“E toda nudez será castigada”

“E toda nudez será castigada”: a demonização dos prazeres da carne na teologia católica

“Como bem lembrou Jean Delumeau (2003), a Igreja, durante muito tempo, teve medo do corpo, que, muitas vezes, como já sublinhado, foi visto como símbolo de devassidão, exageros, desregramentos, pecado, ocupando uma posição inferior na hierarquia que compreendia a mente e a alma. Esta proposição, já no século XV, parece constar de uma pregação de São Bernardino de Siena, registrada em Delumeau, quando se voltou para os perigos nele contidos, afirmando que o “corpo a tal ponto f tido que basta para desfigurar a alma pura e imaculada que nele colocada”.

O franciscano, ao demonstrar horror pela nudez, aconselhava as viúvas a dormirem sempre vestidas, além de declarar os perigos do olhar no contexto das relações conjugais. Nem mesmo após o casamento, sujeito à legitimidade, os noivos se poderiam descuidar. Assim, Siena, segundo Delumeau, alertava:

Olha para mim, vês este olho? Ele não é feito para o casamento. O que tem o olho a ver com o casamento? Toda vez que ele quiser ver orgias, será um pecado mortal, e muito grave. Porque aquilo que é lícito tocar, não é lícito olhar. Para saciar teus olhos desonestos, tu cometes um grande pecado já que queres olhar o que é proibido. Agora dize-me, confessaste isso? Então vai e confessa-te!
(grifo meu).

As palavras do franciscano, diferentemente das prescrições de Erasmo, não desprezavam o toque, ainda que sua pregação não concordasse com o olhar sobre o que era permitido tocar após o matrimônio. De toda forma, ainda assim Siena transformava a visão do corpo – mesmo o do cônjuge – em algo pecaminoso e ilícito. É nesse sentido que, mesmo sob a legitimidade matrimonial, o sexo era visto com cautela, convertendo-se num espaço cheio de reservas, em que a prudência e a supressão dos excessos deveriam imperar, sendo justificado especialmente pela procriação.

Para Delumeau (2003, p. 362, vol. I), ao contrário das religiões e filosofias da Antiguidade greco-romana, o Cristianismo colocou o pecado no centro de suas discussões teológicas. Santo Agostinho, um dos principais teólogos cristãos, entre o fim do século IV e o início do V, associou definitivamente sexo e pecado original. Para o Bispo de Hipona, o pecado assumia duas conotações: ora como ofensa à obra de Deus, ora como uma injustiça, que infringe a soberania divina sobre o mundo e sobre os homens. É nesse sentido que, para o Santo, Deus é duplamente injuriado.

Segundo a concepção agostiniana, Adão e Eva, antes do pecado, estavam com os corpos nus, mas não percebiam, pois eram capazes de controlar perfeitamente “todas as aspirações de seus corpos e notadamente seus desejos sexuais”. Aqui, para Delumeau (2003, p. 466, vol. II), seria uma retomada dos ideais estóicos: o sábio governando suas paixões. Foi a partir da transgressão de Adão e Eva que o pecado entrou no mundo, permitindo que a desobediência às ordens divinas trouxesse a concupiscência, revelada especialmente através da efervescência sexual, entrando em cena e transmitindo-se, daí para frente, de geração em geração. Antes da queda do homem, ambos

[...] tinham pois os olhos abertos, mas não olhavam de modo que conhecessem o que a graça lhes encobria, quando seus membros ignoravam o que é desobedecer à vontade. Ao faltar esta graça, para que a desobediência fosse castigada com pena recíproca, achou-se no movimento do corpo uma desavergonhada novidade, que converteu em indecente nudez e os deixou envergonhados e confusos
(grifo meu).

Vainfas lembrou a perspectiva defendida por Le Goff (1983), quando o historiador francês assinalou que a sexualização do pecado original foi forjada pelo Cristianismo, uma vez que no livro do Gênesis a desobediência de Adão estava ligada ao conhecimento, ou seja, por querer igualar-se a Deus, na busca pelo conhecimento, o primeiro homem sobre a Terra cometeu o primeiro pecado. Os hebreus associavam o pecado original à desobediência, devido ao estímulo da vontade de conhecer – basta lembrar a árvore onde a serpente se escondia – inclusive na distinção dos sexos, sem, no entanto, estar, restritamente, no domínio sexual. Embora Santo Agostinho tenha relacionado, categoricamente, concupiscência e pecado original, o primeiro a sexualizar a narrativa foi o cristão Clemente de Alexandria.

