Médico e doente no Brasil: final do século XIX e início do século XX

Ser médico e ser doente no Brasil entre final do século XIX e início do século XX: algumas considerações

A criação de instituições de formação médica, sobretudo após 1870 (na Bahia e no Rio de Janeiro), não garantiu que o saber médico acadêmico fosse reconhecido socialmente como preponderante e hegemônico no atendimento à saúde. Nesse período, o médico deveria se fazer acreditar e é possível pensar na hipótese de que os médicos, inicialmente, precisaram se preocupar mais com sua imagem do que com sua técnica (MARQUES, 2003, p.8).

Esse reconhecimento social, quando ocorreu, não seria obtido simplesmente pela enunciação discursiva de pressupostos e da validade do saber médico, nem somente através da ampliação da prática de atendimento médico e da difusão de novos padrões de tratamento de doenças.

Em alguma medida, esse processo resultou de um movimento de desqualificação de outros agentes de cura, como os práticos, as mães, as parteiras, as comadres e os curandeiros, promovendo-se, sobretudo, a difusão de um valor positivo para a medicina no universo das práticas de cura.

A esse processo Bourdieu classificaria de movimento de ruptura com o público, o que garantiria que a produção [pediátrica] pudesse produzir – ela mesma – suas normas de produção e os critérios de avaliação de seus produtos, estando, portanto, liberta de censuras sugeridas pelo confronto direto com um público alheio à profissão, público visto como despreparado e despossuído de um saber técnico a que somente aqueles que passaram pela profissionalização teriam acesso. (BOURDIEU, 2004, p. 106).

É digno de nota que a medicina alopática praticada no Brasil convivia com práticas da chamada medicina popular, nem sempre a rejeitando, chegando mesmo a validar alguns de seus princípios quando a circunstância assim o exigia (MARQUES, 2003, p.19). Pela análise de Bourdieu, podemos entender que esse processo de concessão a outras formas de cura é parte de um movimento de ampliação suportável do diálogo com outras ofertas existentes no mercado de práticas de cura que, mantidos os crivos próprios e internos da medicina alopática, serviriam para demonstrar seu grau de flexibilidade, sem, contudo, ameaçar-lhe as linhas e tendências gerais (BOURDIEU, 2004, p. 99-150).

Dessa forma, além da escassez de médicos profissionais em meados do século XIX, os raros médicos que atuavam no Brasil não eram revestidos pela aura de poder que provavelmente ostentam hoje. Era comum o sentimento de que o tratamento de doenças era principalmente um ato de fé (MARQUES, 2003, p.22), o que contribuiu certamente para delineamento do perfil de vários dos primeiros médicos brasileiros.

Essa questão em boa medida explica a falta de hábito social de solicitação do médico para tratamentos e curas. A medicina apresentava concepções de doença e de cura baseadas em um modelo de relação médico-paciente desconhecido e estranho para boa parcela da população – especialmente aquela que não seguia com tanto rigor os padrões comportamentais recomendados por esculápios. Mesmo na corte imperial pode-se pensar na força cultural do hábito de resolver problemas de saúde sem obrigatoriamente recorrer aos médicos acadêmicos. (FIGUEIREDO, 2002).

Nesse contexto, de finais do século XIX e início do século XX, ocorreria o surgimento de consultórios médicos voltados ao atendimento especializado da criança, os dispensários médicos, as policlínicas40 e hospitais que pretendiam atender somente crianças. Como vimos, é um momento de surgimento de novas percepções sociais e também de criação de instituições voltadas especialmente para o cuidado médico especialista em uma parcela etária da população.

Os dispensários atendiam, sobretudo, a um contingente da população que, mesmo não recorrendo às Casas de Expostos, não tinha outra alternativa – pelo menos ‘oficial’ - para socorrer os males que afligiam suas crianças.

Em 1889 seria criado o Instituto de Proteção – dispensário para crianças pobres, banhos e medicamentos, aparelhos de ortopedia e hidroterapia e helioterapia, exercícios ginásticos e duchas, funcionando no Dispensário Moncorvo. Outros dispensários seriam criados subseqüentemente ao do Rio de Janeiro, como o de São Paulo e da Bahia.

No final do século XIX ocorreria a tentativa frustrada de criação da Policlínica da Bahia, por iniciativa de Pacífico Pereira, Prof. da Faculdade de Medicina da Bahia. A iniciativa seria seguida, desta vez com sucesso, pelo grupo de Moncorvo de Figueiredo, que fundaria a Policlínica do Rio de Janeiro, em 1882, em que se daria o atendimento de crianças concomitantemente à oferta de cursos livres de formação em pediatria.

