A loucura dentro e fora dos muros.


“O marco institucional da assistência psiquiátrica brasileira se deu em 1852, com a inauguração do hospício de D. Pedro II no Rio de Janeiro, destinado a receber pessoas de todo o império.

A criação do hospício além de ter representado um coroamento simbólico ao Império brasileiro (o decreto de construção do hospício foi o primeiro ato assinado por D. Pedro II), mostrou-se uma resposta do poder público às reclamações feitas pelos médicos da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro em 1831, contra a circulação de alienados pelas ruas da cidade. Esse fato passou a ser associado aos demais fatores de insalubridade, do ponto de vista da higiene pública e da ordem urbana. (Teixeira e Silva Filho, 2008, pg. 67-68)

Segundo Resende (2001, pg. 38-39) “as primeiras instituições psiquiátricas no Brasil surgiram em meio a um contexto de ameaça à ordem e à paz social... contra o livre trânsito de doidos pelas ruas das cidades... Remover, excluir, abrigar, alimentar, vestir, tratar.” Nesta época, os médicos tinham uma pequena atuação nas instituições e pouco participavam da seleção dos asilados e de questões administrativas; sendo assim, começam a denunciar a institucionalização sem controle de órfãos e maus tratos contra os loucos.

Para o referido autor (2001, pg. 41) “a situação social e econômica, que tinha determinado o nascimento de instituições cuja função única, que lhe exigia a sociedade, era a simples segregação de desviantes, alterava-se rapidamente e pedia novas providências”. A Proclamação da República marca também a efetivação da psiquiatria científica em que representantes da classe médica assumem o controle das instituições referendado pelo Estado.

Se a volúpia científica dos alienistas os levava a acompanhar o indivíduo do ‘do leito até a morgue’, pouco podiam fazer para que ele chegasse ao seu destino final em razoáveis condições de integridade psíquica... há pouca ou nenhuma evidência de que qualquer prática preventiva tenha sido implementada. (Resende, 2001, pg. 46)

Segundo o autor, na época os tratamentos considerados com algum valor terapêutico eram os que tentavam reproduzir o trabalho e a vida de uma comunidade rural dentro ou fora das instituições. Além disso, a sociedade assistia a ascensão do capitalismo, normal eram os indivíduos sadios e aptos para o trabalho.

Com o passar do tempo, o número de hospitais e colônias destinados aos doentes mentais cresce em todo o país, construindo uma massa de sujeitos institucionalizados e cronificados. Ao final da década de 50 a situação já era muito grave, as instituições estavam superlotadas, com condições precárias de atendimento, paralelamente surge o movimento de industrialização e urbanização das cidades e o tratamento através das colônias agrícolas já não faziam mais sentido. (Resende, 2001)

De acordo com Resende (2001, pg. 60): “O período que se seguiu ao movimento militar de 1964 foi o marco divisório entre uma assistência eminentemente destinada ao doente mental indigente e... a cobertura à massa de trabalhadores e seus dependentes.” O período de 1965 a 1970 foi marcado pelo grande fluxo de pacientes para a rede privada, pelo aumento do número de internações nas instituições conveniadas com o poder público, já que a duração das mesmas não era bem controlada. Gerando uma ideologia de psiquiatrização dos problemas sociais.

No fim dos anos 70 no Brasil, o cenário que estava formado era de um número altíssimo de internações em hospitais e clínicas psiquiátricas particulares e filantrópicas, sem condições mínimas de higiene e bem-estar, em que os pacientes sofriam com abusos e maus tratos.

Corpos estendidos no chão frio de cimento. Amontoados. Rostos descarnados, envelhecidos, embotados. Olhares vazios. Memórias e consciências ausentes, perdidas em algum canto obscuro da mente. Restos humanos. As imagens chocantes de pacientes psiquiátricos flagrados em pleno abandono nos pavilhões, corredores e quartos de manicômios brasileiros estarreceram o país nas décadas de 70 e 80, quando a imprensa começou a revelar a barbaridade por trás dos muros daquelas solenes instituições. (Rocha, 2001, pg.2)

Neste momento histórico, repercutiam sobre o setor da saúde, os primeiros movimentos da transição democrática, e com especial repercussão no financiamento do Estado, a profunda crise econômica do país. Esta teve duplo efeito: por um lado, agravou a distribuição de renda e a qualidade de vida da população, o que aumentou as necessidades de atenção à saúde; por outro, diminuiu as receitas fiscais e contribuições sociais. “Com a abertura política – “lenta, gradual e segura” – para usar a expressão cunhada na época (governo Ernesto Geisel) – emergem novos atores e movimentos sociais. Reivindicações por serviços e ações de saúde passam a integrar com mais destaque a pauta de demandas.” (Mercadante, 2002, pg. 243)

A crítica teórica às políticas de saúde do Estado autoritário e a elaboração de propostas alternativas constituíram ao que veio a se chamar de movimento da reforma sanitária: um movimento pela reformulação do sistema nacional de saúde. A importância é colocada na administração e no planejamento dos serviços e na ampliação do acesso da população à assistência em saúde. Apostava-se que o aperfeiçoamento técnico e o gerenciamento honesto e competente dos recursos da ciência médica pela gestão pública resolveriam o problema da má assistência em saúde, inclusive (mas não apenas) no setor psiquiátrico. (Tenório, 2002, pg. 32)

Segundo o referido autor (2002, pg. 32-33), a década de 1980 marca a chegada dos protagonistas e do programa do movimento sanitário à gestão efetiva dos serviços e das políticas públicas, cujas ações acabaram ganhando um cunho institucionalizante. As iniciativas foram basicamente a racionalização, humanização e moralização do asilo e a criação de ambulatórios como alternativa ao hospital de internação. No entanto, a reforma do asilo e ambulatorização não melhoraram o atendimento, nem modificaram a hegemonia asilar.

