Prisão e Ideologia


Prisão e Ideologia: A pena como aparelho de transformação técnica do condenado

estabelecimento penal contemporâneo no Brasil resultou da adaptação de sistemas penitenciários que se desenvolveram nos Estados Unidos e Europa no final do século XVIII e primeiras décadas do XIX, passando pelo sistema celular e auburniano com a execução da pena de prisão com trabalho sob o confinamento silencioso para se chegar ao atual sistema progressivo. Este percurso de transformação no sistema penitenciário brasileiro pode ser constatado pelos fragmentos da Lei de Execução Penal (Lei no 7210/1984), os regulamentos da Casa de Correção da Corte (Decreto no 8386/1882) e da Casa de Correção da Capital Federal (Decreto no 8296/1910), entre outras normatizações da história da execução penal que os antecederam.

Dentre algumas instituições disciplinares designadas para execução da pena de prisão que funcionaram no Brasil entre os séculos XIX ao XX, esclarecemos quanto a sua finalidade,

A Casa de Correcção da Côrte é destinada á execução de pena de prisão com trabalho. O systema penitenciario ahi adoptado é o de encarceramento cel ular durante a noite, e de trabalho em commum durante o dia [...]; A Casa de Correcção Capital Federal é destinada á execução da pena de prisão com trabalho e da prisão cel ular, emquanto não forem creados os estabelecimentos indispensaveis á pratica do systema penitenciario prescripto pelo Código Penal.

Michel Foucault em
Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão adverte que a “idéia da prisão” preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais e constituiu-se fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram, por todo o corpo social, os processos para repartir/classificar os indivíduos e retirar deles o máximo de tempo e forças, com objetivo de torná-los corpos úteis e dóceis. Nesse contexto, o autor remete-se a existência da prisão anterior à fase da sua institucionalização ù a época em que as prisões funcionavam em espaços disciplinares. Dessa forma, alertando ao fato de que a prisão configurou-se por meio de um “espaço institucionalizado” a partir do século XIX, o que para o cenário do sistema punitivo trouxe a “saída gradual” da prática da exibição do castigo ao corpo do condenado, ou seja, passando ao castigo à alma no interior da prisão.

Este novo sistema de punição se instituiu pela implantação do panoptismo, disciplina e normatização que caracterizam a nova tomada de poder sobre os corpos dos condenados instalada no século XIX, empregados no asilo psiquiátrico, na casa de correção, na prisão e nos estabelecimentos de educação vigiada.

Em palavras foucaultianas as novas características do encarceramento penal, “desde o início do século XIX, recobriu ao mesmo tempo a privação da liberdade e a transformação técnica dos indivíduos”,
esta transformação, por sua vez, continua sendo pretendida através da aplicação dos princípios “da correção, classificação, modulação das penas, trabalho como obrigação e direito, educação penitenciária, controle técnico da detenção e instituições anexas”, que constituem o corpo das técnicas penitenciárias.

O autor ainda ressalta sobre a prisão novecentista,

A prisão não foi primeiro uma privação da liberdade a que se teria dado em seguida uma função técnica de correção; a prisão foi desde o início uma “detenção legal” encarregada de um suplemento corretivo, ou ainda, um empresa de modificação dos indivíduos que a privação da liberdade permite fazer funcionar no sistema legal.

Considerando a interpretação de Foucault para o nascimento da prisão e características do encarceramento penal, esclarecemos que o termo “panoptismo” foi usado pelo epistemólogo francês no “Capítulo III. O Panoptismo” da obra
Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão, publicada na primeira edição sob o título Surveil er et Punir em 1975. Foucault utiliza o referido termo para “reverenciar” o modelo de prisão proposto Jeremy Bentham (1748-1832), que talvez sem ter sido sua intenção, acaba colaborando para a eclosão do “controle social institucionalizado” na sociedade contemporânea através das múltiplas “instituições disciplinares”, a exemplo das escolas, hospitais, prisões, quartéis e outras que carregavam algumas similaridades quanto a sua “estrutura arquitetônica” ou “normas institucionais”. Grosso modo, o termo “panoptismo” derivado do pensamento foucaultiano designa uma das características da sociedade contemporânea ù nomeada por Foucault de “sociedade disciplinar. O referido termo também foi apresentado em 1973 por Foucault no texto “La vérité et les formes juridiques” que fora apresentado em suas conferências na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC/RJ, sendo traduzido em 1996 para o português com o título A Verdade e as Formas Jurídicas.

