O índio como símbolo da nacionalidade

"Com a Independência do Brasil, as elites a frente deste movimento, iniciaram a construção das bases de um Estado Nacional. Esse momento, foi marcado pelo nacionalismo e pela afirmação da soberania política, onde o jovem país espelhava-se nas tidas como grandes nações civilizadas da Europa. Na busca da afirmação da identidade da nova nação independente, de uma representação simbólica que expressasse a participação das raças na sua formação histórica, o branco por ser de origem portuguesa foi rejeitado, por significar a manifestação da antiga dominação da qual o país há pouco se libertara. A raça negra, nunca fora prestigiada, pois a condição de escravos trazidos da África e de coisificação a eles imposta não permitia pensá-la como representação da nacionalidade. Restava o indígena, que embora combatido no passado e no presente, era o filho originário da terra e assim como ninguém um elegível e legítimo representante simbólico da nacionalidade.

O ambiente posterior à proclamação da Independência, favoreceu a aspiração de uma produção literária e de outras expressões artísticas, com traços marcadamente nacionalistas. Já em 1825, uma gravura representava D.Pedro recebendo nos braços o Brasil liberto de grilhões, sob a forma de um índio. “O modelo teria sido a Viscondessa de Santos”! (Cândido, 1975:18). Coube ao Romantismo, movimento literário originário da Europa e em muito influenciado pelas idéias rousseaunianas, introduzido no Brasil na terceira década oitocentista, explicitar essa representação da nacionalidade, através de uma conjugação de elementos estéticos e épicos, com uma mentalidade nativista e politicamente conservadora.

Eleito como símbolo da nacionalidade, expressão do patriotismo, o indígena foi representado na literatura, nas artes plásticas, nos discursos políticos e de intelectuais. A História do Brasil foi relida epicamente, onde o indígena Tupi (Guarani) era o personagem principal. Este, estava representado nos painéis das casas nobres e nas estátuas dos seus jardins, nas fachadas e arquitetura dos edifícios, na pinacoteca nacional a Escola de Belas Artes. Cantados, exaltados, os indígenas tiveram suas línguas estudadas desde D.Pedro II, foram objetos de pesquisas etnográficas, estudando-se o folclore, as fábulas, etc. “Imaginou-se confundir brasileirismo, a nação histórica com antepassados aborígines” (Sodré, 1988:273). O próprio manto do Imperador era trabalho indígena, confeccionado com penas de papos de tucanos (Amoroso e Saèz, 1995:251). A elite política da época encarnou o espírito indianista. Os abrigados na maçonaria eram conhecidos por cognomes indígenas, como José Bonifácio que nas reuniões do Apostolado Maçônico chamava-se “Tibiriçá”, proprietário do Jornal “O Tamoio”, opositor a D.Pedro Grão-Mestre maçônico, intitulado “Guatimozin”, homenagem ao líder indígena da resistência ao colonialismo na América Espanhola. Por todo o Brasil o
“grande furor nativista” motivou que nomes indígenas também fossem incorporados aos próprios nomes de famílias nobres da época, assim surgiram os Buritis, Muritis, Juremas, Jutais, Araripes, e em Pernambuco além da família Carapeba, seguindo a tendência nativista, outras famílias adotaram os sobrenomes Brasileiro, Pernambucano, Maranhão. (Freyre, 1984: 452).

Na literatura o cultivo de uma imagem simbólica para o novo Estado-Nação, a questão da marginalidade imposta aos indígenas na época foi um tanto desconsiderada. O Romantismo dedicou-se a reler em tom épico o passado histórico do Brasil. Quanto a violência imposta aos indígenas pelos colonizadores, o Romantismo deixando-a de lado, exaltou a bravura indígena, a resistência e a morte heróica, como expressou Gonçalves Dias em seus poemas. Todavia, a diversidade do movimento romântico, provocou formas diferenciadas de abordagens pelos vários autores. Exemplo disso foi uma polêmica ocorrida entre o poeta Gonçalves Magalhães e José de Alencar, quanto às fontes para a inspiração literária. Essa polêmica demonstra além das compreensões sobre história existente na época, as estreitas relações entre o Romantismo e a política, das imagens indígenas cultivadas no movimento romântico e os seus reflexos posteriores sobre a política indigenista oficial.

