A necessidade existencial da arte



Quando buscamos compreender a cultura dos nossos ancestrais, encontramos nas manifestações artísticas um fator preponderante, o qual responde a muitos dos nossos questionamentos. Para Ernst Fischer (1987, p. 17- 20),

Toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade em
consonância com as idéias e aspirações, as necessidades e as esperanças de uma situação histór ica particular. Mas, ao mesmo tempo, a arte supera esta limitação e, de dentro do momento histórico, cria também um momento de humanidade que promete constância no desenvolvimento [...]. A arte é necessária para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo. Mas a arte também é necessária em virtude da magia que lhe é inerente.

Tarkovski (1996, p.38) apresenta seu modo de entender o objetivo fundamental da arte como tal. “A menos, por certo, que ela seja dirigida ao ‘consumidor’, como se fosse uma mercadoria – é explicar ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual é o significado da sua existência. Explicar às pessoas a que se deve sua aparição neste planeta, ou se não for possível explicar, ao menos propor a questão”.

Acerca desta necessidade da arte há uma mensagem no filme Sociedade dos poetas mortos, proferida aos alunos, pelo professor John Keatin (Robin Williams):

Não lemos nem escrevemos poesia porque é bonitinho. Lemos e escrevemos poesia porque somos humanos. A raça humana está repleta de paixão. A medicina, advocacia, administração e engenharia... são objetivos nobres e necessários para manter-se vivo. Mas a poesia, beleza, romance, amor... é para isso que vivemos.

Este fragmento poético reforça as palavras de Fischer, que afirma ser a arte uma necessidade humana.

A história da arte marca diversos momentos vividos pela humanidade, sejam eles de caráter político, religioso, social, etc. As obras artísticas, nas suas diversas modalidades, podem mapear uma descrição antropológica humana. Benjamin (apud. CHAUÍ, 2002 p.329)
fala do uso da arte em função do nazismo: “A estetização da política e da guerra, transformadas em obras de arte pela propaganda e pelos grandes espetáculos de massa, nos quais jogos, paradas militares, danças, ginásticas, discursos políticos e música formavam um conjunto ou uma totalidade visando a tocar fundo nas emoções e paixões mais primitivas da sociedade”.

Fazemos referência ao Sueco Peter Cohen, que registra no documentário,
Arquitetura da destrição6, a postura de Hitler frente à arte. Destacamos a forma como o nazismo tratou os loucos e os artistas modernistas, que eram comparados a loucos e, por isso, foram dizimados em nome da pureza ‘estética’. “A ofensiva contra a arte moderna tem caráter higiênico, segundo eles, os trabalhos dos artistas modernos mostram sinais de doença mental de seus criadores”.

Um dos membros mais influentes da ‘defesa’ era o teórico Paul Schultze – Naumburg;
ele fez palestras pela Alemanha, a partir de janeiro de 1931. “No mundo da arte alemã, uma luta de morte não como a luz na política é travada e deve ser encarada com a mesma seriedade”, diz ele. Utilizando slides para ilustrar suas palestras, Naumburg projeta sua visão de arte mostrando fotos de casos de deformação, tiradas de revistas médicas, e comparando-as com a arte moderna, associando degeneração com perversão artística. As fotos e diagnósticos eram fornecidos pelo professor Weygandt, da psiquiatria da Universidade de Hamburgo. Para Naburg, a arte é o espelho de saúde racial. “Vendo estes quadros, ninguém pode identificá-los com nada além da desgraça, observada em manicômios onde se reúne a degeneração de nossa espécie” (SCHULTZE-NABURG).

O “arquiteto da destruição” exigia a exibição dos trabalhos artísticos, por ele expurgados, para que servisse de exemplo. Seu objetivo era construir um mundo “belo”, de acordo com suas concepções de beleza, e, para isso, precisava destruir o que existia. Assassinato em massa foi a conseqüência final da combinação de Hitler em criar o novo homem, o novo mundo. A maquiagem do culto nazista à beleza encontrou seu caminho na câmara de gás. A matança era uma missão biológica, um tributo sagrado ao sangue puro. As fábricas de morte faziam saneamento antropológico. Eram os instrumentos de embelezamento.

