O indianismo romântico

“Em 1826, o francês Ferdinand Denis publicava Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi de l’histoire littéraire du Brésil. Ao dedicar um capítulo em separado para tratar da história literária do Brasil, Denis foi o primeiro a “(...) tratar do nosso processo literário como um todo orgânico”.

Ao longo do texto, cujo subtítulo era Considerações gerais sobre o caráter que a poesia deve assumir no Novo Mundo, argumentava o autor que o Brasil independente “ (...) experimenta já a necessidade de ir beber inspirações poéticas a uma fonte que verdadeiramente lhe pertença (...)”. Destaque-se que, segundo seu ponto de vista, tratava-se não apenas de uma possibilidade, mas, sobretudo, de uma necessidade. Uma vez independente, seria preciso que o Brasil mostrasse seu gênio através de sua produção literária e, dessa forma, afirmasse sua autonomia.

A intenção de Denis, ao redigir o texto em questão, foi o de apresentar-se como um guia que indicava o caminho a ser seguido pelos poetas. Segundo Lajolo, o texto está prenhe de uma atitude normativa materializada nos verbos, presentes já no subtítulo, empregados pelo autor.

“Se essa parte da América adotou uma língua que a nossa velha Europa aperfeiçoara, deve rejeitar as idéias mitológicas devidas às fábulas da Grécia (...). A América, estuante de juventude, deve ter pensamentos novos e enérgicos como ela mesma (...). Nessas belas paragens, tão favorecidas pela natureza, o pensamento deve alargar-se como o espetáculo que se lhe oferece; majestoso, graças às obras-primas do passado, tal pensamento deve permanecer independente, não procurando outro guia que o observação. Enfim, a América deve ser livre tanto na sua poesia como no seu governo” (grifos da autora).

O emprego desses verbos denotaria a atitude prescritiva assumida por Denis ao apresentar um verdadeiro programa para a nacionalização da literatura brasileira. Nesse sentido, apesar da língua européia, o Brasil deveria rejeitar as “(...) idéias mitológicas devidas às fábulas da Grécia”, uma vez que se elas iluminavam a glória literária da Europa, na América escamoteariam as aspirações da Nação, impedindo a manifestação de seu caráter. E chega a ser enfático: “(...) ela [a literatura] deve ter caráter original”. Ter caráter original significaria a adoção pelos poetas de temas genuinamente americanos. Juntamente com a natureza exuberante, o indianismo foi ardorosamente defendido por Denis como sendo temática viabilizadora de uma literatura nacional. É persuasivo:

“A sua idade das fábulas misteriosas e poéticas serão os séculos em que viveram os povos que exterminamos e que nos surpreendem por sua coragem (...): a recordação de sua grandeza selvagem cumulará a alma de orgulho, suas crenças religiosas animarão os desertos; os cantos poéticos, conservados por algumas nações, embelezarão as florestas. O maravilhoso, tão necessário à poesia, encontrar-se-á nos antigos costumes desses povos (...) se essa natureza da América é mais esplendorosa que a da Europa, que terão, portanto, de inferior aos heróis dos tempos fabulosos da Grécia esses homens de quem não se podia arrancar um só lamento, em meio a horríveis suplícios, e que pediam novos tormentos a seus inimigos porque os tormentos tornam a glória maior?”.

Nessa citação, tem-se a essência do pensamento de Denis. A fonte de inspiração para os poetas estava nos antigos habitantes do território; voltando-se para essas hordas seria possível, afirmava, a concepção de poemas verdadeiramente patrióticos. Ao tratar da coragem e da bravura desses homens, o poeta estaria mirando-se na glória passada de sua Nação e nada deveria temer. A exuberante natureza americana só poderia produzir homens gloriosos capazes o suficiente de serem fonte de inspiração para grandiosas obras. Ao cantá-los em seus versos, os poetas dariam prevalência à cor local e, dessa forma, garantiriam a edificação do que se definia como sendo literatura nacional.

Denis faz uma, nas suas palavras, sumária análise de alguns poetas dos séculos XVII e XVIII, mas, não por acaso, detém-se longamente no estudo do poema de Santa Rita Durão, Caramuru, e no de Basílio da Gama, O Uraguai. É explícito:

“Não obstante, julguei-me obrigado a analisar a obra de Durão, porque reveste caráter nacional, apesar de suas imperfeições, e assinala claramente o objetivo a que deve dirigir-se a poesia americana”.

