A Física Experimental do início do século XVIII

A Física Experimental do início do século XVIII até a criação do Colégio dos Nobres

A interpretação de fenômenos da Natureza foi um dos maiores motivos de disputa intelectual entre Antigos e Modernos, em Portugal, durante o século XVIII. Segundo Rômulo de Carvalho, alguns temas obtiveram maior destaque nessa disputa: a questão dos acidentes, a questão do vazio, a queda dos graves e a natureza da luz e do fogo.
A questão dos acidentes estava relacionada às características principais da matéria (cor, tamanho, cheiro, peso, estado de repouso ou de movimento, etc). a questão do vazio (que nos dias de hoje chamamos de vácuo) para os filósofos peripatéticos não existia; já os Modernos defendiam sua existência. A queda dos graves remete à discussão sobre a queda dos corpos. E a natureza da luz e do fogo gerava um debate sobre a composição desses elementos. Certamente, um dos grandes divisores de opinião sobre vários temas foi a experiência, em especial de Física, em que os adeptos da filosofia moderna colocavam em dúvida os fundamentos da filosofia peripatética. Porém, não foi no século XVIII que foi descoberta a importância da experiência em Física. Vários pensadores viram na experiência o caminho mais curto para interrogar e encontrar respostas na Natureza. Aos aperfeiçoamentos na realização de experiências muitos historiadores chamaram de método científico.

No século XVIII, a realização de experiências se dava com bastante entusiasmo, principalmente na Física, disciplina pela qual muitos esperavam obter respostas para tudo, acreditando que a Natureza não deixaria de responder ao ser questionada. Porém, em Portugal, antes mesmo de a filosofia moderna adquirir os louros do reino, a realização de experimentos já ocorrera entre os jesuítas, ainda que de maneira sutil.

A influência dos jesuítas
A Companhia de Jesus, ou seguidores de Inácio de Loiola, se instalaram em Portugal no século XVI com um pequeno grupo de religiosos, conquistando a confiança dos governantes portugueses. Dominaram o ensino português por quase duzentos anos; criaram importantes escolas: de nível secundário, o Colégio das Artes, em Coimbra, e o Colégio de Santo Antão, em Lisboa; de nível superior, a Universidade de Évora, em Évora. Os mestres de Filosofia do Colégio das Artes, conhecidos como Conimbricenses, redigiram os compêndios que seriam utilizados nas escolas. Em poucos anos, uma série de volumes constituiu o chamado Curso Conimbricense, que foi redigido em latim, seguindo a doutrina de Aristóteles e São Tomás de Aquino.

O curso conimbricense foi publicado no final do século XVI e nos primeiros anos do século XVII, período em que surge um novo sistema de filosofia natural. A atividade pedagógica do Colégio das Artes era subordinada aos Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1653. Conforme os mesmos, nos três anos e meio de curso os mestres fariam a leitura do texto de Aristóteles no decorrer das aulas.

Em 1712, professores de Coimbra, descontentes com a imposição da filosofia peripatética aplicada nas escolas e adeptos da filosofia newtoniana, que se afirmava em toda Europa, propuseram ao rei D. João V uma revisão nos Estatutos da Universidade. Houve a alteração do curso de Filosofia do Colégio das Artes com o objetivo de ampliar o estudo de Física. Tal solicitação foi indeferida pelo rei através de intimação feita pelo reitor da Uiversidade ao reitor do Colégio, Pe. Domingos Nunes.

O curso conimbricense não admitia inovações de qualquer espécie e, quando havia rumores de mudança no ensino das ciências físico-matemáticas, os reitores combatiam através de editais. Esse foi o caso do edital de 7 de maio de 1746, do Colégio das Artes, o seu reitor, o padre jesuíta José Veloso proibiu tais inovações, especialmente no que se referiam a temas ligados à Física,

“...se-não insine defenção ou opinioes novas pouco recebidas, ou inuteis p.º o estudo das Sciencias mayores como são as de Renato Descartes, Gacendo, Neptono, e outros, e nomeadam.
tequalquer Sciencia, q. defenda os actos de Epicuro, ou negue as realid.esdos accidentes Eucharisticos, ou outras quaisquer concluzõis oppostas as sistema de Aristóteles, o qual nestas escólas se-deve seguir...”

