A Literatura de Cordel

O Cordel

"Cantoria e cordel podem ser considerados como duas manifestações artísticas
inseparáveis. Um e outro têm a mesma fonte: são essencialmente orais. Claro que literatura de cordel, como o próprio nome indica, tem mais relação com a escrita. Mas ambas são literatura oral, compostas para serem declamadas. A esse respeito convém conferir o que diz a pesquisadora francobrasileira Idelette Muzart-Fonseca dos Santos. Sobre a peculiaridade do cordel brasileiro ela assim afirma:

O que é característico, o que é inovador no Brasil é esta passagem da prática da cantoria sobre as narrativas tradicionais da oralidade e de alguns livros que tinham sido publicados para a versificação. A partir disso cria-se uma literatura de mascate, de cordel, folhetos de feira (que é a denominação popular), em um processo extremamente original. (...) No século XIX, fim do XVIII, eu encontrei apenas um folheto. Existem outros em Portugal que são em verso, mas a enorme maioria está em prosa, assim como na França. Então nós temos uma originalidade profunda da literatura de cordel brasileira que está em verso. Isso significa que ela está ligada à voz. É por isso que se diz que o folheto é a escritura da voz. Historicamente, isso foi verdadeiro, pois havia composições orais que depois eram passadas para a escrita. (...) Depois, muito rapidamente a criação foi diretamente escrita, mas sempre conservando esta dimensão da voz, pois a voz dá a sonoridade, o ritmo e a vida à escrita do cordel. (...) No Brasil há uma originalidade profunda da literatura de cordel, essa escrita que mantém a relação com a voz e ao mesmo tempo não hesita em utilizar técnicas mais recentes disponíveis no mercado. Isso acontece no final do século XIX, durante o século XX e agora, mais recente, com poetas escrevendo e vendendo na internet.

Isso para dizer da característica marcante que essa expressão artística adquiriu no
Brasil, tendo como suporte a voz. Conforme Sandroni, os folhetos surgiram e desenvolveram-se através de performances orais,

não apenas “faladas”, mas também “cantadas”. Eles eram vendidos nas feiras e praças com a ajuda do chamariz constituído pela melodiosa recitação feita por seu editor e/ou vendedor. Depois, em casa, eram de novo cantados por algum membro da família que sabia ler, para deleite e proveito dos ouvintes, incluindo os que não sabiam ler.

Sandroni ainda se refere à convergência entre o cordel e a cantoria: os grandes
improvisadores repentistas tiveram na literatura de cordel o meio de formação para a sua poética. O verdadeiro cantador de repente aprendia de cor folhetos inteiros. Além disso, o modo de composição de ambas as expressões é similar: “As principais formas poéticas empregadas na cantoria, tanto no que se refere à métrica, quanto aos esquemas de rimas, são encontradas também na poesia de cordel. Existe também uma grande similitude de temas entre as duas formas de expressão. Nessa perspectiva o pesquisador norte-americano Mark Curran declara:

A ligação da literatura de cordel com a poesia oral e improvisada o duelo-
performance poético e folclórico de dois cantadores, com sua estrutura básica de dasafio-resposta – e com os temas tradicionais folclóricos é só uma faceta de seu papel de meio impresso muito difundido no cenário urbano, mas de grande relevância no cenário rural.

O cordel e sua relação com a cantoria, de fato, representa apenas uma faceta de sua riqueza temática. Alguns estudiosos tentaram delimitar essa expressão em alguns ciclos temáticos, como se pontuará logo mais. Antes convém citar o modo como Curran apresenta a
literatura de cordel, mencionado alguns de seus temas.

A literatura de cordel é uma poesia folclórica e popular com raízes no Nordeste do Brasil. Consiste, basicamente, em longos poemas narrativos, chamados “romances ou “histórias”, impressos em folhetins ou panfletos de 32 ou, raramente, 64 páginas, que falam de amores, sofrimentos ou aventuras, num discurso heróico de ficção.
Esta é uma parte significativa do cordel em termos de número de poemas publicados, mas nem de longe representa todo gênero. Um segundo tipo de impresso, o folheto com oito páginas de poesia circunstancial ou de acontecido, também contribui para o corpus total, completa o quadro o duelo, chamado “peleja”, “desafio” ou termo equivalente. Assim, o cordel tem características tanto populares quanto folclóricas, ou seja, é um meio impresso, com autoria designada, consumido por um número expressivo de leitores numa área geográfica ampla, enquanto exibe métricas, temas e performance da tradição oral. Além disso, conta com a participação direta do público, como plateia.

