O Espírito de Dostoiévski

"Em seu ensaio O Espírito de Dostoiévski, que reúne lições de seminário consagradas ao autor, Nicolai Berdiaeff declara o papel decisivo que Dostoievski exerceu em sua vida espiritual. Compartilhamos com ele a posição: “Desde sempre, dividiram-se para mim os homens entre os dostoievskianos e aqueles a quem o espírito de Dostoiévski era estranho”. E as perguntas que se colocam provocando nossa consciência após a leitura de suas obras passam a ter, certamente, relação com suas “malditas questões eternas”.

Dostoiévski não foi somente um grande artista, ele é, se não o maior, o mais poderoso escritor do século XIX e XX. Pois, “sua obra constitui um marco entre dois séculos de literatura. Literariamente, tudo o que é pré-dostoievskiano é pré-histórico; ninguém escapa à sua influência subjugadora, nem sequer os mais contrários”. Carpeaux, neste mesmo ensaio, ainda afirma que em sua obra nada de arte pela arte, Dostoiévski nos arrasta até as últimas conseqüências. “Como aceitar um poeta cujo pensamento nos abala?”.

As explosões da humanidade reveladas por Dostoiévski têm algo profundamente vivo e dinâmico. “Ele mergulha-nos todos os sentidos na sua atmosfera ardente; obriga-nos, anelantes, presos da vertigem, a costear o abismo da alma”. E tudo se dá por baixo do véu de uma existência trivial e cinzenta tornando ainda mais incríveis as faces de uma obscura condição humana. O encontro com os personagens de Dostoiévski tem o impacto da vertigem característica que nos captura quando nos aproximamos demais de um trem que segue na mesma direção. Somos atravessados por um sentimento de estranheza e grandeza, proximidade e rejeição, e por maior que seja nossa resistência, não conseguimos seguir adiante como antes. No confronto com o enigma destes personagens somos confrontados com o enigma de nossas próprias vidas. Afinal, com quem nos deparamos? Esta é a questão de Dostoiévski. Que nos abala e nos arrasta até as últimas conseqüências.

O aspecto espiritual da obra de Dostoiévski nos mostra um verdadeiro Banquete do Pensamento, e aquele que permanece numa atitude cética sobre a eficácia de todo pensamento é condenado a uma existência espiritualmente morna e reduzida. Ele descobre novos mundos onde somente os destinos humanos são inteligíveis. E o acesso a eles não se dá pela redução formal a categorias congeladas, nem pela elaboração sobre conceitos esfriados. A sustentação de seu pensamento traz o sopro do espírito, luz que penetra os fundamentos do mundo, onde as idéias impregnam-lhe a arte. As idéias ocupam em sua obra um papel importante, e é por sua extraordinária dialética, que as idéias vivem nele uma existência em altíssimo grau dinâmica: oposição e combate, fogo e movimento. Toda idéia em Dostoiévski está ligada ao destino do homem, do mundo e de Deus. Determina estes destinos e traz oculta em si mesma a energia destruidora de sua própria dinâmica. E não se trata de um sistema abstrato, mas antes, de uma intuição artística, um problema filosófico e intelectual, e principalmente, uma questão religiosa.

Florovsky compreende que Dostoiévski concentra em suas obras a grande crise religiosa de sua época. Sua experiência pessoal e sua penetração artística compõem um encontro íntimo que se traduz em trabalho criador. Ele foi capaz de exprimir todo mistério de sua época diagnosticando uma angústia religiosa ainda não identificada: diante do ateísmo em processo ele penetra e compreende os desdobramentos religiosos que se dariam nos próximos anos e alcança assim, em profundidade e extensão, a experiência contemporânea russa em sua totalidade. Dostoiévski se propõe uma busca interminável sobre o destino último dos homens, e toma como base sua observação contínua dos fatos concretos, das tramas cotidianas e banais, aparentemente ordinárias e estéreis. Ele estuda a personalidade humana, para além das características empíricas e de suas interações causais, visíveis nos seus efeitos, mas analisa antes, as nuances perceptíveis do espírito, ou melhor, as correntes misteriosas da vida primordial.