Além disso, o termo “panoptismo” aparece no capítulo “1972-1973. A Sociedade Punitiva” do
Rèsumé des cours (1970-1982), traduzido em 1997 para o português, sob o título Resumos dos Cursos do Col ège de France (1970-1982). Retomando o modelo de prisão benthaniano, César Barros Leal, observa com relação ao seu proponente:

Jeremy Benthan, filósofo e criminalista inglês, idealizou um modelo de prisão celular, o panótipo, um estabelecimento circular ou radial, no qual uma pessoa, desde uma torre, podia exercer controle total dos presos, vigiando-os no interior de seus aposentos. Ademais, o panótipo não se limita ao desenho arquitetônico, associando-se em seu projeto a um regime caracterizado pela separação, higiene e alimentação adequada, além da aplicação de castigos disciplinares.

Abaixo uma imagem que mostra o modelo de prisão proposto por Benthan no século XVIII.

Ademais eis as palavras de Foucault para “panoptismo”:

O panoptismo é um dos traços característicos da “sociedade contemporânea”, [que pode ser traduzido como] uma forma de poder que se exerce sobre os indivíduos em forma de vigilância individual e contínua, em forma de controle de punição, recompensa e correção, isto é, de formação e transformação dos indivíduos em função de certas normas
ù vigilância, controle e correção.

E complementa afirmando:

O panoptismo é capaz de reformar a moral, preservar a saúde, revigorar a indústria, difundir a instrução, avaliar os encargos públicos, estabelecer a economia como que sobre um rochedo, desfazer, em vez de cortar, o nó górdio das leis sobre os pobres, tudo isso com uma simples idéia arquitetural.

Pelo contexto apresentado questionamo-nos em relação aos motivos que desecandearam as mudanças na forma de tratamento ao condenado que alicerçado na proposta das casas de correções engendrou a instituição-prisão, ou seja, que a prisão se tenha tornado uma instituição de punição que substitui o corpo supliciado do condenado, seja na crueldade do patíbulo ou guilhotina na França ou com açoites, galés e degredo para lugares da África, Índia ou Brasil, para o corpo do condenado a ser custodiado dentro dos muros das prisões. Assevera Foucault que no período que começa a surgir à instituição-prisão com finalidade de privação da liberdade no século XIX, que suas características eram: “O corpo do condenado não deverá mais ser marcado, o corpo do condenado deve ser educado e reeducado, seu tempo deve ser medido e plenamente utilizado, e suas forças devem ser continuamente aplicadas ao trabalho”, ou seja, entrando no entorno do novo sistema punitivo penal a
vigilância, o controle e a correção.

Ruche e Otto Kirchheimer a esse respeito observam que,

A transformação dos sistemas penais não pode ser explicada somente pela mudança das demandas da luta contra o crime, embora esta luta faça parte do jogo. [Há de se considerar que], todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção. É, pois necessário pesquisar a origem e a força dos sistemas penais, o uso e a rejeição de certas punições e a intensidade das práticas penais, uma vez que, elas são determinadas por forças sociais, econômicas e, consequentemente fiscais.

Pela colocação de Foucault, Ruche e Kirchheimer faz-se necessário enfocar alguns fatores para compreensão da edificação das casas de correções no cenário mundial para nos remetermos a análise da concepção de educação contida em regulamentos penitenciários do Brasil. Iniciemos com a interpretação do criminólogo italiano Alessandro Barata quanto à obra
Punishment and Social Strutucture de George Rusche e Otton Kirchheimer, publicada a primeira edição em 1939. A referida obra esclarece sobre as relações existentes entre mercado de trabalho, sistema punitivo e prisão, uma vez que, a indicação epistemológica destes autores compreende o surgimento da instituição-prisão em paralelo ao nascimento da sociedade capitalista:

Na sociedade capitalista, o sistema penitenciário depende, sobretudo, do desenvolvimento do mercado de trabalho: a medida da população carcerária e o emprego desta como mão-de-obra dependem do aumento ou da diminuição da força de trabalho disponível no mercado e da sua utilização. Por outro lado, Foucault insiste sobre a importância do cárcere na construção do universo disciplinar, que a partir do panoptismo, se desenvolve até compreender toda a sociedade.