Quanto às origens dessa expressão que Curran denomina de “popular e folclórica”, de acordo com Diegues Júnior, remetem às “folhas volantes” ou “folhas soltas” lusitanas, que eram vendidas em Portugal “nas feiras, nas romarias, nas praças ou nas ruas; nelas registravam-se fatos históricos ou transcrevia-se igualmente poesia erudita.
Chegando aqui encontrou terreno fecundo no Nordeste e fez o sincretismo entre os mitos indígenas e as narrativas africanas, gerando, como afirma Carvalho, “um conjunto fantástico que envolve amor, luta, mistério e fé. Além disso, segundo Slater, em Portugal, a literatura de cordel, por um tempo, foi associada a “uma ordem torpe e plebeia”, e as estórias nela contidas eram conhecidas também como literatura de cego. A autora assim escreveu:

Ninguém sabe exatamente quando, em que quantidade e sob quais condições esses
livros penetraram no Brasil-colônia. É provável que, como suas contrapartidas espanholas, tenham chegado com os primeiros colonos, mas é difícil garantir. Há provas de que a filial no Rio de Janeiro da Livraria Garnier, uma das editoras importantes de livros da França, conhecidos como littérature de colportage, começou a importar literatura de panfletos portugueses em meados do século XIX. As velhas estórias acerca de Carlos Magno, da Princesa Magalona e do Soldado Jogador tornaram-se assim rapidamente acessíveis aos leitores brasileiros da época. Apesar de ser provável que versões tantos orais quanto escritas dessas estórias circulassem no Brasil desde muito antes, o certo é que o folheto nordestino aproveita muito dessas importações do século XIX.

Saber a origem de tudo é sempre um desejo do homem que deseja conhecer e
resolver suas dúvidas. Mas nem sempre isso é possível. Quanto à precisão de quando, de fato, o cordel chegou por aqui é mais razoável apostar nas evidências e nas probabilidades, como indica Slater. Nesse sentido, mais do que o esforço pela exatidão, parece mais sugestivo e importante tentar compreender o significado desta expressão herdada do colonizador, bem como seu papel artístico e social na cultura brasileira. No que tange à força do cordel principalmente no Nordeste do país, Diegues Júnior assim defende:

No Nordeste, por condições sociais e culturais peculiares, foi possível o surgimento da literatura de cordel, de maneira como se tornou hoje em dia característica da própria fisionomia cultural da região. Fatores de formação social contribuíram para isso; a organização da sociedade patriarcal, o surgimento de manifestações
messiânicas, o aparecimento de bandos de cangaceiros ou bandidos, as secas periódicas provocando desequilíbrios econômicos e sociais, as lutas de família deram oportunidade, entre outros fatores, para que se verificasse o surgimento de grupos de cantadores como instrumento do pensamento coletivo, das manifestações da memória popular.

Nessa perspectiva, Luiz da Câmara Cascudo denomina a literatura de cordel de a
“literatura do povo.” Para ele a literatura oral, possuindo a característica de transmissão verbal, é anônima, visto que “seus elementos de formação constituem multidão, vindos dos horizontes mais distantes e das fontes mais variadas. A oralidade modifica, determinando versões locais, adaptações psicológicas e ambientais. Para ele, a literatura de cordel ou literatura popular é “reflexo poderoso da mentalidade coletiva em cujo meio nasce e vive, retrato do seu temperamento, predileções, antipatias, fixando o processo de compreensão, do raciocínio e do julgamento que se tornará uma atitude mental inabalável. É o que se poderia chamar de tecido social da história do povo e sua peculiar visão do mundo.

Sabendo da peculiaridade desta manifestação cultural no Brasil, é importante
também pensá-la em contextos e lugares antes de chegar aqui. Diz-se que na Espanha este mesmo tipo de literatura era chamado de pliegos sueltos. Essa denominação passou à América Latina como hojas e corridos, através dos quais se veiculam “narrativas tradicionais e fatos circunstanciais – exatamente como a literatura de cordel brasileira. Na França o mesmo fenômeno era denominado de littèrature de colportage, “literatura volante, mais dirigida ao meio rural, através dos occasionannels, enquanto nas cidades prevalecia o canard." Outra fonte desta manifestação poderia estar na Alemanha, e data dos séculos XV e XVI:

Na Alemanha, os folhetos tinham formato tipográfico em quarto e oitavo, de quatro
a dezesseis folhas. Editados em tipografias avulsas, destinavam-se ao grande público, sendo vendidos em mercados, feiras, tabernas, diante de igrejas e universidades. Suas capas (exatamente como ainda hoje, no Nordeste brasileiro) traziam xilogravuras, fixando aspectos do tema tratado. Embora a maioria dos folhetos germânicos fosse em prosa, outros apareciam em versos, inclusive com indicação, no frontispício, para ser cantado com melodia conhecida na época.

Isso para dizer que o cordel brasileiro tem uma tradição atrás de si, e seu poder
“encantatório”, seu significo artístico e social vem de longa data. De novo se pode recorrer a Zumthor, quando ele ressalta o lugar dos “intérpretes” medievais: daqueles homens de outrora, portadores da voz poética, os quais tinham a vocação de proporcionar o prazer do ouvido para suas plateias. De modo que se pode inserir cordelistas e cantadores de todos os tempos na mesma linhagem desses homens, que fizeram de sua voz e de seu corpo a expressão da palavra poetizada.”

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Fonte:
ANTONIO IRAILDO ALVES DE BRITO: "POÉTICA SERTANEJA: ASPECTOS DO SAGRADO EM PATATIVA DO ASSARÉ". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, Cultura e Regionalidade da Universidade de Caxias do Sul, para a obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Jayme Paviani). Caxias do Sul, 2009.

Nota
:
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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