Nordeste e territorialidade

“Partindo de uma perspectiva política e econômica, a formação do Nordeste e de seus limites territorial-administrativos é carregada pela própria história do processo econômico-político nacional e de suas diferenciações. O sentido de região para o Nordeste brasileiro foi possível em meados do século XIX, concretizando no século XX tanto pela situação de limites geográficos como pela articulação de um sentido identitário-territorial para a região, a partir de características aceitas pela manipulação de idéias favoráveis a exploração do território e a permanente dependência deste em relação a um dominador externo identificado como um outro território de expressão de poder, no caso a região Sudeste (Paulino, 1992, p. 51-53). De acordo com Souto Paulino (1992), dentro dos limites do que se conhece hoje como Nordeste, existia, no período colonial, regiões de expressão muito limitadas, sendo reconhecidas àquelas que se dedicavam a produção do açúcar, enquanto a demais eram relegadas por sua pouca relevância econômica. Esta situação repete-se em outros ciclos econômicos, tais como o do algodão e o da pecuária.

Um dos principais aspectos relacionados à região está ligado às condições climáticas pouco favoráveis ao desenvolvimento de uma economia ligada à lavoura. A seca torna-se um flagelo associado à imagem de Nordeste a partir da grande estiagem do ano de 1877, a qual toma dimensão nacional através da divulgação nos jornais e discussões públicas e políticas sobre o assunto. Porém, antes de adentrar com mais profundidade nesta questão, destaco o processo de colonização da região, que apesar de incipiente, trazia consigo o mesmo sentido de extrativismo e exploração de recursos naturais levados à exaustão, em contraponto ao equilíbrio instintivo adotado pelos primeiros habitantes da terra de origem indígena.

A primeira luta do homem desbravador foi com o indígena, pela posse das terras mais frescas. nos baixios, nos vales e nas serras. E sabem todos como os índios resistiram em defesa de suas terras ricas em caça e frutas e apropriadas à sua incipiente lavoura. O fenômeno das secas toma contorno de importância sendo incluso nos documentos oficiais, entrando no discurso regional, depois que os colonos penetram os sertões e as fazendas de criar e acusam os prejuízos sofridos
. (Paulino, 1992, p. 60).

Este são apenas alguns dos primeiros indícios que se revelam sobre a situação regional, importante de ser averiguada que os problemas que atestaremos como peculiares à região são postos em xeque a partir de um resgate da formação dos valores imaginários e subjetivos que veremos a seguir.

Ao anunciar um olhar regionalista antes de penetrar nas questão relativas a territorialidade, tenho por objetivo solver a princípio as incertezas que são postas em relação ao sentido histórico da formação do Nordeste, para que por fim compreendamos melhor como a idéia desta região e as existências e relações humanas são efetivadas neste espaço. Neste esforço, recorro ao trabalho de Durval Muniz de Albuquerque Junior, “A invenção do Nordeste e outras artes”, para ter como ponto de sustentação inicial a história, mesmo que esta passe a ser lugar de todas as coisas, inclusive das espacialidades como atesta o próprio autor. (Albuquerque Jr, 2001, p. 41) Como vimos anteriormente, a partir da segunda metade do século XIX surge um discurso regionalista em reação as medidas de centralização política pospostas pelo Império que vão de encontro a ideais provincianos. Este regionalismo atinge seu ápice na década de 20 do século XX quando este regionalismo extrapola as fronteiras dos Estados em busca de um espaço maior, onde o advento dos artifícios mecânicos possa se espalhar.

O espaço perde, portanto, sua dimensão natural e geográfica frente à dimensão histórica artificialmente criada pelo homem. O crescimento acelerado das cidades, a rapidez dos transportes e das comunicações, e por fim, o trabalho realizado por meios artificiais quebra definitivamente o equilíbrio natural conhecido até então, fruto da experiência acumulada (Albuquerque Jr, 2001, p. 47). Urge então novos reordenamentos, e é ai que surge um novo discurso para o Nordeste, instituindo para o restante da nação uma produção imagético-discursiva sobre esta região. Estando mesmo o território nacional dividindo ainda entre o Sul com superioridade étnica e econômica – e o Norte – subordinado e mestiço – , a seca de 1877 desencadeia uma mobilização de caráter político tendo sob ótica a exploração do fenômeno natural como forma de compensar a decadência de duas das atividades econômicas principais da região, o açúcar e o algodão. Surge assim a imagem de uma área miserável, sofrida e pedinte, instituindo também seus porta-vozes. Em seu trabalho, Albuquerque Jr. nos revela um Nordeste que surge na paisagem imaginária do país.