Médicos tinham papel importante no processo da morte. Eram eles quem selecionavam as vítimas e supervisionavam o uso de ZYKLONB como prescrito. Depois, checavam se elas estavam realmente mortas. Um sistema onde as vítimas operavam o equipamento pouparia aos matadores do horror de seu trabalho.

Com o ideal de preservar o “corpo do povo” a psiquiatria alemã adotou o assassinato como a melhor forma de terapia. No outono de 1941, cerca de 70 mil doentes mentais foram mortos.

Quando recorremos à história, encontramos a arte como um fator relevante. Percebe-se como a humanidade, ao longo dos séculos, fez uso da arte posicionando-se diante das obras e dos próprios artistas.

A mesma arte, que pode servir como meio de libertação de uma pessoa ou de um povo, também é utilizada arbitrariamente para o exercício da opressão de determinadas
classes sociais, conforme mostra Peter Cohen, nesse documentário, onde relata o uso da arte e da comunicação na manipulação das mentes no nazismo.

Destacamos o seguinte fragmento do documentário:

Tudo que é inviável na natureza perece. Nós humanos pecamos contra a lei
da seleção natural. Não só aprovamos formas de vidas inferiores... como encorajamos sua propagação [...]. É assim, pessoas saudáveis vivem em guetos e casebres. Porém, construíram palacetes para os loucos. E eles nem se dão conta da beleza que os cerca [...]. O povo alemão mal sabe a extensão dessa peste (exibem imagens de doentes mentais). Ele não conhece a atmosfera opressiva onde milhares de imbecis precisam ser alimentados e tratados. Indivíduos inferiores a qualquer animal. Nos últimos 70 anos, nossa população aumentou 50% enquanto a doença hereditária cresceu cerca de 450%. Se essa situação continuar, em 50 anos será um doente para cada quatro pessoas saudáveis. Uma seqüência de horrores invadirá nossa nação, um infortúnio sem par afetará nossa raça que marchará cabisbaixa, para o seu destino. Embelezamento do mundo é um dos princípios nazista.

No fragmento exposto, percebe-se o uso da comunicação e da arte como instrumental do aparelho ideológico nazista na manipulação humana. Hitler apropriou-se dos meios de comunicacão para sustentar seus ideais. E o cinema foi um instrumento fundamental para a disseminação de seus objetivos de pureza da raça ariana. Os filmes exibidos na Alemanha legitimavam os desejos obsessivos de um estadista, o qual comparava seres humanos com insetos ameaçadores que necessitavam ser exterminados.

Apesar dos anos que se passaram, essas reflexões continuam atuais e elas são necessárias para a nossa sociedade que, não só esquece os horrores, mas continua praticando injustiças contra seres inocentes. É importante lembrarmos que, também no Brasil, no período da ditadura militar, os artistas foram perseguidos, e muitos eram considerados loucos; suas obras artísticas eram associadas a sinais de doença mental e doença mental era sinônimo de desgraça.

Lamentavelmente, ainda existem muitos hospícios (no sentido clássico do termo) que continuam matando os pacientes, não como na Alemanha nazista, mas de forma legitimada; são pessoas mortas em vida. Como dizia Paulo Freire: “Não há vida sem morte, como não há morte sem vida, mas há também uma ‘morte em vida’. E a ‘morte em vida’ é exatamente a vida proibida de ser vivida”.

Sobre esta morte em vida, Lima Barreto denuncia, em sua obra O Cemitério dos vivos (2004, p.69):

O nosso sistema de tratamento da loucura ainda é o da Idade Média: o seqüestro. Não há dinheiro nem poder que arrebate um homem da loucura. Aqui no hospício, com as suas divisões de classes, de vestuário etc, eu só
vejo um cemitério: uns estão de carneiro e outros de cova rasa. Mas, assim e assados, a loucura zomba de todas as vaidades e mergulha todos no insondável mar de seus caprichos incompreensíveis."

---
Fonte:
ELIANA MARTINS MARCOLINO: "COMUNICAÇÃO E SAÚDE MENTAL: Estudo de Caso da TV Pinel no Brasil e do Espaço de Comunicação no Hospital Psiquiátrico de Havana". (Tese apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
da Universidade Metodista de São Paulo, para obtenção do grau de Doutora. Orientador: Professor Dr. Isaac Epstein. Universidade Metodista de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Comumcação Social). São Bernardo do Campo – SP, 2007.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!