O belo feminino no decorrer dos tempos




“A busca pela beleza sempre foi um desejo humano, especialmente feminino. Entretanto, as bases do conceito de belo oscilaram muito de acordo com cada época histórica, enaltecendo ou denegrindo determinados valores em sintonia com o contexto sociocultural vigente. Assim, em cada momento histórico, a concepção ideal de beleza acaba sendo resultante das representações e das variáveis referenciais construídas por uma sociedade. Valores como simetria, proporcionalidade, uso de cores e adornos, opulência, dentre outros, se revezaram, cada um em seu tempo, assumindo destaque em diversos âmbitos sociais e, refletindo-se inclusive na idealização de padrões de beleza humanos.

Mais especificamente no que tange a esta relação estreita entre o feminino e a beleza, Sant`Anna (1995) afirma:

A insistência em associar a feminilidade à beleza não é nova. A idéia de que a beleza está para o feminino assim como a força está para o masculino, atravessa os séculos e as culturas. Todavia, no seio desta permanência, as formas de problematizar as aparências, os modos de conceber e de produzir o embelezamento não cessam de ser modificados. Compreender essas mudanças implica perceber a coerência das representações que, ao longo do tempo, acentuam a repulsa pelas aparências consideradas feias
. (SANT`ANNA, 1995, p.121).

Dessa forma, para tentar desvendar os valores e padrões estéticos que constroem o conceito de beleza feminina, com ênfase nas sociedades capitalistas do século XXI, especialmente a brasileira, faz-se relevante uma breve avaliação de períodos em que o belo humano assumiu diferentes facetas, modificando-se e reconfigurando-se até adquirir sua atual concepção.

Na perspectiva de Umberto Eco (2004), a análise da beleza pode ser iniciada no século VI a.C., com Pitágoras, que desenvolve uma visão estético-matemática da beleza, na qual se destacam os atributos de simetria, proporcionalidade e racionalidade.

Um dos primeiros requisitos da boa forma era a justa proporção e a simetria. Assim, o artista criava iguais os olhos, igualmente distribuídas as tranças, iguais os seios e de justeza equivalente pernas e braços, iguais e rítmicas as dobras da veste, simétricos os ângulos dos lábios erguidos no típico sorriso vago que caracteriza tais estátuas
[do século VI a.C.]. (ECO, 2004, p. 56).

Já Platão desenvolve duas concepções de beleza que vão se elaborar no decorrer dos séculos posteriores. A beleza como harmonia e proporção das partes, inspirada em Pitágoras, e a beleza como esplendor. Nessa última, Platão afirmava que a beleza devia ser psicofísica, ou seja, derivada da consonância das formas concretas com a bondade da alma. Nesses termos, beleza não é o que se vê e nem está presa a um suporte físico ou corporal. A beleza é algo superior, que resplandece (ECO, 2004).

Na Idade Média, onde tais características de proporcionalidade e equilíbrio não são marcantes, prevalece a beleza espiritual na qual se enxerga o corpo como prodígio da Criação. Isso é bastante coerente ao se pensar que se tratava de um tempo em que a religiosidade constituía, em grande parte, a narrativa que organizava a vida social. Já na perspectiva de Isidoro de Sevilha, o corpo é belo porque é dotado de ornamentos naturais como os seios, o umbigo e os olhos. Nessa perspectiva, são considerados belos especialmente os “acessórios” de cor e luz, como os olhos verde-azulados e a pele rosada. “Nestas palavras, percebe-se o quanto era importante um corpo de aspecto são em uma época em que se morria jovem e se padecia de fome.” (ECO, 2004, p.113). Ainda na Idade Média, segundo Rodrigues (1983), havia uma crença de que o corpo e o espírito das pessoas eram inseparáveis e que ambos, inclusive faziam parte de um sistema amplo, social e cósmico.