Fundada na saudade e tradição, o autor nos expõe uma região que é uma espacialidade fundada historicamente, tendo como gênese uma tradição de pensamento, uma imagística e textos que lhe concede realidade e presença. Um Nordeste que parece estar sempre no passado, sendo reconstituído constantemente pela memória. É a região para onde se quer voltar, pois é um espaço imutável e guardador de sentidos de lugar, de amores, de família. Um espaço que é lugar para relações de alegria e tristeza, que se organizam de acordo com as circunstâncias históricas, sociais e culturais que predominem em cada situação vivida. Porém, uma região ainda marcada pela manipulação de conceitos e articulação de elementos imagéticos de acordo com interesses vigentes ligados a forças de poderes institucionalizados e reproduzidos em expressões da literatura, da música e das artes visuais. Dentro deste contexto, a possibilidade de destacar-se uma identidade regional parece comprometida:

A procura por uma identidade regional nasce da reação a dois processos de universalização que se cruzam: a globalização do mundo pelas relações sociais e econômicas capitalistas, pelos fluxos culturais globais, provenientes da modernidade, e a nacionalização das relações de poder, sua centralização nas mãos de um Estado cada vez mais burocratizado. A identidade regional permite costurar uma memória, inventar tradições, encontrar uma origem que religa os homens do presente a um passado, que atribuem um sentido a existências cada vez mais sem significado. O ‘Nordeste tradicional’ é um produto da modernidade que é possível pensar neste momento
. (Albuquerque Jr, 2001, p. 77)

A generalização de determinadas imagens e fatos como permanentes do espaço nordestino elimina as diferenças internas deste espaço, sugerindo um lugar que possa a cada necessidade surgida, servir de espaço-pretexto para mendigar favores, mostrar-se rebelde ou anunciador das injustiças e crueldades das relações sociais no país.

Em nome da permanência das diferenças internas como valor para a promoção de características identitárias singulares para cada espaço, passamos a formular a partir de agora um sentido de territorialidade possível a ser aplicado a esta investigação. Tendo por princípio que territórios são formas, - e que este território utilizado são objetos e ações, significando também o espaço humano -, eles podem ser entendidos como lugares contíguos ou lugares em rede (Santos, 2002, p. 16). Deterei-me neste trabalho na caracterização de dois espaços: um espaço local e um espaço global. Por assinalarem ao mesmo tempo conflito e complementariedade, estes espaços referem num sentido de sociedade ao espaço vivido por vizinhos e a um espaço fruto de um processo racionalizado e impregnado de conteúdo ideológico de origem distante. Não obstante estes territórios se ponham em campos distintos, por vezes contraditórios, por vezes mesmo em choque, mas é neste território que se abre o domínio de efetivação das situações psíquicas que já problematizadas e que busca necessariamente pela verificação de seu campo de ação.

Ainda que para a geografia política o conceito de território esteja ligado à idéia de domínio ou de gestão de uma determinada área, ligada à idéia de poder, seja na espera do poder público estatal ou das grandes corporações empresariais (Andrade in Santos, 2002, p. 213), procuro aplicar a referência de territorialidade como sentimento subjetivo que propicia uma consciência de confraternização entre pessoas que habitam um mesmo território. Esta integração ao território regional, a despeito dos aspectos negativos que vimos anteriormente associados à imagem de Nordeste, é uma qualidade cultural que podemos destacar e que ao longo do trabalho estará exemplificada. Este sentimento de apego territorial ao qual me refiro aqui está mais ligada aos valores individuais e compartilhados dentro de grupos sociais organizados formalmente ou informalmente, do que a sentidos de dominação ideológica pela força de instituir uma imagem coletiva para deste mesmo território. Procuro perceber e destacar qualidade e significados que fujam de padronizações e que possam nos apontar novas possibilidades de existência e reflexão sobre o sentido de territorialidade para o indivíduo existente nesta região denominada Nordeste.

Esta existência é marcada por um comportamento que gera práticas e intervenções nos espaços apropriados, e não podem ser entendidos como um comportamento passivo. A utilização específica de espaços transformados em lugares determinam do ponto de vista psicológico uma afirmação do indivíduo em si sobre os lugares. Da perspectiva do desenvolvimento da identidade pessoal e da identidade social, a territorialidade é um fundamento que se caracteriza como espaço subjetivo onde se compartilha conhecimentos, experiências comuns e se desenvolvem coesões maiores ou menores e se estabelecem relações de confiança mútua. (Fischer in Chanlat, 2001:86-v.2) Seguindo esta reflexão, posso nesse momento em que a investigação pede por sinais de demonstração objetiva de elementos possíveis de verificação, introduzir de maneira mais formal o poeta Patativa do Assaré e sua obra poética como objeto de pesquisa e algumas respostas que este indivíduo e sua produção de natureza cultual podem oferecer às indagações postas
em questão.”

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Fonte:
Henrique Pereira Rocha: "DIMENSÕES DO SOFRIMENTO CEARENSE A PARTIR DA POESIA POPULAR: TERRITORIALIDADE E IDENTIFICAÇÃO NA OBRA DE PATATIVA DO ASSARÉ". (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza – UNIFOR, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia. Área de concentração: Ambiente, Trabalho e Cultura nas Organizações Sociais Orientador: Prof. Dr. José Clerton de Oliveira Martins ). Fortaleza, 2006.

Nota
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A imagem (fonte: Alceu Maynard Araújo: “Folclore Nacional”) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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