O processo cafeicultor paulista nos anos 1920: da plantação ao porto

Para compreendermos como as medidas preconizadas pela comissão científica de combate à broca do café incidiram sobre o cotidiano da produção cafeeira, é necessário apresentar sua dinâmica e a maneira pela qual se organizava nos anos 1920, desde a plantação até a exportação, passando pelo beneficiamento e transporte. Deve-se levar em conta, porém, que tal dinâmica, retratada em sua sincronia, é fruto de idiossincrasias e contingências próprias ao modo como aquela cultura era praticada: tipos de propriedade, graus de mecanização, localizações e, ainda, modalidades de gestão da produção. Se havia peculiaridades, isto é, se nem todos plantavam e exportavam café exatamente da mesma maneira, por outro lado, é possível delinear os traços comuns que caracterizavam a cafeicultura naquele contexto histórico.

Como já foi apontado, a mão de obra era constituída por imigrantes estrangeiros, principalmente italianos, além de migrantes nacionais. Estes eram oriundos de regiões em decadência econômica, como o Nordeste e algumas áreas de Minas Gerais, cuja corrente migratória começava a ganhar vulto naqueles anos de 1920. A Alta Paulista e a Alta Mogiana eram as zonas mais dinâmicas de produção, onde os fazendeiros apresentavam perfil urbano e empresarial, de modo que o empreendimento da cafeicultura obedecia a uma racionalidade capitalista. Embora fosse predominante em São Paulo, a grande propriedade não era a única forma de exploração da terra. Havia os sitiantes e pequenos proprietários. Impossibilitados de investir capital no maquinário de beneficiamento, entregavam a produção a intermediários da comercialização - comissários e ensacadores –, ou mesmo a latifundiários, que muitas vezes acumulavam as funções de produção e comercialização. A maioria destes permanecia ausente das fazendas: realizavam apenas visitas periódicas e entregavam a gestão a administradores, que procuravam otimizar as rotinas de cultura. As fazendas deixaram de ser um espaço de luxo e conforto para estruturar-se como uma típica unidade de produção; um complexo de edifícios construídos para abrigar as máquinas e organizar de forma racional o cotidiano da cafeicultura.

No material coligido para o presente estudo, são recorrentes as queixas a respeito do “espírito de rotina” que dominava a cultura cafeeira. Manoel Lopes de Oliveira Filho, agrônomo e jornalista responsável pela coluna “Assumptos Agrícolas” em O Estado de São Paulo, num opúsculo distribuído pela secretaria de agricultura de São Paulo em 1928, escreveu que o método de cultivo era o mesmo praticado havia cem anos (Oliveira Filho, 1928, p. 9). Tal obra é uma fonte preciosa para a reconstituição do cotidiano da cafeicultura nos anos 1920, já que descreve os diferentes estágios da produção cafeeira. Em termos gerais, eram os seguintes: preparo do solo, plantio, colheita, beneficiamento, transporte e comercialização. A abundância de terras, que permitia “a febre de plantação em terras virgens” fazia com que a reposição dos nutrientes do solo não fosse prática corriqueira. A fertilidade da terra roxa, na maior parte do oeste paulista vista como o tipo de solo mais favorável para o café, reforçava o abandono das plantações antigas e a busca por áreas mais produtivas. Quando as frentes pioneiras em avanço se deparavam com a cobertura vegetal nativa, eram contratados trabalhadores para fazer a derrubada e depois a queima da mata. Alocavam-se preferencialmente ex-escravos e migrantes nesse tipo de serviço.

Além do solo favorável, o oeste paulista apresentava conformação montanhosa pouco elevada, ideal para o cultivo do café, que era geralmente plantado em morros e colinas. Tal característica não favorecia o uso de muitos aparelhos mecânicos e obrigava os colonos a lançarem mão de instrumentos rotineiros, como a enxada ou enxadão (Queiroz, 1914, p. 32). Faziam a preparação e conservação do solo através de técnicas como a capina, manual ou mecânica, e a “esparramação” do cisco, de forma a manter o terreno limpo. (Lapa, 1983, p. 57). Máquinas como o cultivador e o ciscador auxiliavam o trabalho, já que tinham por função revolver o solo e extirpar ervas daninhas (Queiroz, 1914, p. 33).

Vencida essa etapa, procedia-se à plantação. Segundo Queiroz (1914, p. 22), que retratou uma fazenda de café típica do oeste paulista, em Mococa, a contratação da mão de obra para a plantação era feita através do pagamento de uma quantia fixa por alqueire de terra, ou por certo número de cafeeiros, além do direito de plantar cereais para própria subsistência durante três anos.10 Diversas variedades de café eram cultivadas no Brasil, mas todas originadas do Coffeae arabica (Lapa, 1983, p. 57). Faziam-se as sementeiras nas próprias fazendas e, uma vez crescidas as mudas, eram selecionadas e plantadas na época das primeiras chuvas, geralmente em setembro (Idem, p 58). O ideal era que as sementeiras fossem montadas em local fresco e à sombra, como clareiras em matas, próximas às áreas onde se realizaria o plantio (Queiro, 1914, p. 136). Os cafeeiros eram plantados em curvas de nível, de forma a evitar a erosão pela água da chuva. Junto podiam ser plantadas árvores de médio porte para fornecer sombra às plantas em crescimento. Tal prática não era regra entre os produtores, prevalecendo, no Brasil, a exposição permanente ao sol, ou o cultivo à meia sombra (Lapa, 1983, p 59). Os cafezais eram divididos em talhões separados por carreadores (Sallum Jr, 1982, p. 27).