O magnífico assunto desses poemas era digno de desenvolvimento porque, conforme julgava, trazia a marca da originalidade ao tratar de temas concebidos como sendo genuinamente brasileiros. Durão e Basílio haviam acertado na escolha de seus temas e mereciam uma cuidadosa atenção dos poetas porque já apontavam as enormes possibilidades de se tirar todo o partido dos “povos extintos”. O erro dos poetas americanos, enfatiza, era não terem “(...) feito sempre sentir em sua produções (...) a cor local”.

Mas o Caramuru deveria ser considerado com ressalvas, segundo Denis, porque Durão havia exagerado ao colocar as cenas de antropofagia, no seu poema, sendo realizadas logo após a captura das vítimas. Ao tratar desse modo a antropofagia, Durão faria seus leitores acreditarem que tais povos tivessem apenas instintos ferozes, quando, na verdade, a natureza, por extravagância, havia-os dotado, simultaneamente, de uma inocência e de uma coragem grandiosas. Para Denis, “(...) tais cenas horripilantes faziam parte de horrendas cerimônias, preparadas com muita antecedência (...)”. O erro do poema estaria na imagem terrível que sugere dos indígenas. Se os nativos eram selvagens, não se poderia desconsiderar que simultaneamente eram intrépidos, inocentes, livres, astuciosos e capazes de amar profundamente. Enfim, possuíam todas as qualidades para formarem personagens heróicas tão grandiosas quanto os heróis europeus. Não haveria motivos justificador para os poetas americanos continuarem apartados do Novo Mundo, mirando-se em mundos distantes, ao invés de voltarem-se para, com espírito inflamado, a “(...) inocência das idades primitivas”.

A partir de uma fonte erudita, o indianismo era identificado como tema nacionalista. Segundo César, se a pretensão de Denis foi ser um guia para a literatura nacional, indicando-lhe um caminho a seguir, talvez devido ao entusiasmo de sua pregação, “(...) não houve leitor desse livro que não prestasse tributo à corrente indianista”. Denis foi capaz de contribuir de fato para despertar as tendências e para apresentar o bom selvagem como temática original e nacional. O indianismo foi, a partir de então, considerado como a tradição por ser capaz de possibilitar a expressão do espírito da Nação. Depois de Denis, concordam os atuais críticos literários:

“(...) tornou-se impossível pensar uma literatura autenticamente nacional sem a presença do índio. Do indianismo poucos autores do século XIX escaparam. O tema correspondeu a um salvo conduto para qualquer brasileiro (ou americanista) trafegar, e se estabelecer, no panorama artístico da época”.

No mesmo ano de 1826, no qual Denis editou seu Résumé, também em Paris Almeida Garrett publicou seu Parnaso Lusitano e a ele antepôs um texto com caráter introdutório: História abreviada da língua e poesia portuguesa. Nesse estudo, Garrett incluiu os principais autores do Brasil entre os poetas portugueses, mas censurou-lhes a submissão aos padrões europeus. Seria preciso, acreditava, que os poetas americanos se voltassem para sua “(...) cultura cheia de originalidade e força (...)”. Com paixão, Garrett pregou a adesão a motivos nacionais e terminou por impregnar “(...) profundamente (...) a geração da revista Niterói (...)”. Apesar de não ter tocado explicitamente no tema do indianismo, Garrett apontava o poema O Uraguai, de Basílio da Gama, como poesia “(...) verdadeiramente nacional e legítima americana”. Segundo suas concepções, esse poema seria americano porque trataria de um tema que considerava nacional: o indianismo.

Em 1847, Alexandre Herculano, “(...) então pontífice das letras portuguesas (...)”, redigia um artigo apreciando os Primeiros Cantos de Gonçalves Dias, publicados no ano anterior. Nesse texto, Herculano avaliava que os poemas em questão eram obras de “(...) inspirações de um grande poeta (...)”, de um poeta que soubera voltar seus olhos para “ (...) as harmonias dessa natureza possante (...), [para por em foco] (...) todos os raios vivificantes do formoso céu (...)”. A obra seria digna de apreço e consideração porque seu autor se volvera em direção à alma da Nação e procurara senti-la e expressá-la. Gonçalves Dias era grande, ao seu ver, porque soubera imiscuir-se em seu mundo e traduzi- lo em palavras.

