A colonização e o sertão

Colonização e sertão

"A rigor a relação entre colonizador e indígenas era mais complexa, daí certamente derivando a existência de núcleos de subsistência e de estruturação social à margem do sistema escravocrata. A presença indígena e de seus descendentes na composição étnica da população, na formação das populações sertanejas e de segmentos vinculados à subsistência e à exploração de recursos florestais integra o mundo colonial. Os primeiros núcleos brasileiros surgiram da miscigenação étnica entre portugueses e indígenas e principalmente da assimilação de conhecimentos e técnicas dos indígenas. Recebiam os portugueses a herança de um imenso e milenar saber relacionado à sobrevivência e utilização de recursos da floresta tropical.

Os novos núcleos de origem européia só puderam sobreviver e crescer em condições tão diversas das européias porque, como assinala Darcy Ribeiro,

aprenderam com os índios a dominar a floresta tropical, fazendo deles seus mestres, guias, remeiros e sobretudo fazendo das índias suas mulheres, em quem geraram uma vasta prole mestiça”.

A presença e atuação dos elementos indígenas na formação brasileira estudados por Sérgio Buarque de Holanda, em Caminhos e Fronteiras revelam como as práticas indígenas foram básicas na formação do sertanejo brasileiro.

A conquista do sertão, o embrenhamento por suas matas teve indígenas como seus guias e a presença de nomes indígenas em rios e demais acidentes geográficos é um testemunho deste fato. A nutrição e a subsistência de núcleos portugueses não podia contar com uma regular importação. Tiveram que absorver os inúmeros conhecimentos a respeito das propriedades vegetais, das frutas, das madeiras, das raízes e folhas que eram ao mesmo tempo o medicamento em terras onde não se podia contar com a medicina de origem européia. O apoio indígena à mobilidade portuguesa está patente também “na persistência de vários termos de procedência tupi na nomenclatura de utensílios, ordinariamente de trançado (samburá, jacá, xuã) que se destinam a guardar ou transportar certos objetos no curso das jornadas”. Não é menos significativo que em São Paulo, e nas terras descobertas e povoadas por paulistas, registrou-se a permanência de bilinguismo tupiportuguês em todo o século XVII.

O avanço da colonização portuguesa, por outro lado, implicou na introdução de inúmeros produtos e técnicas européias. O açúcar de enorme importância na viabilização mercantil da colonização é um exemplo. O cavalo, o boi, a ovelha, a galinha e o porco foram introduzidos e disseminados pelos portugueses. A tecnologia em que se baseava a produção colonial, originalmente quase só indígena no que dizia respeito à subsistência foi sendo enriquecida por contribuições européias que lhe emprestaram uma produtividade crescente tais como os instrumentos de metal ¾ machados, facas, facões, foices, enxadas, anzóis, as armas de fogo. Acrescentem-se dispositivos mecânicos pouco difundidos no primeiro século como a prensa que substituiu o tipiti indígena no preparo da farinha de mandioca, o monjolo com que se pilava o milho, o carro de bois, as moendas de espremer cana, a roda d’água, o tear composto, o descaroçador de algodão, a roda de oleiro, os tachos de metal que substituíram o torrador de cerâmica no fabrico da farinha.

As casas melhoraram com a técnica de edificação de muros e paredes de taipa ou adobe para os mais pobres e de tijolos, cal e cobertura de telhas para os mais ricos. O mobiliário se tornou progressivamente mais elaborado deslocando as redes de dormir para dar lugar aos catres; as cestas trançadas foram substituídas por canastras de couro ou arcas de madeira, a que se somaram bancos, armários, oratórios. Incluem-se ainda o preparo de uso de velas, a produção de aguardente. As lâmpadas de azeite, de couros curtidos, novos remédios, sandálias, chapéus e técnicas de tecelagem, que permitiram o fabrico de panos de algodão, generalizaram-se no mundo colonial.

A colonização tinha as suas fronteiras. O fato de existir um Brasil com limites juridicamente definidos não significa que fosse de fato ocupado. A presença dos elementos entrelaçados pela cultura portuguesa com suas pequenas vilas, igreja, fazendas, vendinhas, ocupava uma pequena franja litorânea com algumas poucas entradas pelo interior nos séculos XVI e XVII. Foi através de trilhas indígenas e de todo um aprendizado com o manejo da vida florestal que os bandeirantes adentraram pelo sertão dando origem a época do ouro em Minas Gerais.

Havia um grande sertão com seus núcleos dispersos: certamente pequenos arraiais com uma população de dimensões pouco conhecidas e economia cujas trocas internas constituíam um circuito próprio atrelado a outro mais amplo. Em meio a matas, geralmente em locais de difícil acesso, havia também quilombos. Muitas vezes colonos amparados pelo reconhecimento oficial se depararam com a sua presença. É, por exemplo, um dos episódios da ocupação do vale do Macaé por colonos suíços. Um mundo pouco conhecido dos portugueses e ainda hoje pouco resgatado pela historiografia.

