Hindus: que identidade é essa?

Para os hindus, a mãe, a terra e a pátria são imagens que se confundem e podem ser sintetizadas na figura de Gai Mata ou Vaca Mãe. O Egito, a Mesopotâmia, a Suméria e os povos hindu-europeus têm na vaca o símbolo da terra nutriz. Na Índia, principalmente, sua veneração permanece extremamente forte, dada sua íntima relação com o arquétipo da mãe fértil, que desempenha um papel cósmico e divino. Em finais do século XIX, os britânicos que ocupavam o território indiano, através de seu tribunal, despenalizam aqueles que abatem vacas. Não sendo um objeto sagrado, não pode ser protegida pelas leis do Estado. Essa decisão fez nascer um movimento não apenas contra os muçulmanos, mas também contra os cristãos “comedores de carne de vaca”.

Como deusa, Gai Mata expressa uma relação sagrada entre mãe e filho, que está no cerne do nacionalismo indiano. Além disso, miticamente, essa deusa evoca outras deusas, que a ela se assemelham. Todas fazem parte de uma linhagem daquelas que têm filhos, mas são solteiras ou, mesmo sendo mães, se mantêm virgens. São também viris, guerreiras, matam demônios; boas e más; quentes e frias; estão presentes entre um mundo e outro e em momentos de crise. Subjacente a essa imagem, há o fato de que o movimento de proteção à Gai Mata elaborou o discurso de que todo indiano é filho da mesma mãe: a Índia. É o amor recíproco entre mãe e filho que faz dela uma guerreira capaz de tudo para proteger suas crias, mas também capaz de matá-las para vê-las renascerem. A Shakti – princípio feminino de todas as divindades – será essencial, segundo militantes do movimento nacionalista – como Mahatma Ghandi –, para renovar o cosmos. É ela que aglutina os valores ideológicos fundamentais para se constituir em território indiano o que Benedict Anderson denomina “comunidade imaginada.”

Para que o movimento em defesa da Vaca Mãe e o conseqüente movimento nacionalista ganhassem em força e expressão numérica, foi importante a presença dos eremitas peregrinos que, em suas andanças pela Índia, colaboraram para divulgar as insatisfações contra o governo colonial e reunir indianos de diferentes credos em torno de um único propósito. Nem mesmo muçulmanos ficaram indiferentes à importância mítica da deusa para aquele país. Assim, em 1920, os hindus conseguem uma legislação que proíbe o abate de vacas.

Gandhi, hindu ortodoxo e universalista, a partir dos anos 40 do século XX, procura alcançar o máximo da espiritualidade através da shakti: jejuns, práticas ascéticas, desvirilização e sacrifícios, comportamento que cada vez mais o aproxima da figura feminina. Acreditava na não-violência como a virtude feminina que deveria ser o traço fundamental da identidade indiana, em contraposição à virilidade expressa dos britânicos. Essa imagem motivadamente feminilizada é evocada para criar um sentimento de pertença à nação indiana. Diferentemente das nações ocidentais, esse sentimento de nacionalidade nasce atrelado a uma expressão religiosa e ao mito do feminino, mas se constitui num denominador comum poderoso, capaz de ligar sujeitos tão diferentes em torno do amor incondicional à Gai Mata. Desse modo, a imagem da deusa é transformada num discurso religioso que desemboca num idioma político; filhos de uma nação que têm inimigos comuns: ingleses cristãos e muçulmanos. Quanto aos ingleses, os indianos não os concebiam como um Estado colonial neutro e secular. Ao contrário, eram vistos como cristãos fundamentalistas. Para os ingleses, o cristianismo protestante era sinônimo de civilização; os que tinham uma concepção religiosa politeísta, como os hindus, eram tidos por bárbaros. Para Peter
van der Veer, a religião foi crucial na formação da identidade nacional, tanto da Índia quanto da Inglaterra moderna e secular. Enquanto não fosse cristianizada, a Índia estaria fora da História, visto que os britânicos eram os agentes dessa História. Como o olhar para o território indiano fosse absolutamente ocidental, era impossível ver ali racionalidade, liberdade e desenvolvimento econômico. Por isso, na concepção de James Mill, a Companhia das Índias Orientais tinha por tarefa empurrar a Índia para a História. Ou seja, civilizá-la nos moldes ocidentais: cristianismo, economia e educação eram modelos a ser implantados. O sistema educacional teria como proposta produzir “uma classe de pessoas” indianas no sangue e na cor, mas inglesas no gosto, na opinião, na moral e no intelecto. De acordo com Veer, Mill e Thomas B. Macaulay tinham a crença utilitária de que o sistema educacional inglês aniquilaria o hinduísmo e levantaria os hindus de seu profundo sono oriental.

Em O último suspiro do Mouro, Aurora, Indira Gandhi e Uma Sarasvati
desempenham o papel da deusa-mãe, em momentos distintos da história da nação indiana ou, se se considera o Mouro como uma alegoria da nação, na trajetória do narrador. De todos os filhos, Moraes foi o único a quem Aurora alimentou com seu leite, mas também o único a quem expulsou de seu paraíso. Ainda que a idéia de nação esteja fortemente atrelada à imagem da mulher nutriz, é no filho que Aurora reconhece sua obra-prima, à revelia do aleijão que o estigmatizara:

Até uma obra-prima pode ter um borrãozinho.” Com essas palavras, minha mãe assumiu a responsabilidade da artista por sua obra; aquela minha mão-maçaroca, aquele monstrengo tão deformado quanto qualquer obra de arte moderna, tornou-se um mero descuido do pincel de um gênio. Então, numa demonstração adicional de generosidade – ou seria um ato de mortificação da carne, um castigo que ela se impunha por sentir uma repulsa instintiva? –, Aurora me deu algo ainda mais precioso. “Para as meninas, a mamadeira da senhorita Jaya servia”, anunciou ela. “Mas o meu filho sou eu mesma que vou amamentar.” Não discuti; e abocanhei-lhe o seio com força. (p. 157)

Na Índia, amamentar tem uma significação singular; funciona como um ato religioso entre mãe e filho. É sinal de adoção e de conhecimento supremo. Nenhuma literatura sagrada celebrou o leite mais do que a Índia. E é através do aleitamento que Aurora estabelece uma relação sagrada e, ao mesmo tempo, perversa com o filho. E isso espelha o contexto indiano. Como modelo de mãe, ela o projeta à imagem e semelhança de seus desejos e o aprisiona nas teias de sua vaidade. É como se, na condição de colonizadora, como fora a Inglaterra, Aurora pudesse fazer do filho um objeto manipulável, submisso às suas vontades. Contudo, a presença de Uma Sarasvati reverte esse processo de colonização materna, ocidental, e conduz o olhar do Mouro para uma Índia aberta, múltipla, cuja formação identitária não está atrelada a uma concepção essencialista e racional, como postulado pela Inglaterra.”

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Fonte:
Telma Borges da Silva: “A ESCRITA BASTARDA DE SALMAN RUSHDIE”. (Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Literatura Comparada. Área de Concentração: Literatura Comparada Linha de Pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural Orientador: Prof. Dr. Wander Melo Miranda). Belo Horizonte, 2006.

Nota
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