Ao tecer essas considerações acerca da obra inicial de Dias, Herculano apontava aos outros poetas e escritores brasileiros qual era, segundo sua opinião, o caminho a ser trilhado por todos aqueles que se lançassem na árdua tarefa de construir uma literatura nacional. A reclamação de Herculano era a de que as Poesias Americanas, cuja temática predominante era o indianismo, deveriam ocupar maior espaço no conjunto dos poemas.

Ao reclamar uma maior presença de poemas dessa natureza ao seu autor, Herculano apontava o indianismo como sendo um veio capaz de permitir aos poetas vincularem-se ao seu meio e de expressarem o sentimento da nacionalidade.

“Quiséramos que as Poesias Americanas que são como o pórtico do edifício ocupassem nele maior espaço. Nos poetas transatlânticos há por via de regra demasiadas reminiscências da Europa. Esse Novo Mundo que deu tanta poesia a Saint-Pierre e a Chateaubriand é assaz rico para inspirar e nutrir os poetas que crescerem à sombra das suas selvas primitivas”.

Portanto, vinte e um anos depois de Denis ter apontado o indianismo como fonte original e legítima para a expressão do espírito da Nação brasileira, um dos grandes próceres da literatura romântica portuguesa aparecia em cena para repassar, apaixonadamente, a mesma idéia. Gonçalves Dias era por ele colocado como o exemplo “(...) da verdadeira poesia nacional do Brasil (...)” por ser capaz de demonstrar a esperança e a possibilidade do progresso das letras serem alcançadas mediante uma literatura considerada expressão de uma nacionalidade. O crítico não se contém e cita dois trechos de o Canto do Guerreiro.

O indianismo literário, entretanto, não seria fruto somente das penas de reconhecidos literatos estrangeiros. Se a importância desses intelectuais na edificação dessa temática não pode ser esquecida, a crítica literária brasileira também contribuiu para que o indianismo fosse convencionalmente construído.

Em 1836, um grupo de jovens – Domingos José Gonçalves de Magalhães, Manuel de Araújo Porto Alegre, Francisco de Sales Torres Homem, João Manuel Pereira da Silva, Cândido de Azevedo Coutinho – provavelmente sob a liderança do primeiro, lançaram em Paris a “Niterói, Revista Brasiliense de Ciências, Letras e Artes”. A preocupação desses jovens, balizados pelo nacionalismo literário, foi o de indicar ao Brasil uma trajetória para a construção de uma autêntica literatura nacional. Segundo Candido, a revista Niterói “(...) vale, no conjunto, por um manifesto organizado de independência literária”.

No primeiro tomo dessa revista, Gonçalves de Magalhães escrevia o “Ensaio sobre a história da literatura do Brasil” e nele manifestava sua crença de que a literatura revelava o caráter, o espírito, as virtudes e as paixões de um povo. “A literatura de um povo é o desenvolvimento do que ele tem de mais sublime nas idéias, de mais filosófico no pensamento, de mais heróico na moral e de mais belo na natureza, é o quadro animado de suas virtudes e de suas paixões, o despertador de sua glória, e o reflexo progressivo de sua inteligência”.

Segundo Magalhães, a literatura produzida até então no Brasil se olvidara do próprio país, permanecendo acorrentada às influências externas. Para ele, essa poesia não tinha um “caráter novo e particular”, porque presa à imitação. Sendo assim, ela não cumpria seu papel de alimentar e de ser simultaneamente alimentada pelos “(...) corações brasileiros ávidos de liberdade e de progresso”. E pergunta-se: “Pode o Brasil inspirar a imaginação dos Poetas?”.

Convencido de que a natureza exercia sobre os espíritos dos povos decisivas influências, afirma que os indígenas brasileiros cultivavam a poesia pois a “(...) natureza [d]o Brasil necessariamente inspirar devera seus primeiros habitadores”. A leitura dos cronistas do período colonial, permitiria constatar que, entre os gentios, a música e a poesia eram apreciadas e tidas em grande consideração. Apesar de constituírem “povos incultos”, os nativos nasciam poetas e músicos porque eram profunda e eternamente inspirados pela sublime natureza local.

Se essa natureza inspirara e moldara esses homens incultos, também os brasileiros nasciam músicos e poetas. Como as riquezas ocultas no seio da terra, a inspiração dos poetas brasileiros permanecia, contudo, tutelada pelos modelos europeus. Por um lado, os poetas deveriam abandonar a imitação e, assim como os indígenas, permitir que o gênio nacional se exprimisse. Por outro, os próprios indígenas, amantes da liberdade e da independência, poderiam ser fontes de inspiração para os poetas: “ Talvez tivessem eles de influir sobre a atual poesia brasileira, como os antigos bardos da Escócia sobre a poesia influíram do norte da Europa”.

