“A figura do imigrante alemão não foi praticamente abordada no território da literatura no período imperial. Já com relação ao teatro, o personagem do alemão esteve presente na obra de França Jr. Na peça O Defeito de Família (1870) o criado germânico Ruprecht foi representado com algumas características positivas que marcaram a visão do elemento teuto em solo nacional a partir do século XIX. Fala o patrão Matias:
“É pena que o ladrão tenha um nome tão arrevesado; tirantes disso é um criado como não há igual. Sério, de uma moralidade exemplar, cumpridor de seus deveres, e sobretudo fiel como um cachorro. Se eu pudesse enchia esta casa de alamões. Tive uma ótima idéia de mandá-lo vir de Petrópolis. (canta) De ter alamões em casa/Ninguém deve se queixar;/Pois é gente papafina/para uma casa guardar.//Quem quiser ter o sossego/e a paz no coração,/lá da terra das bengalas/mande vir um alamâo”
No que se refere aos debates políticos, a figura do alemão foi fortemente enfatizada no conjunto dos discursos favoráveis à substituição da mão-de-obra escrava pela livre, européia e branca. Nestes discursos, a disciplina do germânico e sua dedicação para o trabalho (decorrente em parte, segundo estas leituras, da ética protestante) constituíam-se nos principais argumentos para que se adotassem medidas favoráveis àqueles imigrantes.
É somente no final do século XIX e início do XX que o “alemão” será representado no cenário cultural brasileiro, sendo Canaã, de Graça Aranha, a obra referencial na exposição de características que, a partir de então, marcariam a visão do elemento teuto-brasileiro. A partir desta obra, a literatura brasileira passou a expressar de várias formas o universo de significações com que se marcava o germânico, trazidas principalmente da Europa, as quais se somavam as imagens construídas no interior da sociedade brasileira. O alemão como agente do progresso, disciplinado para o trabalho, possuidor de espírito moderno e racional, entre outras, são as leituras presentes nas primeiras aproximações da literatura com os imigrantes e a sua cultura.
Em 1902, Graça Aranha publica Canaã, romance que versa sobre a experiência de dois imigrantes alemães que vieram para o Brasil “fazer a América”, estabelecendo-se em uma região de colonização agrícola, no município de Porto Cachoeiro, Espírito Santo. Entretanto, as atenções de Aranha não se voltam primordialmente para as lutas pela sobrevivência cotidiana e para a trajetória de vida daqueles trabalhadores. O que é colocado em questão é se o progresso da humanidade, visto como fato irreversível, percorrerá o caminho da razão ou da paixão, da liberdade ou da opressão, da arte ou da guerra.
Os dois alemães que protagonizam a obra de Aranha não provêm das mesmas classes sociais da maioria dos imigrantes e, consequentemente, não partilham das mesmas preocupações de tais grupos. São revestidos pelo autor de uma bagagem cultural bastante intelectualizada através da qual vivenciam a realidade na qual estão presentes, ao mesmo tempo em que refletem criticamente acerca do seu passado nos estados germânicos.
Milkau, personagem central da obra, é oriundo de Heidelberg, filho de um intelectual, e também exerceu a atividade de crítico literário em sua terra natal. Contemplativo e bastante idealista, abandona seu país por desiludir-se com a civilização européia, descrita por ele como excessivamente presa ao passado e orientada por valores decadentes. Partiu da Europa em busca da terra prometida, “a sua Canaã”, descoberta em um país onde a integração social harmoniosa entre os povos ainda era possível. Seu sonho era encontrar aqui a paz.
Milkau representa também o alemão idealista que constrói uma colônia limpa e organizada, ao contrário dos mestiços, regidos pelos “instintos naturais”, como se percebe na descrição de uma mulata da região:
“No batente da porta sentava-se uma mulata moça. Toda ela era a própria indolência. Os cabelos não penteados faziam pontas como chifres, a camisa suja caía à toda no colo desencarnado e os peitos de muxiba pendiam moles sobre o ventre.”
Já entre os camponeses alemães, tenazes e obedientes, ainda que com a alma empobrecida pelo ardor do trabalho, “[...] via-se estampado o pensamento único de cumprir o dever prático, de caminhar para a frente no conjunto harmonioso de um só corpo”.