Magalhães foi duramente criticado através de cartas publicadas no Diário do Rio de Janeiro com o pseudônimo “Ig”, cuja autoria era José de Alencar. O autor da “Confederação dos Tamoios”, publicada em 1856, uma epopéia da nacionalidade onde aparecia “uma galeria inteira de personagens históricos indígenas, portugueses e franceses (Amoroso e Saèz, op.cit., 244), foi criticado pelo jovem Alencar sob acusação de inspirar-se em relatos de cronistas dos séculos XVI e XVII, desconhecendo a realidade histórica do país. Intelectuais românticos abrigados no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado e com participação ativa de D. Pedro II, juntamente com o próprio, saíram em defesa de Gonsalves Magalhães. Acontecia o conflito de duas gerações de escritores românticos, “o jovem Alencar anunciava o seu desejo de produzir uma nova concepção de brasilidade”, recusando assim “o modelo classicista de Magalhães que procedia a aclimatação das musas européias para contar a epopéia nacional”(Alonso, op.cit., 247). Tratava-se de diferentes concepções de imagens acerca dos indígenas no século XIX.

Gonçalves Dias poeta maraense autor na época da celebrizada “Canção do Exílio”, foi recebido triunfalmente no Rio de Janeiro e acolhido no IHGB, tornando-se estudioso da História do Brasil. O exercício do emprego público permitiu-lhe afastar-se da inspiração romântica francesa e aproximar-se dos indígenas concretos. Como funcionário do Governo teve a oportunidade de fazer viagens em 1859 e 1861 às Províncias do Norte, onde pôde conhecer mais de perto os índios, resultando na produção do seu poema mais conhecido “Y-Juca Pirama”. Viajou também a Europa, onde capacitou-se para pesquisas etnográficas, estudando craniologia, galvanoplastia, fotografia, física e fisiologia. Conhecimentos destinados aos estudos dos indígenas quando retornou ao Brasil (Amoroso e Saèz, op.cit., 245-246), produzindo relatórios etnográficos lidos em sessões do IHGB. Aliás foi neste local onde ocorreu em meados do século XIX, “acirrado debate” entre os que advogavam a história e os defensores da literatura. Discutiam sobre a viabilidade do indígena representar a nacionalidade brasileira. Em 1852, o historiador Adolfo Varnhagen chegou a escrever solicitando ao Imperador tomar uma atitude diante do indianismo de Gonsalves Dias, por este possuir “idéias que acabam por ser subversivas”, em uma literatura exprimindo a imagem do indígena como representante da “brasilidade” (Guimarães, 1981:14-12).

A produção literária do Romantismo atingiu maior vigor entre as décadas de 40 e 60, tendo em Gonçalves Dias e José de Alencar seus maiores representantes. As obras Alencarianas “O Gurarani” publicado em 1857 nos folhetins do Jornal Correio Mercantil do Rio de Janeiro, “Iracema”(1865) e “Ubirajara”(1874), alcançaram grande sucesso junto ao público. A oposição entre a imagem do índio domesticado (integrado), manso, e a imagem do “bárbaro”(feroz), está presente nas obras desse período. Alencar representou essa dualidade entre o Tupi como imagem do índio assimilado e o bárbaro simbolizado pelos Aimorés, que aparecem no romance “O Guarani”. O próprio autor justificava a sua imagem: “N’O Guarani o
selvagem é um idéia que o escritor intenta poetizar, despindo-o da crosta grosseira de que o envolveram os cronistas, e arrancando-o ao ridículo que sobre ele projetam os restos embrutecidos de quase extinta raça”(Nicola in, Alencar, 1994:XV). O Tupi (Guarani) representado é a imagem do índio dócil, sem oferecer perigo, enfim submisso, em oposição aos chamados de “embrutecidos”, o índio bárbaro, simbolizado nos Aimorés.

Como símbolo da nacionalidade, a imagem do indígena, mais precisamente do Tupi (Guarani) expressada pelo Romantismo aparecerá como representação do Brasil na diversas caricaturas políticas em muitos periódicos ao longo do século XIX, intitulará também vários jornais publicados em Recife: ”O Tupinambá”(1832), “O Indígena”(1836), “O Indígena”(1843-44), “Iracema”(1882), “O Tamoyo”(1890-93)2. O indígena foi representado tanto como imagem heróica, de bravura na luta contra o colonizador português, servindo para nomear jornais de oposição, quanto como releitura histórica idílica para favorecer aos grupos políticos da situação. Nessa perspectiva as obras de José de Alencar, expressaram uma idealização e mitologização da História do Brasil, onde o horizonte claro era a civilização (branca) e suas instituições. As relações dos personagens Peri e Iracema com o agente colonizador português na obra alencariana, foram estabelecidas em uma releitura idílica da colonização, para exaltação heróica de imagens a serem perpetuadas na memória coletiva da nacionalidade brasileira. A imagem do indígena assimilado porque assimilando a civilização (colonização) (Bosi, 1992:177-179).