Até que o cafeeiro produzisse os primeiros frutos, período que variava de quatro a seis anos (Love, 1982, p. 66), havia necessidade de uma rotina de tratamento que incluía a “coroação” – formação de uma coroa de terra em volta do pé – e a “arruação”: abertura e manutenção de vias entre os cafeeiros para circulação dos trabalhadores (Lapa, 1983, p. 59-60).

Na primavera, as plantas vegetavam e frutificavam, prolongando-se a frutificação pelo verão até dar lugar à maturação no outono. Assim, entre abril e maio, o fruto do café adquiria coloração vermelha ou amarelada. A colheita acontecia normalmente entre 15 de junho a 15 de agosto, havendo variações de acordo com a região em que era cultivado o café. Por ocorrer num pequeno espaço de tempo, a colheita demandava grande quantidade de mão-de-obra, a fim de impedir que os frutos, uma vez secos, caíssem. Antes de começar a colheita, realizavam-se varrições e rastelamentos, para evitar que os frutos caídos prematuramente ficassem entre os pés.

Os processos tradicionais de colheita eram o arrancamento manual dos frutos presos aos galhos; a “derriça natural”, em que se esperava a queda espontânea dos frutos secos sobre um pano colocado embaixo do cafeeiro; ou ainda a “catação”, ou seja, a colheita manual, grão a grão, que tinha a vantagem de permitir melhor seleção dos frutos (Lapa, 1983, p. 60). Era habitual a colheita ser feita quando havia ainda grande quantidade de frutos verdes, assinala Oliveira Filho (1928, p. 12-3), o que prejudicava a qualidade do café durante a comercialização. Ganhou bastante publicidade nos anos 1920 a “colheita natural”, que consistia em sacudir as árvores até que caíssem os frutos já secos, efetuando-se em seguida a varrição e o recolhimento aos terreiros (Idem, p. 13-4). Fosse qual fosse o método de colheita empregado, seguia-se a “abanação”, que consistia em deixar o café o mais livre possível de ciscos e impurezas.

O café era então conduzido aos lavadouros e em seguida aos terreiros, ou diretamente para estes. O processo de lavagem mostrava-se mais comum nas grandes propriedades, auxiliando no processo de separação dos frutos em bóias (secos, escuros), cerejas (vermelhos) e verdes (Oliveira Filho, 1928, p. 15). A lavagem ajudava ainda na limpeza dos ciscos, principalmente se a colheita era feita pelo derriçamento (Queiroz, 1914, p. 154). Na secagem, o café era espalhado em terreiros ladrilhados ou pichados e amontoado ao final do dia, já meio seco, e coberto, para ser protegido do sereno e das chuvas. A secagem podia ser feita artificialmente através de secadores que economizavam tempo e mão-de-obra. Quando chegava ao ponto ideal, o café era depositado nas tulhas – armazéns construídos em locais secos – antes de ser submetido ao beneficiamento.

O beneficiamento foi a etapa que sofreu maior aperfeiçoamento tecnológico no processo de produção, constituindo um fator de distinção entre os produtores; já vimos que a mobilização de capital necessária para a aquisição das máquinas obrigava muitos proprietários a entregarem sua colheita àqueles que podiam fazê-lo. O beneficiamento consistia em libertar os grãos de café de seus envoltórios protetores (Sallum Jr., 1982, p. 18). Demandava o uso de equipamentos como ventilador, descascador, aspirador, ventilador de cascas e, ainda separador de café (Oliveira Filho, 1928, p. 16-7). A última etapa era a torrefação, não necessariamente realizada no âmbito da fazenda. O maquinário de beneficiamento requeria conservação e manutenção constantes.

O café beneficiado era acondicionado em sacos feitos geralmente de tecidos semelhantes à juta. Transportavam-se as sacas da fazenda para o porto através das ferrovias que riscavam as colinas do oeste paulista, abarcando a quase totalidade das regiões produtoras. Estradas particulares ou picadas acessíveis apenas a mulas ligavam as fazendas à estação ferroviária mais próxima. No porto de Santos havia todo um aparato voltado para o acondicionamento do café, antes de ser ele transferido para os navios que o transportaria a seus destinos finais. O café determinou a modernização do porto de Santos, de modo a otimizar o escoamento da produção. Além do incremento no setor comercial, com a fundação da Associação Comercial de Santos, houve a implementação de uma nova alfândega e da Companhia Docas de Santos, que por 90 anos monopolizaria as operações no porto (Grieg, 2000).

Os armazéns gerais, que consistiam num sistema comercial de depósito, articulavam-se às companhias exportadoras e a um complexo de serviços sediados na praça de Santos, que asseguravam o embarque de café e a comercialização em grande escala, para que esta pudesse ser feita em perfeitas condições (Lapa, 1983, p 102).

Quando entrou em vigor a política de valorização do café, surgiram os armazéns reguladores, que retinham a produção a fim de controlar a oferta no mercado mundial. Tais armazéns ficavam nas principais estações ferroviárias do estado, principalmente nos entroncamentos, onde os sacos de café eram transportados para outras composições.

Tendo em mente este sucinto quadro das rotinas de produção e comercialização do café em São Paulo nos anos 1920, o leitor poderá compreender de que modo as medidas interventoras de combate à broca do café levaram à reordenação de certos aspectos dessa dinâmica, ou a sujeição a outros aspectos dela.”


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Fonte:
ANDRÉ FELIPE CÂNDIDO DA SILVA: “CIÊNCIA NOS CAFEZAIS: A CAMPANHA CONTRA A BROCA DO CAFÉ EM SÃO PAULO -1924-1929. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de pós-graduação em História das Ciências da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz como requisito para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: História das Ciências Orientador: Prof. Dr. JAIME LARRY BENCHIMOL). Rio de Janeiro, 2006.

Nota
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