Imagens como esta podem até conduzir vários leitores a identificarem Aranha como um grande admirador da cultura e do ethos germânico bem como defensor da imigração deste povo para o Brasil. Todavia, existe outro personagem nesta obra que nos leva a ponderar sobre tais conclusões. Trata-se de Lentz, que no texto de Aranha encarna outro tipo de germânico, aquele orgulhoso de sua própria raça. Enquanto Milkau se dedica à arte, Lentz confabula em construir um império ariano no Brasil, pois, segundo ele, “Há de se aceitar a lei da vida, em que o mais forte atrai o mais fraco; o senhor arrasta o escravo, o homem, a mulher. Tudo é subordinação e governo”.
Filho de um oficial de alta patente do exército prussiano, Lentz abandona sua terra natal por recusar o casamento; decepciona-se com a amante quando esta lhe exige o nome, segundo ele, para atender à moral cristã e para fazê-lo seu escravo. Refugia-se
Tal como Milkau, Lentz ama sua terra de origem e vê nela a concretização da civilização ocidental; como o amigo, distingue-se dos demais imigrantes por ser um aventureiro de espírito elevado. Ambos acreditam nas concepções evolucionistas da história, bem como na supremacia dos arianos. Todavia, eles se distinguem pela maneira como enxergam o cumprimento de suas metas: para Milkau a civilização só será atingida através da solidariedade e amor entre os homens, constituindo-se o progresso uma condição básica para a liberdade. Já para Lentz, carregado do ethos guerreiro-militar do Kaiserreich, a cultura dos mestiços sempre será inferior, pois o negro trás em suas veias o servilismo, necessitando sempre de uma liderança para conduzi-lo. Fiel ao seu ethos, recusa a solidariedade como condição fundamental para o progresso.
O conflito existente entre as concepções dos dois amigos – solidariedade versus poder – percorrerá todos os capítulos da magnífica obra de Graça Aranha. Além disto, o próprio autor mostra que entre brasileiros e alemães não haveria qualquer possibilidade de junção. O mulato, preguiçoso, antepõe-se à operosidade inata do germânico; a estatura pequena e raquítica do nordestino torna-se mais nítida diante daqueles homens “gigantescos e fortes”; a simplicidade do nativo dificulta a comunicação com o complexo raciocínio do ariano e a sensualidade do mulato agredia a postura quase assexuada daqueles protestantes, cujo rigor ascético lhes determinava um pragmático desenvolvimento econômico.
Temos assim, na obra de Aranha, representações interessantes a respeito dos alemães. Ao mesmo tempo em que são vistos como fortes, disciplinados, membros de uma raça superior e cheios da admiração das elites ávidas pelo progresso, os alemães também despertavam uma certa aversão, por sufocar, em nome da razão, sua própria sensibilidade. Além disto, esse alemão estava isolado, segundo os olhares da “civilização mestiça”, em seus próprios valores e costumes; era, enfim, um estrangeiro obedecendo a um conjunto diferente de leis e regras.
Conclusões bem semelhantes são encontradas em Amar, verbo intransitivo, romance de Mário de Andrade, publicado em 1927. Nesta obra encontramos a personagem Fräulein – de nome Elza – imigrante alemã contratada como governanta na casa de uma família burguesa paulista
A sensibilidade germânica de Fräulein aflora imediatamente no momento em que chega à casa dos Souza Costa trazendo em suas malas alguns retratos de Wagner e de Bismarck, além de alguns livros. Ao entrar, a alemã assume rapidamente seu papel, sem perguntas e questionamentos; exercendo suas funções, executa-as com o único intuito de acumular alguma renda para poder retornar para a Alemanha. Elza acaba por personificar a mulher ariana: nem feia, nem bonita, porém saudável, limpa e provavelmente fecunda, nela não se presencia qualquer atitude fragilizada; em público comporta-se com rigidez militar, estando seu idealismo encarcerado, rondando apenas a sua própria imaginação, falando-lhe do amor, da pátria de origem, da natureza e de um lar para si.