Tendo como pano de fundo o movimento de reforma sanitária e a inquietação de profissionais e familiares sobre a situação precária de atendimento ao doente mental, em Minas Gerais no ano de 1979, acontece o III Congresso Mineiro de Psiquiatria. No qual foi apresentada a reportagem nos Porões da Loucura de Hiram Firmino e o filme Em nome da razão de Helvécio Ratton, que escancarava as péssimas condições das instituições psiquiátricas. Após estas denúncias que chocaram a opinião pública, profissionais da saúde mental se organizaram e iniciaram com maior ênfase, o processo de Reforma Psiquiátrica em Minas Gerais, fortalecendo esta mesma luta em todo o Brasil. (Minas Gerais, Secretaria do Estado, 2006)

No estado de São Paulo, em 1982, esse esforço resultou em um Programa de Saúde Mental que teria como objetivo criar uma rede extra-hospitalar composta por ambulatórios de saúde mental e centros de saúde, de forma que o atendimento de pacientes da saúde mental fosse deslocado do hospital psiquiátrico; porém devido seu caráter estrutural esse programa começou a declinar em 1986 (Goldenberg, 1996, pg. 102-105)

Após essa experiência verificou-se que programas eminentemente de caráter administrativo não produziam efeito em grupos de pacientes como os psicóticos, foi então, que se notou a necessidade de um projeto de saúde mental alternativo aos modelos da rede. Segundo Goldenberg (1996, pg. 111) no estado de São Paulo, foi formada uma comissão de técnicos que deveriam estruturar uma proposta. Foi produzido então o documento “O Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz Rocha Cerqueira – Projeto Docente-Assistencial Multicêntrico”, que tinha como pontos principais: lidar com a psicose e suas determinações de marginalização e cronificação nas vertentes de assistência, investigação e formação de recursos humanos para a rede de prestadores de serviços de saúde.

Esse novo lugar terapêutico, nos moldes dos centros de saúde de Trieste, teria espaço para escuta de expressão verbal e não verbal dos pacientes, medicação ajustada às necessidades de cada indivíduo, além do acolhimento e tratamento da família; o Centro de atenção Psicossocial iniciou o atendimento em junho de 1987. (Goldenberg, 1996, pg. 113)

Neste mesmo ano, foi realizada a I Conferência Nacional de Saúde Mental, que discutiu novas políticas assistenciais e a necessidade de uma nova legislação psiquiátrica no Brasil. Trieste é uma cidade na Itália em que o processo de desinstitucionalização aconteceu de forma rápida e bem sucedida, servindo de exemplo para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Na experiência italiana foi Franco Basaglia seu principal mentor, assumindo a direção do hospital psiquiátrico de San Giovanni, projetando uma nova estruturação da assistência psiquiátrica, englobando e redimensionando os momentos de prevenção, tratamento e inserção social, de forma a ampliar os espaços da comunidade, restringindo os do hospital. Para maior aprofundamento ver Barros, 1994.

Em seguida em um encontro realizado em Bauru, trabalhadores de saúde mental propuseram princípios teóricos e éticos de assistência e lançaram o lema “Por uma sociedade sem manicômios”, estabelecendo o dia 18 de maio como o Dia da Luta Antimanicomial. (Rocha, 2001, pg.3)

Em setembro de 1987, lançando mão das discussões e mobilização que já vinham acontecendo, o deputado Paulo Delgado apresenta o projeto de lei 3657, da reforma psiquiátrica, que prevê a extinção dos manicômios e desospitalização progressiva dos portadores de transtornos mentais.

No dia 3 de maio de 1989, a prefeitura de Santos, no estado de São Paulo, decreta intervenção no único hospital3 da Baixada Santista e uma reduzida equipe de trabalhadores (as) em saúde mental, militantes do movimento antimanicomial, assumem a sua direção com o objetivo de desmontá-lo; desativando as celas fortes, proibindo os eletrochoques, liberando a circulação interna para os pacientes e a saída para alguns deles. (Lancetti, 1990, pg.138)”
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Fonte:
Mariana Pelizer de Albuquerque: "O QUE NOS DIZ DE NÓS O DELÍRIO? Uma compreensão psicanalítica sobre as relações na Saúde Mental". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia – Mestrado, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Psicologia Aplicada. Área de Concentração: Psicologia Aplicada Orientadora: Dra. Maria Lúcia Castilho Romera). Uberlândia, 2010.

Nota
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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