Esta oposição não era consensual dentre todos os elementos que compunham a Companhia de Jesus; alguns membros não estavam aceitando a filosofia aristotélica. Essa discórdia de pensamentos entre os jesuítas já acontecia no século XVII. Um jesuíta que não aceitou a filosofia peripatética foi Valentim Stansel (1621-1705), matemático, que em 1664 e 1665, ao observar a passagem de cometas no céu da Bahia, no Brasil, sustentou que os cometas eram feitos de matéria dos planetas, em particular do Sol, aceitando a corrupção da matéria celeste e contradizendo, desse modo, a astronomia antiga. No entender de Stansel, o cometa é conseqüência das causas naturais, que podem produzir efeitos na Terra apenas por suas influências; e Deus é responsável direto pelos fenômenos que não têm explicação na filosofia natural.

Stansel preocupava-se com a localização do cometa e sua trajetória, que já era um problema bastante estudado pelos astrônomos desde o final do século XVI, contrariando seus colegas, em especial, Antonio Vieira (1608-1697), que também observou a passagem de um cometa no céu da Bahia no ano de 1695. Vieira defendia que os cometas eram uma ação divina anunciando tragédias, como tempestades, pestes, terremotos ou ainda mensagens de caráter político, como mudanças de impérios, mortes de reis e príncipes. Sobre o cometa que apareceu na Bahia, Antonio Vieira escreveu um pequeno discurso intitulado
A Voz de Deus ao Mundo, a Portugal e á Bahia, que tinha significado natural e político. No campo natural, mais uma vez o fenômeno anunciava a desgraça do povo, através de terremotos, fomes, pestes, etc; entretanto, para o jesuíta, o campo político é mais valorizado. Segundo Vieira, o fenômeno tem significados tanto para a Bahia como para Portugal. Para a Bahia, Vieira relata que a forma de espada do cometa representaria um castigo divino aos pecados da Bahia, através de uma guerra devastadora no futuro. A sorte também não estaria ao lado de Portugal, pois no entender do jesuíta o cometa repreenderia o seu estado de injustiça e lembraria o compromisso português com a conquista de novas terras ao mundo cristão.

No século XVIII, outros dois padres jesuítas foram favoráveis à prática da nova filosofia: Inácio Monteiro (1724-1812)
e Manoel de Campos (1681-1758). O professor Inácio Monteiro, em meados de 1754, utilizava em suas aulas no Colégio das Artes seu Compêndio dos Elementos de Mathematica, que podemos classificar atualmente como um livro de Física, com sete volumes, redigidos em latim. Este compêndio de Física foi importante na introdução do ensino das ciências físico-matemáticas no país, quase vinte anos antes da reforma do ensino aplicada pelo Marquês de Pombal. No entender de Inácio Monteiro, os elementos que constituíam a Física eram a observação, a experiência, a razão e o cálculo, não havendo nenhum filósofo que tivesse recebido de Deus o privilégio de não errar. Para ele, o estudante, ao iniciar seus estudos em qualquer ciência, deveria saber estudá-la, com aplicação de um método. Nos seus estudos sobre a Mecânica, citava autores como Galileu, Torricelli, Gassendi, Newton, Leibniz, e colocava dentre as melhores as obras de Desaguliers, Musschenbroek, Regnault, Nollet e s'Gravesande, que foram as principais referências para a organização do Gabinete de Física Experimental da Universidade de Coimbra em 1772. Foi preso em 1759 e logo após foi expulso do país, exilando-se na Itália, onde publicou quatro obras e atuou como professor da Universidade de Ferrara. Em Veneza, publicou três obras: em 1766, Philosophia Libera, seu Eclética rationalis et mecânica sensuum; em 1768, Philosofia rationalis, seu Ars critica orationis dirigindoe; e em 1770, Philosophia rationalis eclética. Methaphysicae in quae generales rerum notiones, principia et leges. Naturaril Theologica atque Psycologia de anima humana disseritur. Em Ferrara, publicou Ethica (1797) sua última obra.