Fräulein, entretanto, possui uma outra tarefa naquela residência: em que pese seu preparo intelectual, na condição de mulher e imigrante, torna-se responsável pela iniciação intelectual do adolescente Carlos, o filho mais velho do burguês, o que realizará em princípio, com o mesmo senso prático com que ministrava as aulas de piano ou alemão. Todavia, aos poucos, acaba se envolvendo com o garoto, e quase cede aos seus jogos de sedução. Nesses momentos em que se deixa levar pelas emoções, o autor a descreve como uma criatura dilacerada, diferente de si:
“Estava muito pouco Fräulein neste momento. Porque Fräulein, a Elza que propiciou este idílio, era uma mulher feita, que não estava disposta a sofrer. E a Fräulein deste minuto é uma mulher desfeita, uma Fräulein que sofre. E por que sofre está além de Fräulein, além de alemã: é um pequenino ser humano”.
A imagem do alemão como personificação da germanidade (Deutschtum), como um indivíduo exatamente idêntico aos outros membros de sua cultura, forte, formado através de um ethos militar, desprovido de sensibilidade, um autêntico membro do militarizado Kaiserreich, permeará outras narrativas, quer na literatura, quer no discurso jornalístico e na crônica popular. Mas é entre os intelectuais preocupados em refletir a sociedade brasileira e os problemas que ela enfrenta para se constituir enquanto nação civilizada, que a imigração alemã será abordada com maior força analítica. Refiro-me aqui, mais especificamente, ao pensamento crítico, gestado durante o império, com Sylvio Romero, e consolidado na República sob os auspícios de Oliveira Vianna.
Neste contexto, gostaríamos de destacar que Romero foi um escritor que se dedicou tanto à imigração alemã quanto à imigração
Romero partiu da teoria das desigualdades das raças para pensar a formação do povo brasileiro, interpretando a cultura nacional como resultante da miscigenação entre três raças: a branca, a negra e a vermelha. Tal mistura seria responsável pela coesão social da sociedade nacional e, além disso, lhe conferia sua individualidade histórica.
Levemente racista – já que inspirado em autores defensores do evolucionismo – Romero admitia a inferioridade dos negros e dos índios, mas acreditava que através da miscigenação destes com brancos europeus, as características da raça superior (o branco) prevaleceria sobre as demais. Neste sentido, acreditamos que Romero pode ser considerado um dos gestores da tese do branqueamento, tão freqüentemente atribuída à Oliveira Vianna. Já que o autor acreditava na predominância de caracteres da raça branca sobre a mestiça para a formação de um ethos destinado ao progresso, o que levaria Romero a preterir o imigrante alemão, um ariano por excelência? Lendo um texto deste autor que faz referência direta aos germânicos, percebemos que sua crítica recai não na comunidade teuta, mas no caráter desorganizado e desordenado com que se permitia que tal contigente emigrasse e ocupasse o Brasil, bem como a definição de seu papel enquanto formador da população brasileira; reivindicava-se destes imigrantes somente suas características biológicas e seu trabalho produtivo, e não sua participação na política e cultura nacional, já que era portador de valores estrangeiros.
De acordo com Romero, a concentração dos alemães nos estados da região sul do país acarretaria um duplo perigo: primeiro, o crescimento desequilibrado entre esta e as outras regiões, devido as altas taxas de natalidade dos teutos; segundo, o risco de se perder a unidade lingüística, uma vez que o idioma alemão é de uso corrente entre aquelas populações. Para ele, a superação destes problemas estaria numa melhor distribuição espacial dos arianos pelas diversas regiões para que uma nova população fosse produzida.
Apesar de ver o expansionismo como algo quase genético a este povo e também como uma virtude, Romero teme que o princípio étnico e lingüístico em que se baseiam as comunidades teutas, ao definirem a nacionalidade, seja válido para todas as zonas de colonização alemã, fazendo com que a região sul seja incluída nas ambições expancionistas do Kaiserreich, o que ainda só não havia se concretizado devido à força do pan-americanismo, liderado pelos Estados Unidos.
Apesar de interessantes, as reflexões de Romero não obtiveram grande penetração na vida política do país nos momentos seguintes a sua construção. Tais idéias tiveram de aguardar pelo menos vinte anos para verem suas aspirações concretizadas. Somente a associação de intelectuais com um governo zeloso em resguardar o futuro da nação, para que seu nacionalismo cultural se traduzisse em ação através do eugenismo de Oliveira Vianna.
