O iluminismo como base humanitária ao direito de punir

"Com o surgimento da doutrina iluminista, no século XVIII, nascia uma nova maneira de se conceber o Direito, pois a liberdade de pensar e de se expressar fazia com que o ordenamento jurídico deixasse de ter suas normas fundadas na vontade divina para ser produto da vontade do homem que, através de sua racionalidade, procurava conhecer o seu eu e suprir suas necessidades à medida que elas fossem surgindo.

Era o racionalismo que buscava seu lugar na luta contra a intolerância religiosa. Sobre o Iluminismo, Maurício Lopes preceitua que:

esse movimento visou estimular a luta da razão contra a autoridade, realizando a substituição da razão da autoridade pela autoridade da razão, a luta da luz contra a época das trevas. Daí, o nome de Iluminismo, tradução da palavra alemã Aufklãrung, que significa aclaração, esclarecimento, iluminação.

No tocante ao método racional de investigação, Lopes ainda discorre: a razão, de fato, é o órgão tipicamente iluminista, que é contraposto à autoridade e aos preceitos. Este espírito crítico, que quer submeter todo o saber ao teste da razão, atinge todos os aspectos da atividade humana. Em que pese a razão ter sido a força central do movimento iluminista, não houve abandono do direito natural, pelo contrário: caminharam eles juntos, sob a denominação jusracionalismo. Assim, racionalmente, o homem construía sua própria realidade, mas sabendo que era detentor de direitos inatos, ou seja, o homem possuía direitos independentemente de sua posição socioeconômica, mas pelo próprio existir, cabendo ao Estado, então, protegê-los.

Em consequência desse pensamento naturalista, desenvolveram-se as teorias contratualistas, cuja ideia resume-se na criação do Estado com base em um acordo livre de
vontades. Este pacto, na concepção dos filósofos iluministas, constitui um meio de defesa daqueles direitos, isto é, o homem abandona o estado de natureza e cria o Estado como entidade política para garantir e proteger os seus direitos naturais. Na linha dos filósofos contratualistas do período iluminista, destaca-se Jonh Locke, que assim se manifestou no seu segundo tratado de governo civil:

os homens não se disporiam a abdicar da liberdade do estado de natureza e a se submeter (à sociedade e ao governo), não fosse para preservarem suas vidas, liberdades e bens e, através de regras estabelecidas de direito e propriedade, assegurar sua paz e tranqüilidade.

Como a teoria contratualista consiste em cada qual transferir uma parcela de seu direito à sociedade, a violação de um direito no estado contratual não atingiria apenas a pessoa que foi vítima, mas também a sociedade, de maneira que esta se encontra obrigada a castigar aquele que se rebelou contra o contrato. Neste diapasão, o fim da pena consiste na defesa do
pacto social. Ainda no contexto deste contrato social, decorre a limitação do direito penal no tocante à criminalização de condutas.

Com efeito, sendo o Estado criado para proteger os direitos naturais, o direito penal não poderia ir além da proteção destes limites. Vale dizer que, para uma conduta ser considerada crime, não bastava a violação de uma norma ética ou divina, era necessário que os direitos reconhecidos no contrato social fossem violados. Neste sentido, têm-se as palavras de Rudoophi:

[...] O Estado é considerado como decisão conjunta dos homens e por certo com o objetivo de assegurar a maior liberdade possível para todos os cidadãos. A única tarefa legítima do Estado, portanto, era a proteção dos direitos de seus cidadãos e dos seus próprios para a realização de seus fins, definidos no contrato social. Como núcleo material de todo delito aparece, conforme isso, a lesão de direitos subjetivos.

Os ideais iluministas trouxeram, ainda, um dos maiores princípios limitadores da intervenção estatal na atuação do direito penal: o da legalidade, que não consistia somente na instituição de crimes e penas através de lei, mas, sobretudo, porque a lei deveria advir de um Poder específico. Para Locke, o órgão competente para a feitura das leis tratava-se do Poder Legislativo, cujo órgão deveria corresponder aos anseios do povo, proporcionando-lhe segurança e justiça:

a autoridade legislativa, ou suprema, não pode arrogar-se o poder de governar arbitrários extemporâneos, mas está obrigada a dispensar justiça e a decidir acerca dos direitos dos súditos por intermédio de leis promulgadas e fixas, e de juízes conhecidos e autorizados [...] Tanto o poder absoluto e arbitrário como governo sem leis e estabelecidas e fixas não podem ser compatíveis com os fins da sociedade e do governo.

Em uma perspectiva iluminista, a lei, como fonte única e unificadora do direito, além de buscar respeitar os direitos do homem, deveria ser caracterizada pela abstração e generalidade. Neste contexto, tem-se o pensamento de Rosseau:

Quando digo que o objeto das leis é sempre geral, entendo que a lei considera os súditos como corpo e as ações como abstratas, jamais um homem como um indivíduo nem uma ação particular. Assim, a lei pode muito bem estatuir que haverá privilégios, mas não pode concedê-los especificamente, a ninguém; a lei poderá criar
várias classes de cidadãos, designar mesmo as qualidades que darão direito a essas classes, mas não pode designar tais e tais para serem admitidos; ela pode estabelecer um governo real e uma sucessão hereditária, mas não pode indicar um rei ou designar uma família real; em uma palavra: toda função que se refere a um objeto individual não pertence ao poder legislativo.

No propósito de limitação ao Poder estatal, tem-se, ainda, o pensamento de Montesquieu que formulou a teoria da separação dos poderes, afirmando que:

Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleça leis tirânicas para executálas tiranicamente. Não haverá também liberdade, se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse lição ao poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.

Era com estes pensamentos filosóficos que a “era das luzes" pretendia se livrar das arbitrariedades e opressão do Estado absolutista. Em apertada síntese, pode ser assim compreendida: se, de um lado, o iluminismo reconhece a existência de direitos inerentes à pessoa humana; do outro, a concepção contratual do Estado consiste em estabelecer suas normas em função do indivíduo para garantir a liberdade deles, ou seja, faz-se necessário garantir aos indivíduos seus direitos naturais contra o arbítrio estatal. No âmbito punitivo, essas ideias sedimentaram o alicerce do direito penal moderno tanto pela atitude racionalista em abandonar as concepções místico-religiosas nos crimes e a concepção de vingança na pena, como pela imposição de limite ao exercício do direito de punir, com base no princípio da legalidade.

Ressalte-se que a lei, no viés iluminista, é norteada pelo respeito aos princípios de justiça e aos direitos do homem, tais como a liberdade, a igualdade, entre outros, que se manifestarem como direitos naturais.

Nesse período, sobressai-se o pensamento de César Beccaria, através da obra já citada, que, dada a sua importância para o direito penal, será agora estudado em separado, no item subsequente. Segundo Evandro Lins e Silva, a obra de Beccaria passou a ser “o farol, o ponto de luz a indicar o caminho a ser seguido pelos estudiosos do Direito Penal. As suas premonições faziam antever que um dia, afinal, o homem seria remido e resgatado de toda punição infamante, cruel ou atentatória a sua dignidade.”


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Fonte:
ELIZABEBA REBOUÇAS TOMÉ PRACIANO: "O DIREITO DE PUNIR NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E OS REFLEXOS NA EXECUÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Antônio Albuquerque de Menezes). UNIFOR - Universidade de Fortaleza. Fortaleza – Ceará 2007.

Nota
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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