Alimentação e doenças na medicina oitocentista (no Brasil)




"Os primeiros estudos acadêmicos sobre a relação da alimentação com os males dos brasileiros remontam à segunda metade do século XIX, época em que se evidenciaram importantes mudanças sociais, econômicas e políticas no Brasil: consolidação política do Império, ampliação das áreas de cultivo do café, expansão demográfica e urbana; desenvolvimento dos transportes e das comunicações; aumento gradativo da faixa de trabalho livre, sobretudo nas cidades. Esse período foi marcado pela grande crise da transição do trabalho servil para o livre.

O crescimento demográfico foi significativo ao final do século XVIII, as cinco maiores cidades de então, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Luís e São Paulo, congregavam aproximadamente 177 mil habitantes. Com a expansão populacional, as mazelas sociais ficaram mais evidentes, a pobreza, as doenças, a deficiência alimentar passaram a ser notadas pelos observadores e estudiosos como sendo extremamente problemáticas.

As epidemias evidenciavam os desdobramentos funestos da fome e seus componentes sociais. Uma das mais intensas foi a “febre epidêmica de mau caráter”, verificada no Ceará no ano de 1791. Acredita-se que duas mil pessoas tenham morrido em decorrência dela. Nessa ocasião, o remédio mais eficaz utilizado pelos médicos para impedir o progresso dessa epidemia foi a prescrição de talhos de carne fresca, já que eles sabiam que o problema era desnutrição, proveniente de uma dieta deficiente em proteínas de origem animal, vitaminas, cálcio e sais minerais.

Ao longo do tempo ocorreu uma alta geral nos preços dos alimentos em praticamente todas as províncias do Império, repercutindo na elevação dos salários, das matérias-primas, dos prédios e dos aluguéis. No Maranhão, o motivo da inflação dos gêneros alimentícios não decorria da falta de produção, nem da falta de braços, nem da mudança de culturas, nem da inconstância das estações, nem do aumento da população e, sim, da “superabundância do capital”, da depreciação do padrão monetário (em decorrência do ouro da Califórnia) e da expansão do crédito. No Ceará e na Bahia, a crise decorreu, principalmente, da crescente avaria provocada pelo cólera-morbo entre os cativos. Sucederam, em ambas as províncias, os efeitos da fase de transição ao trabalho livre, a absorção dos “poucos braços” pela lavoura da cana e do café, prejudicando não apenas as pequenas culturas, também paralisando em algumas províncias vizinhas a criação de gados. Ainda que existisse fartura de alguns gêneros (farinha, feijão, milho e arroz) em Santa Catarina, fornecedora de alimentos para a região Norte, a regulamentação dos seus preços dependia principalmente da cotação deles na Corte, Bahia, Pernambuco e Rio da Prata. Como zona de colonização alemã já nesse momento, não se colocava o problema da privação de braços pela supressão do tráfico negreiro. A província do Paraná, por sua vez, atribuía a sua carestia à ação nefasta dos atravessadores.

A conjuntura econômica desfavorável provocada pela cessação do tráfico negreiro acarretou uma supervalorização da mão-de-obra e, conseqüentemente, uma elevação geral dos preços incidindo sobre o abastecimento. O grande número de impostos criados pelas assembléias provinciais, que tentavam angariar uma receita suplementar, prejudicou a circulação de produtos de outras regiões. As secas periódicas e as epidemias de cólera-morbo agravaram a situação de miséria da população.

É a partir desse contexto irrequieto da segunda metade do século XIX que as monografias médicas passaram a privilegiar as temáticas relacionadas à nutrição, habitação, costumes dos habitantes e saúde, observando a relação desses fatores com a ocorrência de doenças endêmicas e esporádicas. Os efeitos da alimentação sobre o organismo humano e suas repercussões por meio de moléstias tornaram-se interessante objeto de investigação, fato que pode ser comprovado por meio das teses apresentadas às faculdades de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. A “História da Alimentação”, de Hernani Pereira (1887), a análise de Gama Lobo sobre a avitaminose “A” e a de Raimundo Nina Rodrigues sobre o consumo de farinha de mandioca (1897-1904) reforçam essa idéia. As matérias sobre alimentação e suas implicações, produzidas nas instituições de ensino do Rio de Janeiro e da Bahia, desenvolveram-se no campo da higiene alimentar, área de aplicação oriunda do interior das faculdades de medicina. O reconhecimento acadêmico da ciência da Nutrição ocorreria somente no século XX.