Dessa forma, a toda a humanidade foi transmitido o pecado, consequência da falta de Eva, que, junto com Adão, perpetrou “o ato que corrompeu nossos primeiros ancestrais e, pelo seu contágio, legou-nos a herança do pecado original, que atinge toda a raça humana”.

Além de Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, no século XIII, também se preocupou com as relações sexuais matrimoniais, prevendo que “qualquer que use a cópula pelo deleite que nela há, não conduzindo sua intenção para o fim ao qual tende a natureza, age contra naturam; e a emissão desordenada de sêmen é contrária ao bem da natureza que é a conservação da espécie”. Assim, mesmo no leito matrimonial nem todas as práticas sexuais eram lícitas para os cônjuges. Lana Lage Lima (1990, p. 149), ao analisar manuais de confissão ibéricos da Época Moderna, mencionou as três condições legítimas para a cópula conjugal previstas pelo teólogo Bartholomé Cucala: a intenção de procriar, o pagamento do débito e o impedimento para que o cônjuge caísse em adultério.

Práticas sexuais que objetivassem maior deleite, incitando à sensualidade e ao erotismo, eram condenadas, muito embora fossem menos rigorosamente punidas do que as que buscavam evitar a procriação. No século XVI, Martim Azpilcueta Navarro (1552) defendia que aqueles que se entregavam às variações de posição durante a cópula eram piores que os animais, uma vez que estes tinham no coito seu modo natural. No Manual de Confessores e Penitentes (1552), assim o canonista classificava os atos sexuais:

1. Fornicação simples: entre solteiros sem vínculo de parentesco ou outro entendimento;
. Adultério: quando são casados;
3. Incesto: entre parentes (carnais ou espirituais);
4. Estupro: defloramento;
5. Rapto: cometido à força, contra a vontade da mulher ou de seu pai, sendo esta virgem ou não;
6. Contra-natura: sodomia masculina e feminina, relações anais heterossexuais (Ibidem, pp. 170 e 174).

As medidas contraceptivas, a molície ou masturbação e a bestialidade estavam na categoria dos pecados contra naturam.

Sermões setecentistas preocuparam-se com a vocação para o casamento. Nesse contexto, o sacerdote francês Jacques Bridaine afirmava que o matrimônio “foi instituído não para autorizar a libertinagem, mas para impedi-la; não para acender a concupiscência, mas para frear suas desordens; não para pôr libertinos no mundo, mas para dar filhos à Igreja e eleitos para o céu”. O casamento não deveria ser encarado como espaço para o exercício dos desejos sexuais, para a concretização dos apetites carnais. Era, sim, um espaço de moderação destinado geração de filhos. Mas não filhos “comuns”. Não se objetivava pôr futuros “libertinos no mundo”. Almejavam-se filhos que estivessem em consonância com o que impunham as regras morais da época: honestos, com mentes limpas, ou seja, de acordo com os ditames da Igreja e também do Estado.

Assim, se o sexo, mesmo com fins procriativos, já era em si pecaminoso, as demais práticas sexuais, mesmo dentro do casamento, caíam no domínio do pecado da luxúria, sendo classificadas como fornicação. Tanto os penitentes medievais quanto os manuais de confissão da Época Moderna deram especial atenção aos pecados de natureza sexual, inserindo-os nas considerações sobre o 6º (não fornicarás) e o 9º (não cobiçarás a mulher do próximo) mandamentos da Lei divina, bem como no pecado da luxúria. Segundo Lana Lage Lima (1990), baseada em Le Goff, essa classificação corresponde às noções básicas destacadas pelo historiador francês para a construção de uma perspectiva unificada dos pecados da carne.

Desse modo, a primeira noção era a fornicação, destacada também no Novo Testamento e consagrada no século XIII através do 6º mandamento. Essa prática resumia qualquer ato sexual ilícito, isto é, realizado fora do casamento, ou que fosse indevido, mesmo dentro do sacramento matrimonial. As outras duas eram, segundo Lana Lage Lima (1990, p. 158), a concupiscência, muito utilizada nos textos da Patrística, e correspondendo ao desejo sexual movido pela insurgência da carne contra o espírito; e a luxúria, conceito sob o qual se resumiam todas as transgressões da carne, constituindo-se um dos pecados capitais, fixados no século XII, após um longo período de construção doutrinária que teve início no século V. Daí que, para Foucault (1993, p. 259), a primeira preocupação se centrou na carne, tendo Tertuliano como personagem fundamental da discussão.