José de Alencar tornou-se o maior romancista do período oitocentista. Através de suas obras indianistas publicadas em meados do século XIX, o escritor cearense consolidava seu projeto de descrever a formação da identidade nacional. As imagens de ambientes indígenas, pautavam-se por uma preocupação com a “verossimilhança histórica”, por meio da caracterização dos lugares, hábitos e da própria história do país, em um esforço de “recontar a própria história, buscando no passado traços da nossa civilização” (Alonso, op.cit.,248), estabelecendo um estreita relação entre imagem indígena e nacionalidade. A idealização das imagens indígenas, compreendeu as necessidades do nacionalismo e do nativismo da época: o Brasil Independente que emergia de um contexto colonial. O culto épico das imagens indígenas pelo Romantismo literário foi ironizado por João Francisco Lisboa: “O nosso atual Imperador, dizem, mostra grande interesse e curiosidade por tudo quanto diz respeito as raças aborígenes, que antigamente senhoravam o seu vasto império. Um grande poeta (e os poetas são também reis e imperadores a seu modo, e dentro da sua esfera) no primeiro ardor que uma imaginação ainda virgem, e longe, da pátria ausente, cantou, envernizou, poetizou, enfim os costumes ingênuos, as festas inocentes e singelas, as guerras heróicas, a resignação sublime, e a morte corajosa, bem como os trajes elegantes e as decorações pomposas dos nossos selvagens. E ais aí todo o mundo a compor-se e menear-se a exemplo e feição dos reis, a aturdindo-nos em prosa e verso com tabas muçuranas, janúbias e maracás”. (in, Candido, 1975:19). O sarcasmo presente nas afirmações do historiador e político liberal maraense ao referir-se a Gonçalves Dias e ao Imperador Pedro II, demonstra também as relações existentes entre os adeptos do Romantismo e a política conservadora.

Também em muitas estampas imagens indígenas foram representadas por pintores e artistas-viajantes que estiveram percorrendo as várias regiões do Brasil no século XIX. Muitas das imagens, são dos “Botocudos”, nome genérico com o qual foram denominados diversos grupos indígenas considerados bravios, habitantes em regiões limítrofes da Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo e o Rio de Janeiro. Combatidos com “guerra justa” de extermínio, escravizados “enquanto durasse sua ferocidade” por determinação de D. João VI em Cartas Régias de 1808 e 1809 (Marcato, 1979: 7-8), esses indígenas foram objeto de curiosidade e estudos por naturalistas que estiveram visitando-os em expedições promovidas entre 1817 e 1825. As publicações, os relatos resultantes dessas expedições, segundo estudos críticos, reproduzem em grande parte, as informações e até mesmo em muitos casos, as estampas são cópias litográficas baseadas na obra “Viagem ao Brasil” de Maximiliano de Wied-Newied, o primeiro empreendedor de uma viagem às regiões citadas. (Hartmann, 1975). O trabalho de Rugendas é incluído dentre estes baseados na publicação de Maximiliano.

Nas pinturas de Rugendas, percebe-se a diversidade bem como a pluralidade de imagens sobre os indígenas no Brasil oitocentista. Além de imagens épicas cultivadas pelo Romantismo literário do índio dócil (o civilizado) que sobrepôs uma outra imagem de barbárie, existiram outras imagens da inferioridade, da “degeneração”, da extinção do indígena. As imagens do artista-viajante que esteve no Brasil nos primeiros anos logo após independência, reproduzidas em sua obra “Viagem Pitoresca Através do Brasil”, foram imagens de “tribos selvagens” espalhadas pelo interior do país as quais o desenhista diferenciando-as entre Tupis e Tapuias, de acordo com as línguas faladas, acentuou todavia, “as diferenças de organização física são menos sensíveis” e que “os Tupis e os Tapuias têm caracteres comuns pronunciados”. Quando comparou-os com a cor e o crânio da raça mongólica da Ásia, escreveu o que os distinguia principalmente, “é o fato dos Tapuias terem membros mais robustos, estatura mais elevada e um aspecto, até certo ponto, mais humano” (Rugendas, 1979:100). Nas considerações históricas e as várias descrições de “Usos e Costumes dos Índios”, que acompanham as estampas coloridas publicadas por Rugendas, estão expressas outras imagens que o autor possui dos índios: “os índios não são homens em estado natural e não são selvagens, mas sim que retrocederam ao estado de selvageria, porque, foram rechaçados violentamente do ponto a que haviam chegado” (Rugendas, op.cit., 104). Para Rugendas os indígenas estavam reduzidos a uma imagem de brutalidade, resultado das violentas guerras da colonização. Essa imagem de total brutalidade indígena, para o artista, destruiu a capacidade de civilização do índio. O pintor alemão pôs em dúvidas o estado de desenvolvimento físico e intelectual do indígenas e afirmou que, “seria injusto, entretanto, considerar os índios como depravados; eles não tem nenhuma idéia moral dos direitos e deveres. A exceção de suas necessidades, sua vida pouco difere das dos animais selvagens, com os quais partilham das florestas primitivas” (Rugendas, op.cit., 159).