Se observarmos as teorias orientadas pelas concepções evolucionistas e /ou racistas que se preocuparam com a questão da superação do atraso social e cultural vigente no Brasil, não encontraremos, a este respeito, nenhuma inovação considerável na obra de Oliveira Vianna. Tal como Sylvio Romero, Vianna defendia a necessidade de branqueamento da raça brasileira e rejeitava os modelos românticos, por considerá-los um mero enaltecimento do passado e das riquezas naturais. Neste sentido, ele se colocava como herdeiro do pensamento “científico”, utilizando-se dos instrumentos metodológicos da então recente etnologia, bem como da história, para tentar identificar as pressões exercidas pelo passado na sociedade de seu tempo, tal qual fizeram vários autores inspirados na Escola de Recife.
Gostaríamos de reafirmar que as teses de Vianna acerca da formação da população brasileira não diferem muito daquelas formuladas principalmente por Romero. Entretanto, Vianna incorporou no seu pensamento as reflexões do polígrafo positivista Gustave Le Bon, autor da famosa “psicologia das multidões”. Acreditamos que a as teses “psicológicas” de Le Bon ajudaram Vianna a relacionar a questão da desordem social com a origem racial, visto que para ele:
Esta função superior (de governar) cabe aos arianos [...] são estes que, de posse dos aparelhos de disciplina e de educação, dominam esta turba informe pululante de mestiços inferiores e, mantendo-a, pela compreensão social e jurídica, dentro das normas da moral ariana, e vão afeiçoando lentamente à mentalidade da raça branca [...]”.
No livro Populações meridionais, investigando as origens da aristocracia rural brasileira, com intuito de desvendar sua missão civilizadora no Brasil, Vianna enfatiza alguns caracteres físicos dos gaúchos, apontando para seu espírito desbravador e guerreiro, afirmando serem estas características hereditárias, o que legitimaria seu papel de governante. Continuando sua dissertação a respeito deste povo, Vianna não enfatiza o imigrante alemão, presente no sul do país desde o império. O mito ariano, ao contrário, está plenamente presente, como ideal a ser alcançado na construção do ethos nacional.
Sobre os gaúchos, considera que:
“Os elementos brancos tiveram a preponderância; e os elementos arianos [...] eram mais puros que qualquer núcleo nacional [...] tudo indica no gaúcho [...] o homem dotado de uma pretora de vida, um equilibrado, um forte, um eugênico, enfim”.
Nessa obra, sua única referência aos teuto-brasileiros é bem modesta devido à evidência dada apenas às camadas que exerciam ou deveriam exercer o poder, porém é sugestiva: limita-se a comparar as práticas associativas dos germânicos nos estados sulinos, identificando nela sua cultura política de origem, pautado no solidarismo.
Assim como Romero, Vianna preferia o imigrante luso devido à questões lingüísticas; entretanto, para ele as características raciais do germânico desempenhariam um papel de peso na tarefa de arianização, bem como para o desenvolvimento econômico do país, em virtude de sua inata operosidade.
A figura do imigrante alemão é retomada na década de 1930, num artigo intitulado “O tipo brasileiro e seus elementos formadores” no qual o autor demonstra claramente seu otimismo em vista dos desdobramentos do processo imigratório, apesar de seu caráter até então desordenado. Segundo Vianna, o tipo alemão se caracteriza pela aversão ao trabalho subalterno e pela tendência ao expancionismo e dominação. Embora enclausurado no meio rural, seus filhos, já adaptados ao novo país, quando emigrassem para as cidades, logo exerceriam as funções que exigissem tais características, entendidas por ele como inerentes à raça germânica.
Realizei esta brevíssima exposição das obras de Aranha, Andrade, Romero e Vianna para demonstrar a atitude ambígua destes autores em relação à imigração de origem germânica. Através de seus discursos, construíram uma imagem dos imigrantes teuto-brasileiros, entendidos como um corpo harmonioso e coeso, estando a reproduzir permanentemente sua identidade de origem. Sendo intelectuais antenados em seu tempo, perceberam os alemães na condição do “outro” na cultura brasileira.
