusalém, em 2003.

Na visão de Fackenheim, o Holocausto, apesar de sua crueldade única na história da humanidade, não alterou as bases da fé judaica. O pensador reafirmou a existência do Deus de Israel, que redime, escolhe o povo judeu e está interessado nos assuntos humanos. A novidade em seu pensamento foi afirmar que, após o Holocausto, a sobrevivência judaica não é mais apenas uma esperança, mas um dever de cada indivíduo. A Shoá impôs o “614 o mandamento”: os judeus estão proibidos de conceder a Adolf Hitler uma vitória póstuma, permitindo a extinção do judaísmo. É agora uma obrigação manter viva a religião que os nazistas pretenderam destruir."

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Fonte:
Ariel Finguerman: "A TEOLOGIA JUDAICA DO HOLOCAUSTO: Como os pensadores ortodoxos modernos enfrentaram o desafio de explicar a Shoá". (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras. Orientadora: Profa. Dra. Jaffa Rifka Berezin). São Paulo, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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