Até início do século XX não havia no país uma estrutura hospitalar minimamente organizada e os atendimentos, na falta de uma instituição de atendimento público e mesmo por influência de concepções a respeito da prática médica então em vigor, eram realizados em ambientes domésticos, na casa do paciente ou na casa do médico. Era comum, então, que o atendimento acontecesse nas residências, ao estilo da medicina de beira de leito que antecedeu à medicina hospitalar.

Os médicos também se dedicariam ao atendimento da criança de elite, essa, então, preservada do registro e da opinião pública, atendida especialmente em suas residências, nas residências dos médicos ou em seus consultórios (nos parcos horários disponíveis).

Naquele momento havia três modalidades possíveis de atuação profissional dos médicos: atendimento em consultórios particulares (em que se incluem os atendimentos domiciliares), participação em instância de pesquisa, decisão e implementação de serviços de medicina preventiva ou atuação em instituições de saúde – públicas ou filantrópicas – voltadas principalmente para a medicina preventiva (PEREIRA NETO, 2001, p.31).

O período de finais do século XIX seria também marcado pela disputa entre três démaches sociocognitivas distintas, que se misturavam no ambiente médico e que se interpenetravam: “a anatomoclínica, a topografia médica e a medicina experimental” (EDLER, 2002, p. 359). A primeira teve como ambiente institucional característico o hospital, a segunda, também classificada pejorativamente de topografia médica ou medicina de gabinete, foi assimilada com reservas e utilizava-se amplamente do método estatístico e a terceira tinha como centralidade a bancada, a cobaia, o cadinho e o microscópio em substituição à medicina de pacientes, leitos, tato clínico e estetoscópio (EDLER, 2002, p. 357-385).

Os médicos de finais do século XIX combinavam e por vezes opunham essas três influências. No campo da pediatria, entre finais do século XIX e primeiras décadas do século XX, veríamos pelo menos duas tendências estrangeiras na formação de perfis de formação médica no Brasil: a influência francesa e a influência alemã.

Nesse processo assumiam centralidade os conhecimentos fisiológicos e as recomendações higiênicas, bem como a prática clínica voltada para a cura de doenças infantis.

A observação rigorosa dos fenômenos patológicos incorporou métodos de registro e de exploração dos corpos cada vez mais detalhados e precisos, como a auscultação, facilitada pelo estetoscópio, as percussões toráxicas, os aparatos de medição craniana e outros instrumentos e ferramentas cuja função era reforçar o caráter mensurável das observações médicas, de acordo com parâmetros científicos de época, em que a exatidão e a objetividade constituíam valores intercambiáveis. (TRONCOSSO, 2003, p. 10).

Dessa nova concepção adveio a matriz que informou a nascente formação para medicina de moléstia de crianças, que rejeitaria as concepções anteriores, de tradição hipocrático-galênica, em que predominavam explicações fundadas nas influências do calor e da umidade sobre as enfermidades, inclusive as infantis. (TRONCOSO, 2003, p. 10).

Centrada eminentemente no indivíduo, a nova medicina informaria práticas de cura voltadas para os sintomas e suas novas formas científicas de observação, registro, controle e cura. Além disso, as alterações mórbidas “que até então eram estudadas a olho nu, receberiam o auxílio do microscópio, o que contribuiu para ampliação de hipóteses a serem apresentadas para cada diagnóstico” (MARQUES, 2003, p. 24).

Dessa forma, as características mais marcantes da formação médica do período foram elaboradas a partir de dois movimentos:

inicialmente, com a medicalização do hospital, em um capítulo conhecido como o nascimento da clínica; posteriormente, com a constituição de uma nova medicina de laboratório [alemã], em que os fenômenos da vida foram reduzidos ao plano dos fenômenos físico-químicos e submetidos a leis mecanicistas, passando a depender da experimentação animal e da anatomia patológica macro e microscópica. (FERREIRA, FRÓES, EDLER, 2001, p. 59).

De acordo com Betânia Figueiredo, o século XIX é quando se consolida “uma nova concepção de doença, de doente e de intervenção no corpo doente” (FIGUEIREDO, 2002, p. 40). Segundo a autora, podemos identificar três grandes avanços relacionados às inovações em procedimentos técnicos que viriam a demarcar uma nova etapa na medicina, pelos sucessos atingidos: a intervenção cirúrgica com apoio da anestesia (o que potencializaria a ação dos cirurgiões), a difusão das práticas de assepsia e o avanço das pesquisas bacteriológicas."


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Fonte:
JÚNIA SALES PEREIRA: "HISTÓRIA DA PEDIATRIA NO BRASIL DE FINAL DO SÉCULO XIX A MEADOS DO SÉCULO XX". (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito à obtenção do título de Doutora em História. Orientadora: Betânia Gonçalves Figueiredo Universidade Federal de Minas Gerais). Belo Horizonte, 2006.

Nota
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