Neste momento específico, este povo foi descrito, tanto na literatura quanto nas obras científicas, como desenraizado, incapaz de se integrar ao seu novo ambiente social, distante emocionalmente dos acontecimentos que vivenciavam. Excessivamente apegados à pátria de origem, personificavam seu passado através da leitura, do emprego do idioma alemão, da preservação dos usos e dos costumes e da endogamia. O alemão, segundo estes autores, estaria para sempre ligado à sua terra natal, donde a razão em concebê-lo como portador de um espírito militarista, num certo sentido, representante do Kaiserreich de Bismarck.
Entretanto, acreditamos que estes mesmos autores, assim como os pesquisadores juizforanos citados no início deste capítulo, representaram os imigrantes alemães basicamente através de algumas características que foram dadas a ler pela aristocracia cortesã-guerreira que se consolidou no poder no período posterior ao da unificação da Alemanha. Nobreza, operosidade, disciplina, espírito inato para o progresso, coesão e ethos civilizado, eram as características através das quais a nobreza militarizada do segundo império germânico gostaria de ser e era representada. Todavia, tais características foram tão bem expostas pela aristocracia do Kaiserreich que acabaram sendo aceitas e internalizadas por uma parcela significativa da intelectualidade brasileira e pelos pensadores locais como um todo. Acreditamos que este fato tenha contaminando boa parte das representações realizadas pelos pesquisadores e escritores acerca do imigrante alemão – na maioria dos casos, simples camponeses e/ou artífices – que atravessou o Atlântico para tentar a vida no Brasil.
Na Alemanha, foram o exército e as confrarias estudantis duelistas que exerceram as funções integradoras capazes de possibilitar um tipo específico de formação social: a “boa sociedade”. Sobretudo na Prússia, foi o código de honra dos guerreiros – a obrigação de arriscar a vida em duelo para provar que se é digno de pertencer à elite social, àquela que possui honra – que serviu como símbolo de admissão e pertença no establishment do Kaisereich. E, sendo a Prússia o estado majoritário na unificação, ela assegurou que estes valores guerreiros tivessem prioridade sobre os valores clássicos do cortesão nos comportamentos e sentimentos da aristocracia.
Desenvolvendo suas argumentações a respeito do processo civilizador nos estados germânicos, Norbert Elias indica que o processo alemão manteve algumas peculiaridades em relação aos seus vizinhos ingleses e franceses. Os governantes da Prússia, assim como dos outros estados, tentaram, antes de tudo, “amansar” sua nobreza guerreira, ou seja, no período de transição para exércitos permanentes, – condição e sintoma da crescente monopolização da violência pelos monarcas – em boa parte dos estados modernos em formação os guerreiros, fidalgos e senhores de terras, foram também transformados em oficiais a serviço do governante central de seu país. Na Prússia, entretanto, a desigualdade de poder entre a nobreza e a burguesia acabou favorecendo a aristocracia gerando um compromisso tácito entre rei e nobreza.
“Por um lado, a aristocracia necessitava de uma casa reinante hereditária em conflito com outros Estados mais ou menos centralizados; precisava de reis como comandantes-chefes do exército, como coordenadores supremos das organizações de serviço civil e militar, como árbitros na resolução de disputas entre nobreza e burguesia, e para outras funções de integração”.
Surgiu assim uma “associação” em que a nobreza se submeteu ao rei, servindo-o como oficiais, funcionários da corte e administradores. Em contrapartida, o rei incumbiu-se de garantir a posição da aristocracia como a mais alta classe política do país, tornando-se protetor dos privilégios da nobreza.
Devido a localização geográfica deste estado, possibilitando guerras constantes, o processo de civilização da classe guerreira ocorreu apenas de forma moderada. Além disto, como a monopolização da violência pelo rei esteve estreitamente associada a comercialização e a monetarização da sociedade, a nobreza guerreira sofreu algumas relativas modificações. Porém, mesmo com essas modificações, os padrões militares continuaram a predominar sobre os padrões civis mais moderados da sociedade de corte.
