A secularização em debate

"Quando pensamos na identificação de um indivíduo que se define, ou é definido, como sem religião, a tendência é que, num primeiro momento, o analisemos através do prisma da secularização. Todas as transformações decorrentes do desenvolvimento das cidades, da industrialização, do avanço tecnológico, das descobertas científicas e da ampliação dos fluxos de informação, parecem ter arremessado o pensamento religioso para o espaço. Nesse contexto, o indivíduo emancipado dos mitos de origem, dos dogmas, das autoridades eclesiásticas, sente-se livre para buscar as respostas para suas dúvidas fora dos livros sagrados. Ressaltamos, no entanto, que nesse cenário a religião institucional não desaparece, mas se transforma para se adaptar às novas condições. Ocorre um processo de reorganização do religioso e, também, considerando o que já apontamos, do entendimento do termo religião. Diante da possibilidade de um novo estilo de vida, a autonomização dos indivíduos do domínio religioso institucional, como demonstrado a seguir, não implica necessariamente no rompimento de sua relação com o transcendente, nem o impede de experimentar ofertas de bens religiosos num mercado plural. Estamos diante, então, de uma conjuntura de ampliação das liberdades individuais, onde se estabelece um diálogo entre tendências secularizantes e dessecularizantes e do rompimento com a tradição.

Muito já foi comentado acerca dos encaminhamentos do processo de secularização, em toda sua abrangência, em diferentes correntes das Ciências Humanas e Sociais. Na Sociologia, por exemplo, há um vasto debate, onde se destacam autores como David Martin, Steve Bruce, José Casanova e Karel Dobbelaere, entre outros. Especialmente no campo da religião é muito freqüente encontrar pesquisadores que dedicam um capítulo de sua publicação a uma revisão bibliográfica sobre a secularização. Porém, não é nosso propósito trilhar esse mesmo caminho aqui, mas sim apresentar algumas das facetas mais relevantes da secularização para que possamos refletir sobre sua aplicação ao nosso objeto de estudo, o indivíduo sem religião. Diante disso, fizemos uma seleção de autores considerando clássicos e contemporâneos, até mesmo alguns daqueles que fizeram uma revisão bibliográfica interessante, para mapear algumas reflexões sobre a temática.

Em sua leitura do conceito de secularização, o filósofo Giacomo Marramao (1995; 1997) a descreve como um processo que marca o avanço da modernidade em todos os seus aspectos: Artes, Ciências, Política, fazendo parte da história do pensamento humano. Historicamente, o conceito tem sua origem no Direito Canônico, na sua forma latina (saecularisatio: saecularis, saeculum), como vocábulo surgido a partir dos últimos decênios do século XVI, nas disputas canônicas francesas, indicando a passagem de um religioso “regular” a “secular”57. Ou, de modo geral, como em outros estudos, referido à “redução à vida laica de quem recebeu ordens religiosas ou vive segundo regra conventual” (MARRAMAO, 1997, p. 17). Sua utilização acabou sendo ampliada, tendo sido adaptado e reinterpretado ao longo dos últimos dois séculos. Durante a Reforma, apareceu como uma metáfora no âmbito jurídico referindo-se à expropriação dos bens eclesiásticos em favor dos príncipes ou igrejas reformadas. Posteriormente, foi apropriado pela Filosofia, Teologia, História, Sociologia e Ética, no sentido de descristianização. Passou a traduzir a ruptura com os princípios cristãos, servindo também como sinônimo de dessacralização, abrangendo tanto a mensagem cristã quanto anticristã. Mais simplesmente indica o rompimento com as instituições religiosas (MARRAMAO, 1997, p. 17). A partir do século XVIII o vocábulo secularização superou os limites de sua acepção jurídica para tornar-se, então, uma categoria genealógica, mais geral, “indissoluvelmente coligada com o novo conceito unitário de tempo histórico”. Foi adotado pela Sociologia anglo-saxã e pela francesa, adquirindo outras conotações simbólicas relacionadas às problemáticas do desenvolvimento histórico da sociedade ocidental moderna como emancipação e progresso, liberação e revolução, resultando em definições radicais e deslocamentos de significados (MARRAMAO, 1995, p. 29; 1997, p. 15; 1995, p. 23).