Um levantamento sumário realizado no catálogo de defesas da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro mostrou que no período de 1850 a 1900 foram defendidas 89 teses, cujos temas estavam direta ou indiretamente relacionados aos efeitos da inadequação alimentar, sendo as moléstias mais estudadas, a opilação e o beribéri. Desde o período colonial, a presença da opilação, considerada uma das principais causas de morte entre os escravos, vinha sendo notada por cronistas, médicos e naturalistas, principalmente por causa de seus sintomas característicos: debilidade física (cansaço) e geofagia (hábito de comer terra). Até então, a medicina não se havia mobilizado no sentido de oferecer uma explicação científica para o problema, mesmo sendo uma doença endêmica. Foi a partir da conceituação proposta pelo médico José Martins da Cruz Jobim que a opilação se transformou num dos temas mais examinados e discutidos da história da higiene no Brasil.

Jobim propunha a etiologia da opilação associando-a diretamente às condições de vida dos indivíduos afetados. A anemia intestinal seria uma doença vinculada à pobreza e, por isso, suas principais vítimas estavam entre aqueles que viviam na miséria, submetidos à “umidade oriunda das casas mal levantadas em terrenos ‘alagadiços’ e habituadas a fazer uso exclusivo de uma ‘alimentação feculenta’”. Comprovada a origem climática da opilação, Jobim pôde reconsiderar a influência dos fatores sociais que poderiam contribuir para o seu desenvolvimento.

Antes dele, outros médicos responsabilizaram os péssimos hábitos populares, sobretudo a dieta baseada em alimentos “pouco nutrientes e indigestos”, composta de farinhas de mandioca e de milho e feijão. O uso excessivo desses alimentos, vistos como impróprios para as condições de vida sob o clima tropical, aumentaria “o risco de ficar hipoêmico”. Em países como o Brasil, onde a atmosfera quente e úmida exerceria ação deletéria sobre o organismo, recomendava-se uma dieta e um estilo de vida que compensassem o desgaste natural da saúde.

Em Ophtalmia Brasiliana
, Gama Lobo desenvolve um esboço interessante sobre a avitaminose A, que, na opinião de Gilberto Freyre, foi um dos primeiros estudiosos dos problemas brasileiros de alimentação relacionados à regionalidade, partindo de investigações médicas sobre os males de subnutrição nas áreas em que predominava a prática da monocultura.

A tese de concurso do doutor Antônio Correa de Sousa para a Cadeira de Higiene da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1865 notifica as péssimas condições de vida das populações pobres nacionais e estrangeiras na cidade do Rio de Janeiro, caracterizadas pelos baixos salários, precariedade das moradias, deficiências alimentares, doenças, etc. Os gastos dessa gente, com cultura, distração e vestimenta eram modestos, empregando à alimentação e ao aluguel da moradia a quase totalidade de seus ganhos. Quanto à alimentação, Sousa mostra que se restringia ao feijão, à farinha de mandioca e à carne-seca. Consumiam-se ainda, bacalhau, sardinhas, batata-doce, aipim, abóbora e algumas hortaliças. Comia-se carne verde (fresca) só em dias de festa e uma libra (453 quilogramas) de carne seca ou bacalhau alimentava cinco ou seis
pessoas em uma refeição. O passadio dos estrangeiros apresentava-se mais diversificado, já que incluíam a batata-doce e o arroz. A dieta do escravo era a mais pobre, limitando-se, por vezes, a três ou quatro sardinhas por dia e a uma grande massa de angu de farinha.

Os médicos da Escola Tropicalista Baiana interessaram-se pelo estudo de enfermidades epidêmicas, doenças típicas das populações pobres, princípios ativos da farmacopéia natural e outros assuntos de alcance social, sempre de acordo com normas rigorosamente científicas. Foram os doutores Wücherer, Silva Lima e Nina Rodrigues
que, pela primeira vez no Brasil e no mundo, relataram epidemias como febre amarela e o cólera-morbo, etiologias de doenças como a ancilostomíase e a filariose, sintomatologias como a do envenenamento ofídico e observações sobre o beribéri, o ainhum e outras afecções tropicais.