Segundo Elias, o modelo de comportamento de uma aristocracia militar que havia passado apenas por uma dose modesta de submissão à vontade cortesã, foi absorvido por vastas seções da burguesia no período pós-unificação, tendo por conseqüência uma grande influência na formação do que é usualmente chamado de caráter nacional alemão, ou seja, foi este padrão comportamental fixado no código guerreiro que se converteu num código dominante entre as elites no decorrer da convergência entre grupos da nobreza agrária-militar e grupos da burguesia urbana e que foi imposto, sem muito sucesso, ao nosso ver, às classes inferiores. Isso porque, os únicos habilitados para participar da satisfaktionsfähige Gesellschaft, ou seja, da “boa sociedade” guiada pelo hábito de pedir satisfação, através de um mesmo código de auto-regulação, além dos nobres, eram os oficiais de alta patente e aqueles ligados ao primeiro escalão da administração do Estado. Os grupos considerados não habilitados incluíam os lojistas, artesãos, trabalhadores, agricultores e judeus.
Todavia, os agricultores e artesãos que vieram tentar a sorte no outro lado do Atlântico acabaram, ao nosso ver, sendo representados tanto na literatura quanto na historiografia nacional como a personificação deste “caráter alemão” disseminado na corte do Kaiser. Sendo caracterizados em sua sociedade de origem pela falta dos valores sociais dominantes, estes indivíduos, ao chegarem no Brasil, passaram a ser representados como portadores de símbolos que a elite germânica guardava somente para si. A aristocracia do segundo reich se autocompreendia como a personificação do Deutschtum (germanidade), como portadora de um ethos civilizado que a diferenciava da massa camponesa e artesã de sua recém formada nação, fato este que a capacitava de exercer o controle e governo da Alemanha.
Com relação à literatura e as obras dos cientistas sociais do início dos novecentos, temos a impressão que parte desta representação acerca da aristocracia alemã tenha sido absorvida por esses autores devido à influência das teorias raciais e do evolucionismo, principalmente em sua vertente darwinista social, tão em voga no período.
De acordo com Peter Gay as teorias racistas que vigoraram no século XIX não passavam de um punhado de noções mutuamente contraditórias e de especulações biológicas e históricas utilizadas para afirmar a superioridade de um grupo sobre um Outro coletivo. Funcionaram como um álibi para a agressão de imensa utilidade, pois solidificavam o revigorante sentimento dos próprios méritos ou mitigavam o temor secreto de suas próprias imperfeições. Contudo, quando a teorização sobre as raças começou a engatinhar, em meados do século XVIII, ela ainda não havia se transformado em racismo: esta seria a contribuição dos pensadores e cientistas sociais do século XIX.
Já no fim da década de 1730, o naturalista sueco Carl von Linné tentou colocar algum sistema no caos das variações humanas. Ele identificou quatro raças distintas, separadas pela cor. Seu contemporâneo francês, o conde de Buffon, descobriu seis raças e também descordou de Linné ao insistir que as características raciais estavam sujeitas a influências ambientais. O debate a respeito das diferenças raciais – seu número e natureza – estava em ação, e logo se intensificou no cenário Europeu. Quando, em 1775, o anatomista alemão Johann Friedrich Blumenbach elaborou seu importante catálogo de raças humanas, colocou cada uma delas – caucasiana, mongólica, etíope, americana e malaia – em sua própria região do globo. Mas até então os estudiosos viam a humanidade como uma; distinta dos animais pela postura ereta e pela capacidade de raciocinar.
Em meados do século XIX, a raça estava em todas as partes. Os teóricos reuniam verdadeiras montanhas de evidências, indo do peso do cérebro ao tamanho dos narizes, das lendas de migração a imputação de atributos tribais. Eles se achavam no direito de traçar conseqüências de longo alcance a partir de medidas de crânios reunidas em levantamentos, colocando as raças dolicocéfalas, ou de cabeça longa, contra os braquicéfalos, ou de cabeça redonda. Propagaram suas noções antropológicas mergulhadas em dados maciços, mas, sem essência, sem significados. Segundo Peter Gay, observando os avanços que físicos, químicos e astrônomos celebravam, os estudiosos do homem, em íntima aliança com os darwinistas sociais, espalhavam mais absurdos em nome da ciência do que seus pares jamais perpetraram, antes ou depois.