Para Marramao (1997, p. 15-6) o conceito de secularização pode ser considerado um “exemplo clamoroso de metamorfose de um vocábulo específico em uma das principais palavras-chave da era contemporânea”, tendo sido empregado, para descrever várias situações. Como conseqüência dessa abrangência, tornou-se, hoje, um termo “tanto difuso quanto indeterminado e controverso”.

Uma interessante revisão bibliográfica sobre a secularização foi apresentada por Paulo Barrera (2001, p. 115), no campo da Sociologia da Religião e mostra alguns aspectos controversos desse conceito. Ele amplia o entendimento do emprego do vocábulo secularização. Segundo o autor, aparentemente, o radical “secular” é derivado do latim saeculum, indicando duração de uma geração (espaço de 100 anos). Em sentido figurado, é interpretado como “período indeterminado de duração de uma vida, de uma época ou daquilo que se repete regularmente (como o ordinário, o mundano). A partir deste significado, a expressão distingue-se dos votos monásticos, que determinam um afastamento do mundo”. Para Paulo Barrera, a secularização é o processo inverso da sacralização; contudo, quando se considera que, na modernidade ocidental não há Estado sagrado, não há o que secularizar.

Secularização também pode ser utilizada para designar a separação entre o sagrado e profano. A despeito das dificuldades para distinguir com clareza ambos os domínios, secularização indica o recuo da religião, aqui compreendido como a autoridade da igreja sobre a sociedade medieval, o que se apresenta como um consenso com os demais autores que passam pela secularização. O autor ressalta, ainda, que os dicionários indicam “leigo” como sinônimo de “secular”, o que também pode incorrer em alguns erros de interpretação. O termo leigo, por exemplo, detém informações diferentes para o latim laicus e para o grego laikós. Se o primeiro se define em oposição às ordens sacras ou alheio a um assunto, o segundo indica comum ou vulgar. Nesse sentido, “a secularização é um a processo que avança tirando terreno do sagrado; “leigo” pode ser aquilo que nunca adquiriu caráter sacro” (BARRERA, 2001, p. 116). Além disso, lembra que, na Europa ocidental medieval, o sagrado era determinado pela igreja cristã, que tinha poder político para controlar toda a sociedade. Aqueles que conseguiam escapar desse controle colocavam-se no “campo secular” (BARRERA, 2001, p. 117). Esse posicionamento era visto como sinônimo de ousadia. Assim ele traduz o termo secularização como “a fuga do controle eclesial e da heteronomia em prol do controle político do Estado e do autocontrole”.

Mais um autor que participa do debate da secularização é Demetrio Velasco (2006, p. 15-6), que a descreve como um fenômeno complexo que se refere a processos sociais distintos, que não devem ser confundidos entre si. São eles: a) secularização como diferenciação e emancipação das esferas seculares com referência às instituições e normas religiosas; b) secularização como decréscimo das crenças e práticas religiosas, até seu desaparecimento definitivo; e, por fim, c) secularização como “marginalização” da religião na “esfera privada. Demetrio Velasco explica que esses processos podem coexistir, mas variam de acordo com a realidade social. Em vários países da Europa eles se produziram simultaneamente e, por isso, as teorias sociológicas dominantes afirmavam que estavam todos interligados. No entanto, ao perceber que a secularização não ocorria da mesma forma em todos os lugares, os sociólogos da religião norte-americanos alertaram que, face às diferenças, não havia porque continuar interpretando secularização daquela forma. Isso levou o autor a compreender também a laicidade em suas diferentes vertentes, como será mais bem explicado a seguir. Dessa forma, cada país tem o seu processo de secularização particular, assim como seu nível de laicidade. Há toda uma conjuntura, influenciada por aspectos histórico-sociais que interferem na forma como ocorre o processo de secularização, quando ocorre, em cada lugar. A despeito de todas essas ressalvas, compreendemos que o conceito secularização tem um núcleo central do qual parte seu significado mais geral, interpretado basicamente pela autonomização das diversas esferas da vida social da tutela da religião.”


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Fonte:
Denise dos Santos Rodrigues: "Os 'sem religião' e a crise do pertencimento institucional no Brasil: o caso fluminense". (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientador: Profª Drª Cecília Loreto Mariz). Rio de Janeiro, 2009.

Nota
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A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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