Embora Rusche, Kirchheimer e Foucault tenham interpretações diferenciadas para analisar o nascimento da prisão, estes autores nos remetem a entender que a força motriz que impulsionou a elaboração de novos códigos penais e regulamentos penitenciários entre os séculos XVI ao XIX, emergiu de interesses econômicos, políticos criminais e sociais de cada país. A esse respeito, argumenta Dario Melossi em se tratando da gênese da instituição penitenciária em países da Europa:

No século XVI, na França, em Flandres, na Alemanha, a queda dos salários reais, correspondentes à chamada “revolução dos preços”, foi acompanhada por uma grande abundância de força de trabalho. A “repressão sanguinária da vagabundagem” é acompanhada por uma repressão complementar, e igualmente desumana, das massas ocupadas. A associação, a greve, o abandono do posto de trabalho eram punidos de forma extremamente severa; fazia-se largo uso da pena da
galera, multiplicando-se as casas de correção. Em Paris, onde havia sido criado um verdadeiro royaume des truands, os vagabundos chegavam a representar um terço do total da população.

Pelo contexto aludido, é possível perceber que as casas de correções equivalem a uma espécie de embrião das instituições penitenciárias do século XIX, residindo seu discurso ideológico na premissa de preparar os homens e mulheres,
“em particular os pobres e proletários a aceitar uma disciplina que os transforme em dóceis instrumentos da exploração”.

Neste sentido, Melossi contribui com a presente discussão, ao afirmar,

Os pobres, os jovens, as mulheres prostitutas passam a enchem, as casas de correção, no século XVII. São eles as categorias sociais que devem educados ou reeducados na laboriosa vida burguesa e nos bons costumes
ù sendo indispensável ao sistema capitalista substituir a velha ideologia religiosa por novos valores e novos instrumentos de submissão.

Insurge, então, na entrada do século XIX, um exército de técnicos nos estabelecimentos penitenciários que substitui o “carrasco” que tinha como função exercer o cumprimento da pena do condenado pelo suplício de seu corpo, entrando no cenário do “tratamento penitenciário”: “capelães, educadores, guardas, médicos, psicólogos, psiquiatras, funcionários da administração penitenciária e outros”,
o que pode ser entendido como uma estratégica para justificação ao notório discurso da Escola Positiva Penal, ou seja, a proteção ou defesa da sociedade. Em outras palavras, o homem criminoso para a respectiva escola penal passa a ser visto como um organismo biológico constituído pela personalidade biossocial e condições biopsíquicas. Com efeito, o surgimento da casa de correção que a princípio tem o objetivo de limpar as cidades de vagabundos e mendigos, provavelmente em Bridewel /Londres por volta de 1555, tem o seu marco quanto à primeira instituição criada com a finalidade descrita.

Comentam Rusche e Kirchheimer quanto às características da casa de correção:

A essência da casa de correção era uma combinação de princípios das casas de assistências aos pobres (poorhouse), oficinas de trabalho (workhouse) e instituições penais
ù sendo seu objetivo principal transformar a força de trabalho dos indesejáveis, tornando-a socialmente útil. Através do trabalho forçado dentro da instituição, os prisioneiros adquiriam hábitos industriosos e, ao mesmo tempo, receberiam um treinamento profissional, uma vez que, esperava-se que eles procurariam o mercado de trabalho voluntariamente. Além dos presos sentenciados com penas longas, outras classes sociais eram trazidas para as casas de correção: crianças, desempregados, mendigos aptos, prostitutas, vagabundos, entre outros. [.
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Fonte:
ELIANE LEAL VASQUEZ: "SOCIEDADE CATIVA. ENTRE CULTURA ESCOLAR E CULTURA PRISIONAL: Uma incursão pela ciência penitenciária". (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em História da Ciência, sob a orientação do Prof. Dr. Ubiratan D’Ambrosio). São Paulo-SP, 2008.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Um comentário:

  1. Você mudou bastante o estilo do blog cara. Achei que sacanear o darwinismo fosse XD algo quase com possibilidades infinitas n____n

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