Depois, por volta do século XI, surge um ideal de beleza feminina baseado na imagem da mulher como objeto de desejo de amor casto e sublimado, refletida na poesia dos trovadores e posteriormente nos romances cavalheirescos do ciclo bretão e na poesia dos stilnovistas italianos. Trata-se de uma mulher delicada, sublime e idealizada. “a dama alimentando no cavalheiro um estado de permanente sofrimento provocado pela posse sempre adiada. a beleza terna, da dama inatingível.” (ECO, 2004, p.164). Esse estado do belo pode estar relacionado à cultura teocêntrica, amplamente difundida nessa época feudal, na qual os valores de pureza, castidade e adoração ao sagrado são reverenciados.

Posteriormente, no Renascimento, os princípios platônicos são retomados e novamente convivem manifestações distintas de um único ideal de beleza que não deriva somente da proporção das partes, mas que se engrandece quanto mais se aproxima da divindade (ECO, 2004). É, portanto, no Renascimento que a beleza feminina começa a se destacar da masculina, atingindo uma posição de supremacia. Entre os séculos XVII e XIX, ganha destaque a beleza trágica, realizada não na paixão, mas na morte para o amor. É a beleza da escuridão, das potências da noite, concretizada no sofrimento causado pela dualidade desse período no qual o homem, renovado pelo Renascimento e pela Reforma Protestante, se debatia constantemente entre valores antagônicos como: bem/mal, Deus/diabo, céu/terra, pureza/pecado/, alegria/tristeza, espírito/carne. na segunda metade do século XIX, a concepção de beleza feminina se complementa com ornamentos como jóias, remetendo-se a um modelo artificial, idealizado (ECO, 2004). É o tempo da burguesia, do início da urbanização e da aplicação e desenvolvimento das técnicas criadas durante a Revolução Industrial. É o momento de ostentar e mostrar diferenciação.

O século XX inicia-se com a beleza da provocação, fundamentada pelos movimentos de vanguarda na qual todos os cânones estéticos respeitados anteriormente são rompidos. Em detrimento das formas harmônicas, esse novo olhar inquieto mistura fantasia, sonho, delírio e as pulsões do inconsciente na construção de um belo exótico, refletindo uma visão moderna do mundo. Ainda no século XX, com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, surge a beleza do consumo ditada pelos mass media, onde o belo é estar de acordo com os padrões da moda, a partir do consumo de produtos de grandes marcas, consagradas, às vezes, em escala global (ECO, 2004).

Essa breve recapitulação do belo, especialmente feminino, proposta por Umberto Eco (2004), passa por diversos momentos históricos, mas acaba previlegiando as sociedades européias, o que pode reafirmar uma visão generalista e de certa forma etnocêntrica do belo. É uma perspectiva do ponto de vista das sociedades mais desenvolvidas e que não chega a abordar outros conceitos e valores marginais e concomitantes, existentes e predominantes em terras africanas e sul-americanas, por exemplo.

Gilles Lipovetsky (2000), ampliando essa discussão, volta seu olhar sobre os povos mais primitivos e ressalta que as mulheres nem sempre foram consideradas o belo sexo. Para o autor, na pré-história e nas sociedades selvagens o que distinguia o masculino do feminino era apenas a capacidade de procriar, ou seja, a mulher era valorizada pela sua fecundidade.

O que se observa nas sociedades ditas selvagens não leva tampouco à supremacia da estética do feminino; nem as obras de arte, nem os discursos, nem as canções exprimem a id ia do “belo sexo”. Nos contos e relatos da tradi ão oral, a beleza feminina não é mais exaltada, mais descrita, mais admirada que a dos homens, não aparece como uma propriedade distintiva da mulher
. (LIPOVETSKY, 2000, p.104).

Ainda de acordo com o autor (2000), para que o feminino fosse exaltado por sua beleza física, foi necessário o surgimento das classes sociais, umas mais e outras menos favorecidas, pois somente assim uma fatia das mulheres pôde ficar isenta de trabalho, dedicando-se muitas horas por dia às práticas de beleza. Então, de acordo com Lipovetsky (2000), a partir da antiguidade grega e depois romana, o feminino começa estreitar suas ligações com o belo. Dessa mesma forma, a beleza passará a carregar também certa incompatibilidade com o trabalho feminino, resultando em preconceitos centenas de anos depois, como será melhor explicado posteriormente.