Através desse século, todos que estudavam a história, lingüística, restos de ossos ou formatos de crânios se apoiavam na proposição de que a raça é melhor quando é mais pura. Foi nesse contexto que o orientalista alemão e professor de Oxford, Friedrich Max Müller, colocou a raça ariana no mapa. O epíteto “ariano” conjugava uma raça alta, de cabelos loiros, olhos azuis, leal, amante da família, mas também da guerra, com seus membros contrapostos aos semitas, que ameaçavam subverter a civilização com suas perspectivas mercantis e seus decadente modernismo.
Mesmo Max Müller se declarando arrependido, por volta de 1880, que, se antes havia defendido o elemento ariano como raça, na verdade só se poderia referir a uma qualidade lingüística, o mito do arianismo já havia se disseminado. Era tarde demais. Essa teoria racial havia se espalhado pela Europa e o texto favorito de seus partidários era Germanicus, de Tácito. Escrito cerca de dezoito séculos antes, era uma fonte indispensável para os polemistas que buscavam razões para louvar os europeus do norte à custa dos mortais inferiores – mais baixos, de pele mais escura, menos beligerantes e mais abstêmicos. Também lançavam mão da sociologia comparativa de Montesquieu, que em meados do século XVIII havia colocado as origens das instituições livres inglesas nas florestas alemãs.Essas teorias também foram absorvidas por comerciante e trabalhadores europeus que se sentiam ameaçados pelos estrangeiros que dia-a-dia tomavam seus empregos e roubavam os pães de suas mesas.
Desta forma, como o ariano passou a ser visto – conscientemente ou não – pelos adeptos dessas teorias como a raça mais desenvolvida da civilização humana, em um determinado momento, todos os indivíduos que possuíam origem germânica passaram a ser representados com as características que somente eram vinculadas até então à elite do Kaiserreich por seus próprios membros. Em outras palavras, acreditamos que os valores que elite alemã utilizava como sua auto-representação, e que ela tentou transmitir para a sociedade como um todo, acabaram sendo percebidos como valores inerentes à raça ariana devido a uma interpretação peculiar que via no ariano o ápice do desenvolvimento humano.
Por meio da adaptação desta vertente evolucionista em solo nacional por intelectuais de várias espécies, camponeses e artesãos que foram praticamente expulsos de suas terras pela pressão demográfica, pela ameaça de proletarização, dentre outros fatores, passaram a ser descritos através de características que não possuíam inicialmente. Este fato acabou ajudando a construção de uma imagem deste grupo que ficou arraigada no senso comum e que, de certa forma, não explica convincentemente as práticas e experiências cotidianas destes indivíduos em solo nacional.
No caso das obras produzidas pela historiografia local, percebemos que estas características, iniciadas com Albino Esteves e Paulino de Oliveira, continuaram a ser reproduzidas pelos trabalhos posteriores sem muita preocupação empírica em relacioná-las com a experiência cotidiana vivenciadas pela maior parte dos imigrantes. Estes passaram a ser descritos como agentes do progresso, implementadores da civilização, como empreendedores, disciplinados para o trabalho e cheios de operosidade, iniciadores do processo de industrialização e modernização do município, como boa mão-de-obra, sadios, pacíficos mas permeados de um ethos militar. Arianização passou a ser vista como sinônimo de desenvolvimento econômico local devido a “inata operosidade” do alemão. Contudo, como várias vezes afirmamos acima, os problemas e dificuldades enfrentados pelos imigrantes no processo de inserção no Brasil; a resistência a proletarização, a falta de alimentação e de empregos, os crimes e tumultos vivenciados por eles em Juiz de Fora foram omitidos em prol da possível contribuição que estes deram ao desenvolvimento local."
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Fonte:
Deivy Ferreira Carneiro: "CONFLITOS, CRIMES E RESISTÊNCIA: UMA ANÁLISE DOS ALEMÃES E TEUTO-DESCENDENTES ATRAVÉS DE PROCESSOS CRIMINAIS - JUIZ DE FORA – 1858/1921". (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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