O doutor Oto Edward Wücherer publicou seus estudos “Sobre a moléstia vulgarmente designada opilação ou cansaço”, anteriormente nomeada de hipoemia intertropical e, associada, então, pela primeira vez, no Brasil, com a ancilostomose. Investigou também a filariose em Salvador, no ano de 1866, quando identificou embriões de filárias em urinas de portadores de elefantíase. Essa pesquisa foi divulgada na Gazeta Médica da Bahia (1868-1869) com o título de “Notícia preliminar sobre vermes de uma espécie ainda não descrita, encontrados na urina de doentes de hematúria intertropical no Brasil”. Especializou-se também no estudo dos ofídios, suas características morfológicas e seus hábitos, descrevendo espécies novas e ensinando a identificar as cobras venenosas.

O caso mais antigo de beribéri foi registrado na Bahia em 1863 pelo professor Silva Lima, que, a partir de então, começou a estudá-la de modo sistemático. Divulgou seus estudos e observações, numa série de artigos publicados na Gazeta Médica da Bahia, no período de 1866 a 1869, intitulados “Contribuição para a história de uma moléstia que reina atualmente na Bahia sob a forma epidêmica e caracterizada por paralisia, edema e fraqueza geral”. Alguns anos depois, Silva Lima reeditou seus trabalhos no “Ensaio sobre o beribéri no Brasil”, tornando-se obra de referência, indispensável para todo aquele que desejasse conhecer a doença, sobretudo o seu aspecto clínico. Posteriormente, a investigação original de Nina Rodrigues sobre a incidência dessa enfermidade, no Asilo São João de Deus, recolhimento de alienados, demonstrou que a ocorrência de epidemias de doenças carenciais estava relacionada simultaneamente ao crescimento do número de alienados na condição de confinamento e às crises financeiras, situação que gerava diminuição expressiva da quantidade e da qualidade de víveres fornecidos aos internos. Portanto, à frente do seu tempo, Rodrigues chega a levantar a verdadeira etiologia do beribéri, ao questionar tanto a concepção miasmática – emanações pútridas de animais e vegetais a que se atribuía, antes das descobertas da microbiologia, a contaminação das doenças infecciosas e epidêmicas – quanto a teoria infecciosa desta enfermidade.

Silva Lima pesquisou ainda a determinação das causas e origens do ainhum – também designada “mal perfurante plantar”– moléstia peculiar aos negros do sexo masculino, caracterizada pela queda dos dedos mínimos dos pés, deformando-os e até eliminando-os, por amputação espontânea. A seqüela produzida por essa enfermidade serviu até mesmo como traço identificador de escravos fugidos, como ilustra o anúncio que se segue:

Fugiu desde o dia 13 de agosto do corrente ano o escravo Luiz, com os sinais seguintes: alto e bem feito de corpo, tem dentes limados e perfeitos e o dedo mínimo do pé cortado; quando fala com medo é bastante gago. Este escravo é natural do Sobral e há toda certeza que seguiu para dito lugar por terra. Pede-se portanto, a sua apreensão a qualquer pessoa, que será bem recompensado; a entender-se com o senhor da rua Direita no 12, ou na rua de Apolo no 43, armazém de açúcar.

Para os membros do agrupamento científico da chamada Escola Tropicalista Baiana, reconhecida como o limiar da pesquisa científica do campo da parasitologia, a especialização no tratamento das “doenças tropicais” conferia um caráter “nacional” à
medicina, e deveria ser estimulado o seu desenvolvimento."

---

Fonte
:
SÔNIA MARIA DE MAGALHÃES: "ALIMENTAÇÃO, SAÚDE E DOENÇAS EM GOIÁS NO SÉCULO XIX". (Tese de doutorado apresentada ao Departamento de História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, em cumprimento às exigências para a obtenção do título de Doutora em História, sob orientação da Profª. Ida Lewkowicz). Franca, 2004.

Nota
:
A imagem (Revista "Pilhéria Ilustrada, 1904) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Visite o site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!