O apóstolo Paulo, em suas Epístolas, sistematizou a doutrina do pecado, organizando uma lista de práticas condenáveis. Em pelo menos duas passagens de suas epístolas (I Cor. 6:9-10 e I Tim. 1:9-10) definiu uma lista de pecados que segue uma ordem. Parece, segundo se deduz, obedecer a uma hierarquia em que o lugar ocupado pela sexualidade é bastante relevante. Nas duas passagens, o apóstolo faz referência, dentre outras questões, aos que pecam contra Deus, contra a vida do homem e aos que pecam contra o corpo, ou os chamados fornicadores.

Dessa maneira, os que pecam contra os homens são os parricidas, matricidas e todos os homicidas. Os que fazem contra Deus são os idólatras. E há os que pecam contra o próprio corpo, definido por São Paulo, conforme já salientado, como templo do Espírito Santo. Uma vez que é um local sagrado que não deve ser profanado, o apóstolo questionava:

Então não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não vos iludais! Nem os impudicos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os depravados, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os injuriosos herdarão o Reino de Deus [...]. „Tudo me permitido‟, mas nem tudo me convém. „Tudo me permitido‟,mas não me deixarei escravizar por coisa alguma [...]. Mas o corpo não é para a fornicação e, sim, para o Senhor, e o Senhor é para o corpo [...]. [...] Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei então os membros de Cristo para fazê-los membros de uma prostituta? Por certo, são! Não sabeis que aquele que se une a uma prostituta constitui com ela um só corpo? Pois está dito: Serão dois em uma só carne. Ao contrário, aquele que se une ao Senhor, constitui com ele um só espírito. Fugi da fornicação. Todo outro pecado que o homem cometa é exterior ao seu corpo; aquele, porém, que se entrega à fornicação peca contra o próprio corpo! Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e que recebestes de Deus?... e que, portanto, não pertenceis a vós mesmos? Alguém pagou alto preço pelo vosso resgate; glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo
(I Cor. 6:9-19).

O grupo dos pecadores da carne – ou os adeptos dos delitos de ordem sexual – está, segundo Ariès, subdividido em quatro subgrupos. Aqui, ele nos chama a atenção para a importância da etimologia, já que algumas palavras assumiram um sentido amplo e vago, como é o caso da fornicação.

O primeiro subgrupo é composto pelos prostituídos (fornicarii), que, em grego, corresponde ao termo pornoi. O segundo é constituído pelos adúlteros, cuja origem etimológica (adulteratio) não significaria ato sexual, mas daria uma ideia de “alteração”. Os molles (malakoi) fazem parte do terceiro subgrupo, considerados por Ariès e Foucault os particularmente mais interessantes, uma vez que revelaram algo importante e novo, isto é, se referem às mollities, termo pejorativo que se aproximava da idéia de passividade.

Ariès questiona o significado de mollities, chamando a atenção para o fato de que as expressões que designavam, finalmente, as atividades sexuais, como a fornicação e o adultério, não se referem a órgãos nem tampouco a gestos. Apesar das variações, em neolatim, elas acabaram por designar a masturbação. Sob tal conceito, que não seria de natureza sexual, ou seja, não mais do que as outras, se escondia o erotismo, ou um conjunto de práticas que visavam retardar o coito – e até mesmo evitá-lo – obtendo um prazer mais intenso e duradouro. Questão que não seria admitida pelo apóstolo Paulo, que aí veria o pecado contra o corpo ou in corpus suum peccat.

O quarto subgrupo de pecadores contra o corpo, ainda na divisão paulina, era os masculorum concubitores, ou os homens que dormem juntos, constituindo-se como os únicos pecadores cujo nome evoca categoricamente uma atividade sexual.

A partir de então, passou a haver uma moral sexual que se preocupava com os pecados contra o corpo, com situações que, dependendo do uso ou do abuso das inclinações sexuais, podiam revelar a concupiscência. Assim, existiriam até mesmo atos sexuais tão maus e proibidos, que quase podiam ser equiparados ao homicídio. Foi o contexto em que a homossexualidade difundida e, dentro de certos parâmetros, considerada normal no mundo helênico, se tornou abominável e proibida (ARIÈS, 1982, pp. 52-53).