Manuel de Campos foi professor de Matemática do Colégio de Santo Antão, em Lisboa, onde redigiu duas obras:
Elementos de geometria plana e sólida segundo a ordem de Euclides (1735) e Trigonometria plana e esférica com o Cânon trigonométrico linear e logarithimico (1737), ambas em língua portuguesa. Na obra sobre os Elementos de Euclides, Campos faz uma introdução sobre os assuntos tratados apresentando suas demonstrações pelo método dos Modernos. Seu livro sobre trigonometria plana e esférica foi destinado aos alunos do Colégio Jesuíta de Santo Antão, de Lisboa, auxiliando no desenvolvimento e aplicação de em diversas áreas, como em Astronomia ou Náutica, apesar de não ter apresentado em seu livro sobre trigonometria quaisquer aplicações a problemas referentes a estas áreas.

Outro tópico veiculado entre os jesuítas foi o da concepção da natureza da luz
. Aristóteles afirmava que a luz era uma qualidade acidental dos corpos transparentes, sendo revelada pelo fogo do Sol ou de outras fontes. Esta qualidade associada a um meio material (ar) permitia a visão de qualquer objeto. Portanto, a luz não era composta por matéria, era apenas uma qualidade de um meio material. Em sua obra Cursus Philosophicus Conimbricencis (1714), o jesuíta e professor Antonio Cordeiro (1641-1722) defendeu que a luz não era uma qualidade, e que consistia em pequenas partículas lançadas do fogo, do sol ou de um astro aceso.

O próprio padre Antonio Vieira, discípulo de Antonio Cordeiro e defensor da filosofia aristotélica, escreveu que a luz era uma emanação de um fluído corpóreo proveniente do sol ou do fogo, em sua obra
Cursus philosophici, pars secunda, de physica particulari (1739). E o jesuíta Inácio Monteiro afirma que a luz é composta por matéria e movimento, em seu Compêndio dos elementos de mathematica (1754). Como podemos verificar, muitos jesuítas foram favoráveis à natureza corpuscular da luz, contrariando a filosofia aristotélica.

Quanto ao sistema de ensino, em 1754 surgiram novas propostas de reforma
do curso de filosofia. Uma das medidas de maior importância era a de modernizar as disciplinas científicas, dando ênfase aos temas de física. No novo programa, a disciplina de Lógica seria simplificada no primeiro ano e o estudo da Física iniciaria no segundo ano. Na Física, o estudo da gravidade deveria ser explicado através das filosofias peripatética, cartesiana e newtoniana, adotando-se o melhor modelo; velocidade e movimento seriam estudados pela Filosofia Moderna; corpo elástico seria apresentado pelos modelos de Descartes, Gassendi e Newton; a Física Geral deveria ser estudada pelas teorias de Aristóteles, Descartes, Kepler e Newton; os quatro elementos seriam analisados através do tubo de Torricelli, esferas de Magdeburgo e pelos modelos de Descartes, Gassendi e Newton; e ao término do curso seriam abordados eletricidade, magnetismo e geografia.

Todavia, este novo programa ficou guardado numa pequena biblioteca das freiras do Convento de Santa Maria de Semide. No entender de Décio R. Martins, apesar de inovador se comparado aos obsoletos Estatutos da Universidade de Coimbra, o novo programa era moderado e cauteloso."

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Fonte:
ELTON RODRIGUES: "Os caminhos da institucionalização da Física Experimental em Portugal na segunda metade do século XVIII". (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em História da Ciência, sob a orientação do Professor Doutor José Luiz Goldfarb). São Paulo, 2007.

Nota
:
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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