Dostoiévski estuda o homem a partir de sua maior problemática, ou seja, a partir de sua liberdade, de onde é dado a ele decidir, escolher, aceitar, rejeitar, e principalmente: a liberdade de aprisionar-se a si mesmo, e a de livrar-se a si mesmo da escravidão. Importante enfatizar aqui, conforme nos alerta Florovsky, que a liberdade por ele compreendida não diz respeito àquela meramente objetiva, mas antes, que esta liberdade está inscrita no homem, inscrita como uma problemática. Desde o início de sua carreira suas obras perseguem a revelação desta misteriosa antinomia da liberdade humana. Toda a significação do homem reside justamente nesta liberdade: liberdade da vontade, ou vontade de ser si mesmo que deve passar justamente pela renúncia deste si mesmo. E mais: que esta vontade de ser si mesmo pode degenerar em autodestruição. Este é um dos temas mais íntimos e caros a Dostoiévski. Ele representa uma manifestação criadora sem precedentes, o homem é tomado em toda profundidade e tem todos os abismos espirituais descobertos. Nele toda literatura russa atinge o mais alto grau de tensão: expondo os abismos como uma ferida torna o destino humano doloroso. Mas neste destino humano doloroso o homem está vivo e volta a ser com ele uma criatura religiosa.

Suas reflexões o levam a considerar que inegavelmente a unidade inicial entre Verdade, Bem, e Beleza haviam caído e que os princípios que governam conhecimento, ética e estética somente são integrados nos princípios religiosos. Quando cada área da atividade humana se torna autônoma manifesta assim sua ambigüidade. Se por um lado o coração humano encontra beleza até no ideal de Sodoma que é compartilhado pela imensa maioria das pessoas, por outro, o senso de incomensurabilidade e infinito são necessários aos homens.

Muitas coisas estão ocultas de nós neste mundo; em compensação, temos a sensação misteriosa do liame vivo que nos prende ao mundo celeste e superior, as raízes de nossos sentimentos e de nossas idéias não estão aqui, mas em outra parte [...] quando esse sentimento se enfraquece ou desaparece, o que havia brotado em nós perece. Tornamo-nos indiferentes à vida, sentimos mesmo aversão por ela.

Sem a imortalidade e a sensação misteriosa do liame vivo que nos prende ao mundo celeste o círculo fechado da condição humana não pode ser ultrapassado. Se nada existe acima do homem, o homem tampouco existe. Atormentado por sua solidão, num mundo hostil e aparentemente absurdo o homem demite-se e busca a evasão por searas mais consoladoras. Numa ambiência onde o ateísmo é tomado como ponto de partida a inquietação diante da morte nada mais diz aos homens. Simplificado e aliviado de toda investigação ele deixa de sentir a necessidade de Deus. E se vê em dificuldade diante da ética, da experiência de auto-conhecimento que pressupõe uma correlação entre ele e o mundo, porque foge do tormento pelo anseio de atingir algo que está fora dele mesmo. A intangibilidade de fusão, percebida como insuficiência do próprio eu, se mostra como fonte perpétua de dor e insatisfação humanas.

A Rússia não se pode pela razão entendê-la,
Nem medi-la por um comum estalão:
Tem ela sua própria configuração –
A Rússia, só pela fé se pode apreendê-la.

Berdiaeff afirma que “um grande escritor é uma manifestação completa do espírito e como tal deve ser tomado em sua unidade”, unidade somente passível de penetração senão incorporando-se nela, vivendo-a. Considerando Dostoiévski como homem de gênio, alto fenômeno espiritual, não se deve ceder a inclinação de tratá-lo com um bisturi, suspeitando nele alguma anomalia oculta. Deve-se antes seguir Dostoiévski pelo caminho dos crentes, mergulhando em suas idéias dinâmicas. Em sua unidade, Dostoiévski é especificamente russo, e sua obra uma interpretação russa do universo. Ele reflete todas as contradições e antinomias do povo russo, sendo que, a arquitetura espiritual da alma russa pode ser seguida e estudada em sua obra. E eis aqui a causa de tanto interesse e estranhamento que provoca nos ocidentais: procuram nele uma revelação de ordem geral com base nas questões tão enigmáticas do mundo Oriental russo. Compreender Dostoiévski é assimilar parte essencial da alma russa, do segredo da Rússia."


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Fonte:
JACQUELINE IZUMI SAKAMOTO: "RELIGIÃO E NIILISMO: PAIDÉIA CRÍTICA EM OS DEMÔNIOS DE DOSTOIÉVSKI". (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciências da Religião, sob a orientação do Prof. Doutor Luiz Felipe Pondé). São Paulo, 2007.

Nota
:
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O texto é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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