Na hierarquia de pecados e de suas respectivas penalidades, feita por Dante Alighieri, no século XIV, na Divina Comédia, ainda que o orgulho, a cobiça e a ira ocupassem os principais lugares, os lascivos foram por ele situados logo à entrada do inferno, imediatamente após o limbo. Como colocou Ariès, as penalidades “dantescas” aí ainda eram brandas, se comparadas às dos outros sete círculos. A tempestade dos desejos continuava dominando as almas daqueles que cederam aos seus apetites aqui na terra: “Um lugar privado de qualquer luz que ruge como o mar, na tempestade, quando ventos contrários o castigam”. Assim, “compreendi que a esse gênero de suplício estavam condenados os pecadores carnais que abandonam a razão ao desejo”.

A luxúria não tinha um lugar privilegiado na lista de transgressões da Idade Média. Ocupava o último lugar no rol dos pecados capitais, que contavam com o orgulho na dianteira, seguido de cobiça, ira, avareza, gula e preguiça. Era um tempo em que os sete pecados mortais eram um sistema de ética comunitária em que os derivados da concupiscência eram menos graves que os do ódio. No contexto da ética comunitária medieval, tais faltas pareciam triviais dentro da doutrina do pecado, que foi relativamente representada pela “fábula” do pároco que encerrava os Canterbury Tales, escritos por Chaucer por volta de 1390. O personagem vinculava a luxúria especialmente ao adultério, considerado mais relevante do que qualquer outro erro, e que dizia respeito principalmente às mulheres casadas e aos padres (BOSSY, 1985, pp. 52-53).

No entanto, no século XVI, outra hierarquização de pecados foi proposta. As críticas protestantes à maioria dos sacramentos católicos, dentre eles o do matrimônio, certamente influenciaram, e muito, a nova ordenação dos pecados feita por autores e pregadores da Igreja. Desse modo, os reformados foram vistos pela Contra-Reforma como suspeitos de serem partidários da fornicação, uma das razões mais do que suficientes para que se buscasse conter o movimento. Afinal, a perspectiva de que os protestantes eram defensores da fornicação e que colocavam em xeque a “santidade do casamento”, era uma questão que poderia prejudicar e ruir os propósitos católicos. É importante sublinhar ainda que, mais tarde, Lutero e Calvino acabaram caracterizados, por Padre António Vieira, como “sensuais” e adeptos desenfreados de “vícios e pecados”. Graças a esses fatores, a luxúria ganhou importante notoriedade. Saiu do sétimo e último lugar, passando a ocupar o terceiro, atrás somente do orgulho, que continuou no topo, e da avareza, também promovida (Ibidem, p. 54).

Mais tarde, no século XVIII, o Padre Jesuíta Alexandre Perier, missionário da Província do Brasil, em sua obra Desengano de Pecadores, de 1724, equiparava o luxurioso à besta insaciável, “que quanto mais come, tanto mais se mostra faminta”41. Nesse sentido, à semelhança do proposto por Dante Alighieri, Perier assinalava os quatro diferentes graus das penalidades impostas aos luxuriosos no inferno:

[...] a primeyra he hua‟ escuridão, como hua‟ tempestade nocturna, em que todos gritaõ, e blasfemaõ, sem verem, ou saberem outra cousa, se não, que para sempre sera atormentados [...]. A segunda he hua‟ desordem perpetua, e hua‟ confusa horrorosa [...]. A Terceyra he um cativeyro cruelíssimo, não sô do corpo, mas da alma, athe perderem o seu livre alvedrio [...]. A Quarta he o remorço da consciencia mais terrivel que o mesmo Inferno, poys he um bicho intrínseco, que nunca dorme, e sempre rôe
(Ibidem, p. 242).

Aos luxuriosos, praticantes de uma falta gravíssima no século XVIII - no sumário do livro, vinham logo após os avarentos - eram destinadas, segundo Perier, as mais terríveis penas, para sacrifício não apenas do corpo, mas também da alma, e viveriam numa eterna atribulação no inferno. O livro de Perier (Ibidem, p. 133), obra composta de discursos morais, assinalava ainda que, de todos os sentidos, o mais pernicioso e perigoso para a salvação da alma era o tato. Equiparado a um capitão-general, o toque mais facilmente fazia prevaricar uma alma e precipitá-la no inferno.”


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Fonte:
VERONICA DE JESUS GOMES: "VÍCIO DOS CLÉRIGOS: A SODOMIA NAS MALHAS DO TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO DE LISBOA". (Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre em História. Área de Concentração: História Social. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Georgina Silva dos Santos). Niterói, 2010.

Nota
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