Quanto as imagens indígenas pintadas nas estampas que deixou Rugendas, observa-se uma uniformidade nos traços físicos dos rostos que foram desenhados, além de que as figuras humanas dos índios nus representadas seguem a uma “concepção rousseuniana de homem primitivo” e segundo os padrões de perfeição de beleza estética greco-romana. (Hartmann, op.cit., 81-85). As observações dos quadros produzidos por Rugendas onde os indígenas foram pintados de formas assemelhadas com tipos da época de Luiz XIV, revelam a projeção a partir do horizonte europeu das imagens como o artista -viajante retratou os indígenas e os descreveu em sua obras. Significativa foi a declaração do próprio Rugendas: “Mais de uma vez acontece ao viajante, por na boca do índio a resposta que deseja obter, ou explicá-la de acordo com suas idéias próprias” (Rugendas, op.cit., 160), demonstrando, os condicionamentos, as imagens pré-concebidas acerca dos indígenas, expressadas pelos viajantes que estiveram no Brasil no século XIX. Por outro lado, houve ainda uma correlação entre indianismo e sertanismo, estilos literários que se sucederam. O sertanismo procurava descrever o Brasil verdadeiro, original e puro do interior, transferindo ao sertanejo, ao habitante do interior, ao trabalhador da terra, o dom de exprimir o Brasil (Sodré, op.cit., 323). Em “O Sertanejo”, obra de José de Alencar publicada em 1875, Arnaldo personagem principal do enredo é apresentado como homem arredio, bom, simples e servidor, primeiro vaqueiro de uma fazenda, figura excepcional e misteriosa, com o pleno conhecimento e domínio da natureza, tendo hábito de dormir no alto de árvores na mata, cercado de animais selvagens, sabendo distinguí-los como ninguém. Ao final deste romance, há um diálogo significativo. Arnaldo conversa3 com o fazendeiro, seu patrão:

E para si, Arnaldo, que deseja? Insistiu Campelo.
Que o Sr. Capitão-mór me deixe beijar sua mão: basta-me isso.
Tu és um homem, e de hoje em diante quero que te chames
Arnaldo Louredo Campelo.

Pelas características de Arnaldo descritas por Alencar, pode-se atribuí-las as de um indígena que carregando as peculiaridades de sua condição, convive integrado ao mundo social da fazenda onde trabalha. Arnaldo é apresentado como submisso ao seu senhor e patrão. A sua submissão é o preço do seu reconhecimento: “Tu és um homem”. Todavia, para sê-lo em plenitude, Arnaldo deve aceitar incorporar ao seu nome, o nome do capitão-mór, seu patrão e senhor. Tantos estas imagens acerca dos indígenas, como as expressadas nas pinturas dos artistas no século XIX, foram incorporadas ao imaginário coletivo do país na época, e posteriormente ao serem reproduzidas nos manuais didáticos de História e Literatura.”


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Fonte:
Edson Hely Silva: “O LUGAR DO ÍNDIO. CONFLITOS, ESBULHOS DE TERRAS E RESISTÊNCIA INDÍGENA NO SÉCULO XIX: O CASO DE ESCADA-PE -1860/1880." (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em História da Universidade Federal de Pernambuco, em cumprimento às exigências para a obtenção do grau de Mestre em História. ORIENTADOR: Prof. Dr. Marcus Joaquim Maciel de Carvalho). Recife, 1995.

Nota
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