Vinte anos mais tarde, em 1856, nas notas feitas ao seu poema Confederação dos Tamoios, Magalhães reforçaria sua crença de que os antigos habitantes do território constituíam fonte correta de inspiração para os poetas brasileiros. Eram homens bravios, amantes da liberdade e de sua terra natal, que preferiam a morte à escravidão. Esses indígenas possuiriam, segundo Magalhães, todos os valores a serem louvados pela civilização e, por isso, podiam e deveriam ser cantados pelos poetas.

“Canto por conseguinte virtudes civilizadoras”, virtudes que se encontravam já presentes no ser do indígena.

“Vítima ilustre [o indígena]
De amor do pátrio ninho e liberdade,
Ele, que aqui nasceu, nos lega o exemplo
De como esses dois bens amar devemos”.

Segundo Candido, a influência de Magalhães sobre seus contemporâneos talvez tenha sido inigualável. A impressão que se tem é a de que só se ingressava na literatura com seu aval, uma vez que era considerado como o fundador da reformulação da arte coeva. Foi esse literato que, em 1836, e, posteriormente, em 1856, apontaria o indianismo como sendo uma saída para uma nova sensibilidade artística nacional e nacionalista.

*

Em 1841, Joaquim Norberto de Souza e Silva, como prólogo às Modulações Poéticas, antepôs um Bosquejo da história da poesia brasileira99. Na introdução desse texto, Norberto afirmava que os selvagens brasileiros, que habitavam o território antes da sua conquista pelos portugueses, eram “(...) povos rudes e bárbaros (...)”. Entretanto, a portentosa natureza, através de suas encantadoras cenas, fazia-os poetas, elevando-os “(...) acima dos povos americanos pela sua imaginação ardente e poética (...)”. Para o autor, os “(...) novos brasileiros, filhos dos conquistadores portugueses (...)” não souberam aproveitar os pátrios costumes, os hábitos, e “(...) as tradições das tribos que as nossas florestas povoavam (...)” para produzir uma literatura de cunho nacional. Esses povos, afirmava, apesar de desaparecidos, poderiam, devido à riqueza de sua inspiração, ser tema poético para dar “(...) cores e feições nacionais à poesia (...)”.

No texto intitulado “Tendência dos selvagens brasileiros para a poesia”, publicado no tomo II da Revista Popular, Norberto retomava as idéias sobre a propensão dos indígenas brasileiros para a música e a poesia. Do mesmo modo que Magalhães, acreditava que, vivendo esses povos num território magnífico devido à exuberância de sua natureza, não poderiam furtar-se à tendência imperiosa de tornarem-se poetas.

“Sob o pomposo e magnífico céu do Rio de Janeiro, ante as cenas portentosas de sua natureza, à vista de sua esplêndida, pitoresca e risonha bahia, só não seria poeta um povo estúpido, destituído de toda inteligência”.

Os povos indígenas brasileiros, por mais feroz que fosse seu grupo, eram poetas e suas tradições e línguas favoreciam essa tendência. Segundo Norberto, essa afirmação poderia ser comprovada a partir da leitura de vários cronistas coloniais. Bastaria percorrer as páginas de Gabriel Soares, Jaboatão, Jean de Léry, Fernão Cardim, André de Thévet, Hans Staden para encontrá- las prenhes dos atos gentílicos admiráveis. Das páginas desses cronistas emergiriam indígenas que, além de “(...) afeiçoados à música, amigos da dança e célebres improvisadores (...)”,
seriam homens bravos, destemidos, amantes da liberdade e da tradição. Dos mitos indígenas e de seu caráter, os poetas deveriam extrair matéria suficiente e profunda inspiração para compor os poemas nacionais.”

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Fonte:
LAURA NOGUEIRA OLIVEIRA: "OS ÍNDIOS BRAVOS E O SR. VISCONDE: OS INDÍGENAS BRASILEIROS NA OBRA DE FRANCISCO ADOLFO DE VARNHAGEN". (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em história. Orientador: Prof Dr. Ciro Flávio de Castro Bandeira de Melo). Belo Horizonte, 2000.

Nota
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