Havia na época colonial um setor genericamente agrupado como área de subsistência, disseminado no sertão e no litoral, travando relações esporádicas com o mercado de onde lavradores se proviam de ferramentas, um acanhado vestuário e sal. No dizer de Caio Prado Júnior, enquanto na grande lavoura se encontrava a exploração em larga escala, disposta em grandes unidades de produção (fazendas, engenhos) que empregavam numerosa mão de obra numa organização coletiva do trabalho, na agricultura de subsistência predominava outro tipo de estrutura tanto em relação à propriedade como nos padrões e objetivos do trabalho. Era, segundo o historiador:

“um setor subsidiário da economia colonial, depende exclusivamente do outro, que lhe infunde vida e forças. Daí o seu baixo nível econômico, quase sempre vegetativo e de existência precária. De produtividade escassa e sem vitalidade apreciável. Raramente encontramos lavouras desta natureza que se elevem acima de tal nível. Em geral, a sua mão de obra não é constituída de escravos: é o próprio lavrador, modesto e mesquinho que trabalha. Às vezes com o auxílio de um outro preto, ou mais comumente de algum índio ou mestiço semi-servil. Excepcionais são neste setor as fazendas”.

Descrição genérica sem localização no tempo carregada de adjetivações pejorativas, como aliás era comum descrever o homem do campo pobre. Além disso trata indiscriminadamente a lavoura de subsistência e aquela destinada ao mercado interno. Pesquisas recentes dão conta de uma dimensão expressiva de formações sociais certamente importantes na viabilização da economia de fazendas vinculadas ao mercado. Elas redimensionam por exemplo a presença da população livre; indicam a existência de propriedades de dimensões diferenciadas e menores do que o latifúndio. Empregavam pequenas quantidades de escravos ou membros da própria família. Apontam para a existência de um regular mercado de alimentos. Segundo João Fragoso:

Os dados populacionais existentes para 1819 pontualizam cabalmente que a sociedade colonial não se resumia a grandes senhores e escravos. Na verdade, a população cativa girava ao redor de um terço do total e, para as áreas ligadas à praça mercantil do Rio de Janeiro (sul-sudeste-sudoeste)

Na Capitania do Rio de Janeiro, Fragoso identifica inúmeras áreas especializadas na produção de aguardente e mantimentos, tais como mandioca e milho. Este era o caso dos Distritos de Cabo Frio e Inhomirim. E a população escrava nestas localidades era 40% do total. Na própria orla da baía da Guanabara encontraríamos áreas dedicadas à produção de mandioca. Minas Gerais com uma população estimada em 612.000 habitantes, com 168.500 escravos (então a maior concentração de escravos do Brasil) destinava suas atividades principalmente para o mercado interno. Em São Paulo, além da agricultura de alimentos havia um grande comércio de mulas e bovinos. Entre l780 e 1800 passaram pelo registro de Sorocaba cerca de 10 000 mulas por ano, número que se elevou para mais de 30.000 entre 1800 e 1826.

No sudeste o mercado interno crescera em função do grande afluxo demográfico, abertura de estradas e constituição de núcleos urbanos vinculados à economia do ouro. O Rio de Janeiro aliava ao seu papel de capital administrativa do Brasil desde 1763 a função de praça mercantil onde se intercruzavam vários circuitos: o internacional, na medida em que era o porto por onde se escoavam as exportações e chegavam as importações e outro interno, ponto de intercessão de rotas por onde fluíam mercadorias procedentes do sul do país e do interior mineiro. Daí o seu caráter urbano com uma população crescente onde, ao lado de ofícios artesanais, despontava uma intelectualidade aberta a influências estrangeiras, inclusive às correntes iluministas e liberais que desafiavam o Antigo Regime.

A rigor devemos fugir à esquemática visão de uma dualidade econômica constituída de um lado pela economia voltada para o mercado onde a circulação de mercadorias se expressava em padrão monetário e outro setor vinculado a pura subsistência e à economia natural. Muito provavelmente havia uma interpenetração destas duas esferas, formando-se circuitos complementares ao dos mercados regulares. Segmentos pobres realizavam certamente inúmeras trocas entre eles próprios e mesmo áreas distantes do mercado estabeleciam com ele alguma relação, de tal maneira que se criava uma cadeia de conexões. Ainda que circulasse pouco dinheiro, em algum ponto próximo de povoados ou neles próprios havia uma venda a estabelecer o contato com outros mercados mais movimentados.

Na segunda metade do século XVIII a produção para o mercado interno sofria uma dupla restrição derivada de um lado da inserção no mercado mundial que se manifestava no elevado índice de produtos alimentares na composição das importações e de outro pelas restrições às atividades manufatureiras impostas pela política metropolitana da qual resultou por exemplo o famoso Alvará de 1785.32 Desde o século XVII se manifestou uma contradição entre o incremento da produção destinada à exportação e a insuficiência do abastecimento alimentar. Várias medidas oficiais tentaram estabelecer a obrigação das fazendas escravocratas produzirem mandioca. Explodiu também nas várias crises de alimentação vividas por centros como Rio de Janeiro e Salvador, como demonstra Francisco Carlos Teixeira em sua tese.33 O problema ganharia proporções ainda maiores no século XIX, quando a grande concentração do setor primário nas exportações limitou a produção de alimentos como escreveu Sebastião Ferreira Soares em 1860:

“Naquelas províncias em que se sente a diminuição dos gêneros alimentícios, não provem ela da falta de braços que se possam empregar nessa lavoura, mas de terem sido eles desviados para a grande cultura dos gêneros mais procurados pelo nosso comércio de exportação.”

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Fonte:
JORGE MIGUEL MAYER: "RAÍZES E CRISE DO MUNDO CAIPIRA: O CASO DE NOVA FRIBURGO". (TESE DE DOUTORADO ORIENTADOR: PROFa. DRa. ISMÊNIA DE LIMA MARTINS - Volume 1). UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE - CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA - DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA - CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA). Niterói, 2003.

Nota
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A imagem (fonte: Revista da Cidade, 1928) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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