Assim, o autor afirma que a partir do século VI a.C., com o uso da maquiagem, surge uma imagem diabolizada da mulher, vista como um ser desonesto, camuflado e pouco confiável. Na perspectiva de Lipovetsky (2000), também na Idade Média, a mulher é identificada como armadilha do maligno, ameaça coberta de vaidade. É apenas na Renascença que o feminino ganha status de personificação da beleza, e, de encarnação do mal passa à divindade, e, portanto, a uma posição superior a do próprio homem (LIPOVETSKY, 2000). O Renascimento representa, portanto, um ponto de confluência entre a visão de Eco (2004), já citada, e a de Lipovetsky (2000), representando o marco que oficializa e une de maneira sólida a relação entre mulher e beleza.

A partir dessa breve contextualização, composta basicamente pelo paralelo entre as perspectivas de Eco (2004) e de Lipovetsky (2000) acerca da construção histórico-social do imaginário do belo, pode-se perceber que em cada período houve a cristalização de um ideal de beleza, generalizado e disseminado, normalmente pelas sociedades dominantes. De toda maneira, a exemplo dessas visões complementares e, até certo ponto distintas sobre a construção da beleza feminina, pode-se perceber o quanto o tema é complexo e variável de acordo com cada sociedade, seu tempo e seu contexto existencial. Hertz trabalha duas idéias principais sobre o corpo e a sociedade. “Primeiro, a de que o corpo humano por excelência uma expressão simbólica da própria sociedade, de cada sociedade. Depois, a de que qualquer sociedade se faz criando os corpos daqueles em que ela se materializa.” (HERTZ apud RODRIGUES, 2006, p.188).

Em seu livro “O Tabu do Corpo”, de 1983, Rodrigues reitera essa perspectiva e afirma que “como qualquer outra realidade do mundo, o corpo humano socialmente concebido.” (RODRIGUES, 1983, p.44).

Nesse aspecto, o corpo ocupa uma função extremamente simbólica e representativa na sociedade:

O corpo da glória tem uma longa e variada história, segundo as épocas e concepções do homem, já que não se representa o corpo por si mesmo, mas em função da idéia que dele formamos. O cânone não é o homem representado, mas a representação que se faz homem. Toda figuração do humano, na realidade, é alegórica, e o homem é irrepresentável.
(VILLAÇA; GÓES, 2001, p.132).

Entretanto, apesar dessa dificuldade de representação do belo, por sua relação com o imaginário coletivo e a subjetividade de toda uma sociedade, em momentos e locais específicos, determinados padrões de beleza acabaram por firmarem-se e serem estimulados, reforçados e mesmo reiterados, pelos instrumentos de “espelhamento” social, próprios de cada época. Assim, seja por meio da poesia, da pintura e da escultura, do teatro, da música, do cinema e mais recentemente, da mídia e da publicidade, tais características preponderantes vão permeando a sociedade, de maneira, ao mesmo tempo reveladora e constituidora. Trata-se portanto, muito mais de uma representação cultural do que propriamente natural.

Para Sant`Anna (1995), o corpo admirado é um processo, no qual o resultado é sempre provisório e fundamentado na articulação entre técnica e sociedade, sentimentos e objetos, e, portanto, o mesmo pertence muito mais à história do que à natureza. Por este motivo, a autora ressalta que se torna in til tentar “retroceder a um grau zero da civilização para encontrar um corpo impermeável s marcas da cultura.” (SANT`ANNA, 1995, p.13).

Desse modo, para se aproximar dessa idealização, própria de cada época e local, o ser humano sempre fez uso de diversos recursos, encontrados na natureza ou mesmo desenvolvidos, que pudessem aproximar seu corpo natural de seu corpo social e cultural desejado."

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Fonte:
Mivla Helena Vilela Rios: "ANÚNCIOS DE COSMÉTICOS ANTISSINAIS: sinais de uma beleza jovem, saudável e atemporal". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação Social. Orientadora: Dra. Maria Ângela Mattos). Belo Horizonte, 2010.

Nota
:
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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